Quando recebi o convite para acompanhar a I Mostra Walfredo Rodriguez, realizada pela prefeitura de João Pessoa para reunir filmes que surgiram do edital de mesmo nome na capital paraibana nos últimos anos, um motivo me impeliu a aceitar: a rara oportunidade de testemunhar, do meu lugar de estrangeiro sudestino, um processo cinematográfico local em curso, com suas nuances próprias, seus tempos fortes e seus tempos fracos, com uma diversidade e uma amplitude difíceis de apreender nos festivais de escopo nacional. Entre movimentos comuns e individualidades irredutíveis, parecia instigante tentar auscultar o que vibra nas telas desse canto singular do país, num momento preciso da história em que o que nos acostumamos a chamar de cinema brasileiro nas últimas duas décadas parece prestes a desmoronar.
A Paraíba é um estado com tradição cinematográfica bastante fragmentada, mas com momentos gloriosos na história: do fotógrafo e cineasta que dá nome à mostra, que realizou uma série de filmes etnográficos pioneiros nos anos 1920 – dos quais hoje restam alguns fragmentos valiosos –, passando por clássicos documentários como Aruanda (1960), de Linduarte Noronha – que Glauber Rocha considerava decisivo para o surgimento do Cinema Novo – e O País de São Saruê (1971), primeiro longa-metragem de Vladimir Carvalho censurado pelo regime militar, até os filmes de horror recentes da produtora Vermelho Profundo, de Campina Grande, os tempos fortes do cinema paraibano são razoavelmente conhecidos. Atualmente, essa produção ainda é periférica em relação a outros polos de produção nacional e, embora tenha contado com investimentos robustos nos últimos anos – se comparada a outros estados de maior poderio econômico –, está fortemente assentada no engajamento coletivo dos artistas, que enfrentaram ao longo da história – e ainda vivenciam – as intempéries da conjuntura local. O exercício que me move aqui é semelhante ao de Fábio Andrade em “A Paraíba em curta-metragem”, texto motivado por sua participação em um júri de um festival no mesmo estado em 2014. Meu recorte é mais limitado, porém: embora nem sempre filmados na capital, os filmes exibidos na mostra foram todos realizados a partir de um edital de João Pessoa.
Crueza e abstração
Crua, curta-metragem recém-finalizado de Diego Lima, retrata o cotidiano de uma prostituta pobre no centro de João Pessoa, nas imediações do lugar onde a sessão de abertura da mostra foi realizada. A primeira imagem do filme descreve, em plano geral, o movimento dessa mulher que ainda não conhecemos em direção a uma moita no meio de uma praça, e o ruído hiper-real da urina que escorre pelo chão soa bem alto nos alto-falantes instalados em um Largo de São Francisco abarrotado por centenas de pessoas. A crueza estampada no título – cujo emblema é esse desenho sonoro peculiar – é perseguida a cada cena: no corpo exposto após a iniciação sexual de um garoto (essa imagem tão arraigada no imaginário brasileiro), no chuveiro mambembe que sucede a promessa de um lugar confortável por um cliente, nas narrativas da vida difícil trocadas entre as colegas de meretrício. No decorrer do pequeno conto, a protagonista se torna mais e mais silenciosa – como na visita a um homem encarcerado – e o filme mais interessado em seu rosto, como se seu olhar pudesse refletir o peso do mundo que recai sobre seus ombros.
Essa crueza tem sido cozida lentamente no fogo brando da convenção. Esse impulso da ficção em direção à imediatidade do real, sintetizado em metáforas corpóreas frequentemente atribuídas a filmes que seguem essa toada – a obra visceral, o vômito do artista, o dedo na ferida do espectador, o tapa na cara da sociedade – encontra morada numa obra como a de Cláudio Assis, que vem logo à memória diante de Crua. Há um traço instigante de provocação nesse espelhamento entre a tela e a praça no centro da cidade, na cena de sexo explícito projetada (literalmente) sobre a fachada de uma igreja barroca. O filme, no entanto, não chega a ultrapassar o umbral da afronta à moral e aos bons costumes. A protagonista promete individualidade, mas logo se torna uma personagem-sintoma, índice do desastre social que a rodeia. A crueza do tratamento fotográfico e sonoro é logo capturada pelo símbolo gasto, a concretude dos corpos é anulada pela abstração discursiva. Quando, ao filmar uma revista íntima no presídio, o cineasta decide enquadrar o espelho no chão onde se reflete a vagina da atriz, a violência social que o filme vislumbra como dramaturgia se reduplica em agressão visual gratuita, que só contribui para encarcerar uma vez mais a personagem – e o espectador – na camisa de força da verdade inconveniente. Se alguns dos melhores momentos do cinema brasileiro – Ozualdo Candeias, Belair – foram conquistados numa conjugação entre o grotesco dos motivos e o trabalho formal intenso sobre a mediação cinematográfica, em Crua a potência própria do cinema se esvai nessa imediatez do registro, nessa tentativa de acesso às entranhas do real que, ao fim e ao cabo, cede diante do desejo de adequá-lo a uma vontade prévia de diagnóstico.
Ao final, enquanto a protagonista de Crua espera em uma estação, um vendedor de DVDs adentra o quadro e um dos filmes que salta aos olhos entre os títulos à venda é justamente Biutiful (2010), de Alejandro González Inãrritu. Acaso ou sintoma, a referência pontual não parece fortuita: a sordidez metafísica de Iñarritu parece estar no horizonte. Se em Crua, porém, os meios modestos e uma relativa sobriedade na encenação tornam o filme felizmente imune à estilização solene das feridas do mundo operada pelo cineasta mexicano e por seus incontáveis discípulos no cinema contemporâneo, no longa da noite, Rebento (André Morais, 2018), a câmera lenta, o desfoque e a música imponente que acompanham a figuração de um banho de bebê na abertura do filme o aproximam mais desse universo. Na primeira sequência, a câmera percorre os corpos e os espaços e o ritmo arrastado da montagem prepara lentamente o desfecho fatal que já imaginamos: a mãe afoga a criança recém-nascida no rio.
Essa imagem tão carregada de símbolo – revestida por uma mise-en-scène toda trabalhada na solenidade – dará o tom do filme. A partir daí, acompanharemos a jornada dessa mulher – que receberá vários nomes ao longo do filme – no interior de uma paisagem nordestina árida e inóspita, reencarnando uma personagem sertaneja tantas vezes visitada pelo cinema brasileiro. A peculiar conjugação entre crueza e abstração retorna aqui: por um lado, abundam os close-ups do rosto cansado, os passos arrastados, os planos-detalhe dos ferimentos visitados por insetos, o pescoço cortado da galinha, a linguagem feita de poucas palavras duras e muito silêncio; por outro, a figura dramática que ampara a narrativa é uma espécie de mulher-metáfora, sem nome, receptáculo-mor de toda sorte de sofrimento ancestral.
Nos grunhidos da família no Vidas Secas (1938) de Graciliano Ramos ou na luz dura de Luiz Carlos Barreto no filme homônimo de Nelson Pereira dos Santos (1963), o que importava era a radicalidade do gesto de transfiguração: partir da dureza da realidade para esticar os limites da língua até o indizível ou para forçar as potências visuais do cinema até a desfiguração. Em Rebento, ao contrário, todo o esforço reside em figurar o máximo possível de dor e sofrimento a partir de uma linguagem francamente lacrimosa, mas com verniz artístico: as expressões faciais reincidentemente aflitas, a câmera lenta que prolonga ao máximo o espetáculo da agonia, o fogo no canavial, os flashbacks, o choque constantemente amansado pelos violoncelos e pianos. Não há moeda mais valiosa no mercado dos festivais internacionais hoje (Cannes à proa) do que essa cosmética do choque, essa virulência embalada a vácuo e revestida por uma capa bem vistosa e atraente, esse tapa na cara com luvas de pelica levado a cabo anualmente por campeões como Michael Haneke, Lynne Ramsay, Andrey Zvyagintsev e Yorgos Lanthimos. Se um dia no cinema brasileiro o impulso de saltar para fora da arte foi o caminho belamente paradoxal de uma profunda transformação artística, em Rebento o desespero por parecer arte – na mira do “cinema de arte” internacional – não consegue recobrir um mal disfarçado compromisso com a norma corrente.
Distopia e norma
Se a primeira noite fora marcada por uma temporalidade presente atravessada pelas reminiscências de um passado imemorial, na segunda noite de projeções é a imaginação de um futuro distópico – como interrogação do presente do país – que dá o tom. Tanto nos curtas DNAM – Deus não Acredita em Máquinas (Ely Marques, 2018) e Coletivo de Multidão (Manoel Fernandes, 2018) quanto no longa Sol Alegria (Tavinho Teixeira & Mariah Teixeira, 2018) – sobre o qual retornarei mais adiante neste texto –, salta aos olhos o esforço partilhado pelos cineastas paraibanos contemporâneos em apostar na distopia como tática narrativa de enfrentamento do atual estado de coisas.
DNAM situa a ação no ano de 2042, doze anos após uma inteligência artificial chinesa ter causado a falência do sistema financeiro internacional e instaurado uma distopia típica dos filmes de ficção científica consagrados: esvaziamento das ruas, vigilância constante, controle ostensivo das vidas. Encerrados em um bunker, um homem e uma mulher preparam um ato de resistência, que consiste no sequestro de um palhaço-pastor (vivido por Tavinho Teixeira) que aparece constantemente na TV. Embora o exercício de apropriação de clássicos hollywoodianos tenha algum interesse – os figurinos e o visual cyberpunk são uma tradução terceiro-mundista de Blade Runner (Ridley Scott, 1982), o inimigo-refém lembra o videoativista de Eles Vivem (John Carpenter, 1988) com sinal trocado –, o filme se contenta em ser um esboço, recheado de frases lapidares um tanto desgastadas (“nós somos a luz no fim do túnel”) e, sobretudo, permeado por uma reverência um tanto inócua às fontes. O personagem de Tavinho é o único que promete alguma benfazeja avacalhação – que não é suficiente, contudo, para romper com a aura de autoimportância que torna o filme excessivamente refém do repertório de onde partiu. Ao fim e ao cabo, o “Extremo Oriental das Américas no ano da graça de 2042” poderia ser qualquer outro cenário distópico já retratado inúmeras vezes.
Coletivo de Multidão começa com uma cartela que lamenta um estado de coisas que consiste no embrutecimento generalizado das relações humanas provocado por uma rotina imutável – “casa-trabalho-casa” – e onde há “um desconhecido: o afeto”. Logo em seguida, a primeira imagem do filme é acompanhada de uma legenda: “Trópico, 3 de janeiro de 2019”. A indicação de um futuro tão próximo – associada à rebatida tese sociológica que abre o filme – transformam tudo o que virá a seguir em uma ilustração simplória e redundante desse diagnóstico dos rumos do presente. Com uma fotografia em preto e branco, o filme retrata o progressivo desmoronamento de um casal, com direito a uma cena-síntese em que o marido transa com uma boneca inflável ao invés da mulher. Nesse mundo condenado de antemão, nenhuma cena vale por si mesma, mas apenas como um indício de uma decomposição dos hábitos: a falta de educação no elevador ou a relação extraconjugal da mulher com outra mulher se tornam uma coisa só, nessa estranha espécie de distopia altamente conservadora, em que a palavra-chave é a degeneração.
Essa combinação entre diagnóstico sociológico moralista e forma conservadora também é a base de Contínuo (Carlos Ebert & Odécio Antônio, 2014), filme exibido na terceira noite – não por acaso também fotografado em preto e branco. Embora não se sirva propriamente da distopia, o filme também retrata uma cidade cinza, tomada pela repetição e pelo método, cujo emblema é um funcionário da burocracia estatal que conta os dias até sua aposentadoria enquanto performa os mesmos gestos dia após dia e tem breves visões oníricas de um escape que não se concretiza. O império da mesmice contamina o relato e a forma, que se transforma também em uma engrenagem de repetições que só confirmam a tese já explicitada no título. Se a distopia na história do cinema foi, antes de tudo, uma aposta na potência da imaginação, um paradoxo pernicioso se instala quando imaginar rima com constatar. Não há gesto mais conservador do que a mera constatação. Não há forma mais inócua de protesto do que a insurgência meramente retórica contra tudo o que está aí.
Documento e transgressão
A tensão entre norma e transgressão que atravessa as ficções também pode ser notada nos curtas documentais exibidos na mostra. Em Bodas de Aruanda (Chico Sales, 2014), a história dos cinquenta anos de um centro umbandista – uma trajetória de resistência a partir da margem – encontra no filme o abrigo mais convencional possível: refém do afã da homenagem, o filme recolhe imagens de arquivo, depoimentos de integrantes do centro e imagens de alguns dos rituais para compor um retrato morno e apaziguado, que pouco se diferencia de um filme institucional.
Tudo se passa como se a fôrma não tivesse se alterado desde que Arthur Omar escreveu nos anos 1970 seu virulento ensaio “O antidocumentário, provisoriamente”. Para um filme como Bodas de Aruanda, filmar uma tradição ainda equivale a congelá-la no tempo; os depoimentos só valem por seu conteúdo verbal utilizável pela montagem (a potência cênica do encontro entre quem filma e quem é filmado é inteiramente anulada); não há relação alguma de fecundação entre tema e forma (filma-se o centro de umbanda como se filmaria uma empresa ou um time de futebol). No fim das contas, o filme se contenta em ser uma peça a mais na comemoração do cinquentenário da instituição.
Se em Bodas de Aruanda a balança pesa para o lado da norma, nos outros dois curtas exibidos na última noite há um benfazejo fôlego de transgressão. Em Acho Bonito Quem Veste (Marcelo Coutinho, 2015), vemos um conjunto muito variado de planos: a atividade febril de uma loja de roupas captada através de suas câmeras de vigilância, desfiles de moda na televisão em uma sala vazia, um corte de cabelo em uma barbearia, roupas coloridas no varal, ícones religiosos, alguém que caminha, uma procissão católica. Embora haja um fio temático tênue a reunir as imagens – a influência da moda no cotidiano de uma pequena vila –, o filme trabalha muito livremente sobre os motivos visuais, transfigurando-os – o desfoque ostensivo nas bordas do quadro, os planos-detalhe que rompem com a integridade das figuras, a incidência da música, o som da reportagem sobre moda que incide sobre uma imagem religiosa – e afirmando-se como uma deriva fluida de imagens e sons. Se é de influências que se trata, nada melhor do que, ao invés de tentar explicar o fenômeno por meio de depoimentos ou informações quaisquer, deixar que o impulso documental seja tomado por uma pulsão experimental que transforma o filme em um campo profícuo de ressonâncias visuais e sonoras, em um fluxo de cores e texturas que contaminam umas às outras.
Em Campana (Gian Orsini, 2016), o que se anuncia inicialmente como um documentário sobre detetives particulares logo se transfigura em algo muito mais interessante. O influxo do cinema noir contagia o filme desde a fotografia até a trilha sonora, e logo a observação cuidadosa da rotina de trabalho dos detetives se vê contaminada por um forte vetor de ficção. É como se a encenação – na escolha precisa dos enquadramentos, nos planos subjetivos que partem do olhar dos detetives – e a montagem – no ritmo contagiante, no campo-contracampo, no uso ostensivo da música – empurrassem a matéria documental para além do que ela aparentemente parecia oferecer. Embora não haja propriamente um enredo ficcional, o filme constitui a partir da observação uma potente trama narrativa, feita de tempos e contratempos, de gestos e de olhares, de ritmos que escapam ao regime da informação e passam a se sustentar enquanto forma. No embate fecundo entre o material observacional e um repertório de formas ficcionais advindo da história do cinema, os termos da equação não se anulam, e sim fortalecem um ao outro. Não há melhor maneira de fazer jus a uma profissão do que elevar seus gestos cotidianos à altura da ficção. Não há melhor maneira de realizar um filme noir no presente do que fazer um documentário observacional sobre detetives particulares na noite de João Pessoa.
A dança dos paradoxos
Se o paradoxo operou neste texto até aqui ora como uma figura da anulação de um termo pelo outro – a pretensão de crueza que se rende à abstração discursiva, a imaginação distópica que capitula frente ao diagnóstico –, ora como um mote da transgressão de uma rota pré-determinada – os documentários que documentam melhor ao escapar à tarefa da documentação –, Sol Alegria obriga a uma mudança de direção. No filme de Tavinho e Mariah Teixeira, as forças contrárias se põem em perpétuo movimento e se tornam vetores que se retroalimentam sem parar. Em Sol Alegria, os paradoxos se tornaram o cerne e a matéria movente da economia figurativa do filme; os oxímoros aprenderam a dançar.
Já na primeira sequência, Sol Alegria afirma seu compromisso veemente com as potências do paradoxo. O figurino dos marinheiros, a ambientação do cais, o bolero antigo que soa na trilha sonora, tudo aparentemente aponta para um filme de época; ao mesmo tempo, o léxico das moças prestes a embarcar, a referência a Dubai como destino, os telefones celulares injetam contemporaneidade na cena. O resultado é uma temporalidade heteróclita, como será tudo o mais nessa composição: a sobriedade elegante do travelling e a extravagância das luzes coloridas; a avacalhação do portunhol do marujo e o lirismo do poema de Lúcio Lins cantado a capella.
O prólogo se estrutura como uma apresentação dos personagens que comporão essa família peculiar: ao capitão-pai (Tavinho Teixeira), se juntarão o filho de cabelos cor-de-rosa e sotaque português (Mauro Soares) que participa de uma suruba no mato; a filha com rosto adolescente (Mariah Teixeira) que acaba de sair de uma parada militar; e a mãe (Joana Medeiros), secretária do político que logo se converterá em inimigo principal. Se DNAM e Coletivo de Multidão partiam do jogo temporal clássico da distopia – imaginar um futuro, ainda que próximo, para interrogar o presente –, Sol Alegria situa a ação em 2018. O ano corrente é, no filme, a época em que o país se prepara para ser governado pelo corrupto Pastor Tirésias, cujo programa eleitoral consiste em um ataque às libertinagens imperdoáveis que nos trouxeram até aqui para melhor preparar os cidadãos-fiéis para o apocalipse previsto nas Escrituras. Logo após o prólogo, a família – convertida em coletivo de revolucionários porraloucas – matará o pastor, sequestrará seu avião e partirá em busca da mítica aldeia da falange Sol Alegria, única possibilidade de resistência possível ao estado de coisas que se anuncia.
Em termos meramente de significado político, a alegoria que desponta nesse início não é das mais imaginativas. O traço alegórico, aliás, se torna uma estratégia tão mais arriscada e fadada ao fracasso à medida em que a realidade mesma do país não cessa de produzir, a cada dia, ao vivo e a cores, figuras de linguagem cada vez menos realistas. No país da alegoria involuntária (difícil imaginar uma formulação alegórica mais potente sobre o Brasil do que o tableau vivant mil vezes reencenado de Bolsonaro com o deputado Hélio Negão “a tiracolo”), onde a verossimilhança já foi pras cucuias há muito tempo, qualquer alegorista tem trabalho dobrado. Em Sol Alegria, no entanto, o furor alegórico se espalhará por todo o filme e se transformará a cada novo ato, em uma deriva vertiginosa que faz pensar imediatamente em Orgia ou o Homem que Deu Cria (João Silvério Trevisan, 1970). Como no filme de Trevisan, além do forte investimento na corporeidade das performances há aqui a estrutura de um filme-cortejo, ao qual novas figuras vão se agregando à medida em que as que permanecem se alteram a cada nova peripécia.
No primeiro destino, a família é recebida com festa em um convento de freiras libertinas plantadoras de maconha que participam do mesmo ímpeto revolucionário. Nessa espécie de primeiro ato na jornada rumo à aldeia o que salta imediatamente aos sentidos é afirmação de um banquete em imagens e sons: dos figurinos exuberantes às piadas deliciosas, da música constante aos corpos nus, dos tombos hilários aos beijos fogosos, da comida farta à erva abundante, dos reencontros emocionados à comunhão afetiva que se engendra imediatamente, das cores vivas à duração estendida do ato na dramaturgia do filme, tudo aponta para uma afirmação vigorosa da alegria como energia de resistência. No extremo oposto das alegorias sisudas que o cinema brasileiro também formulou nos últimos anos, Sol Alegria compõe uma festa tropicalista que não fica devendo nada aos melhores momentos dionisíacos da produção do Teatro Oficina.
Quando Walter Benjamin inventou sua teoria da alegoria (que influenciaria decisivamente a arte moderna) a partir do drama barroco alemão, a melancolia era um traço decisivo. Mas se o olhar barroco é melancólico, ao enxergar o mundo como coleção desencantada de objetos disponíveis para a alegoria, como coletânea de fragmentos destinados à montagem, Sol Alegria se investe de uma operação semelhante – também aqui os signos fragmentários compõem uma encenação fortemente heteróclita –, porém o filme é, no mesmo movimento, impregnado de um profundo vitalismo. Se o convívio dos contrários se materializa em cada composição – a filha participa de um desfile militar nacionalista em que a banda inteira tem figurinos rosa-chiclete –, a montagem acentua a justaposição entre pares improváveis: de um plano a outro, um corte conduz das pirocas iluminadas na floresta ao falo que sobressai do tanque de guerra no desfile militar. Tudo nessa escritura aponta para uma composição extravagante, onde cabem signos contraditórios advindos dos mais variados lugares, mas ao mesmo tempo cada sequência é tomada pela energia performática vital dos corpos e pelo ritmo febril da montagem.
Logo veremos que o convento também está imerso em profundas contradições – a madre superiora maconheira e controladora da buceta alheia, os primeiros sintomas incômodos de uma caracterização da filha como esperança imaculada por todos ao redor, as pequenas violências que já começam a despontar –, característica que se acentuará mais e mais daí em diante. O entrecho na estrada – já com Toreba como agregado da família – figura uma busca labiríntica pela tal aldeia, cheia de bifurcações e atalhos que não levam a lugar algum. No desenvolvimento esplendoroso do trabalho com a back projection que já despontava com força em Batguano (Tavinho Teixeira, 2014), Sol Alegria inventa um novo lugar para a colagem alegórica: nas viagens de carro, o que no back projection clássico era mera decoração passou a ser uma cena autônoma, que entra em tensão dialética com o que acontece no interior do veículo, até o ponto em que dois os polos da imagem passam a se interpenetrar, numa espécie de orgia visual em que já não se sabe o que é figura e o que é fundo.
Pouco a pouco, um tom saturnino começa a se infiltrar no filme: o tropicalismo de “Baby” cede espaço para o da regravação de “Coração materno”. E é significativo que o ponto de inflexão seja justamente a sequência na praia com textura de Super 8: no lado oposto da nostalgia, Sol Alegria tinge de sangue um conjunto de imagens muito frequentemente tratadas como idílio de uma beleza perdida. As relações no interior da família se estranham, a identificação do filme – e do eventual espectador – com os revolucionários vacila. Tudo se torna mais e mais ambíguo, até o limite em que uma definição moral ou política qualquer dos personagens se torne impossível. Não é nada menor o fato de que a falange Sol Alegria, alegoria-mor de uma coletividade revolucionária, tenha como seus fundamentos dramatúrgicos os elementos mais basilares da reação: a família e a igreja.
Como escreveu Ismail Xavier sobre a verve alegórica da arte moderna, tratava-se de conectar “uma bomba de vácuo à máquina decifradora” da fruição. Mas não há espaço para hermetismo ou para austeridade aqui. Em Sol Alegria, tudo é cheio de brilho, vibrante, extremamente sedutor – enquanto o sentido permanece em um estado profundo de mistério. Da forma mais improvável possível, Tavinho e Mariah Teixeira encontram Jean-Marie Straub: “É preciso que um filme destrua a cada minuto, a cada segundo, aquilo que dizia no minuto precedente, porque estamos a sufocar sob os clichês e é preciso ajudar as pessoas a destruí-los”. Uma das virtudes de Sol Alegria é o traçado de uma genealogia em que a energia disruptiva das alegorias modernistas brasileiras está presente tanto em Macunaíma quanto nos Trapalhões.
No clímax final – o circo montado na tão sonhada aldeia –, cada personagem compõe um monólogo furioso, que faz explodir os paradoxos em uma dança à beira do abismo desenhada na interação entre os corpos e a câmera. É então que percebemos que o fascismo não é um inimigo comum ou um alvo fácil situado lá fora, e sim algo que corrói as entranhas, penetra os focos de resistência, reproduz-se em filigrana nos gestos mais bem-intencionados. Não há redenção possível. Ao final, essa família fraturada, revolucionária e reaça, modelo de resistência possível e sintoma das heranças nefastas das quais não conseguimos nos desvencilhar, nos encara de dentro de um carro em marcha ré. Muito mais do que em qualquer conteúdo revolucionário portado pelas vozes ou expresso nos gestos de seus personagens, é nessa ida e volta ininterrupta do sentido, nessa fricção constante entre as moralidades, nesses personagens que dizem e desdizem com a mesma sinceridade artificial – ou com a mesma dissimulação verossímil –, nessas composições heteróclitas que desafiam toda totalidade estética, nesses paradoxos dançantes que reside a invenção política mais forte de Sol Alegria.
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