A força do gestual – alguns curtas em competição no Festival de Brasília

setembro 30, 2014 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Raul Arthuso

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Sem Coração (2014), Nara Normande e Tião

por Raul Arthuso

Em Geru, de Fábio Baldo e Tico Dias, acompanhamos o cotidiano de um senhor de idade, frágil, mas ainda bastante ativo. Ele fala para a câmera logo no primeiro plano, mas, sem voz, nenhum som é emitido. A certa altura, a câmera invade a cena. Isso se dá após o protagonista assistir pela televisão uma cena de O Cantor de Jazz (1927), primeiro filme sonoro da história. Inicia-se um paralelo do protagonista com o cinema – o velho está completando cem anos. O documentário – até então de observação, guardando certa distância para o tempo das ações do protagonista – se emancipa: um jogo de xadrez entre a câmera e o protagonista emula o famoso duelo entre o personagem de Max von Sydow e a Morte em O Sétimo Selo (1957). No fim do processo, a câmera assume o ponto de vista do protagonista Geru. O filme de alteridade apontado no início se contamina pela câmera e passa a predominar a mão do diretor, o forte gestual de quem porta a câmera.

Geru (2014), Fábio Baldo

Geru (2014), Fábio Baldo e Tico Dias

Geru é apenas um exemplo marcante dessa caraterística que perpassa o conjunto dos curtas-metragens exibidos no Festival de Brasília este ano. Junto com La Llamada, de Gustavo Vinagre, são os filmes nos quais o impulso inicial do retrato do outro se mostra mais forte. Se em Geru acontece uma virada de mesa e a presença da câmera e do gestual torna-se elemento central na parte final do filme, esse jogo é já ponto de partida de La Llamada: no primeiro plano, o personagem Lázaro conversa com alguém fora de quadro sobre a instalação do telefone em sua vendinha, num pequeno povoado cubano. Lázaro ama a revolução cubana e passa seu dia “enjaulado” em seu trabalho. Já a personagem fora de quadro, cuja voz é a mesma, modifica-se. Primeiro é um funcionário da empresa de telefonia; momentos depois se passa pelo filho de Lázaro, com quem ele não tem muito contato, encenando uma fictícia ligação telefônica entre pai e filho; por último é o entrevistador de Lázaro. Ainda que o velho revolucionário seja uma bela figura, é o personagem fora de quadro que mais interessa: Lázaro é rapidamente identificado e toda a informação sobre ele é colocada até de forma bastante convencional. Já este personagem fora de quadro, entrevistador conhecido de Lázaro que dialoga com ele como alguém íntimo, é o ponto de equilíbrio do filme. Mesmo com toda a tentativa da câmera de fazer-se invisível para observar e registrar a movimentação de Lázaro e o diálogo com os clientes da vendinha, a presença da câmera é marcada por essa personagem que, desde o primeiro momento, bateu ponto no jogo – interessante que aqui há um jogo de xadrez na própria constituição do filme mais evidente que em Geru. Arrisco dizer que a personagem mais interessante de La Llamada é esta atrás da câmera: seu movimento é o verdadeiro mistério do filme.

La Llamada (2014), Gustavo Vinagre

La Llamada (2014), Gustavo Vinagre

Minha preferência pela palavra gestual vem dessa tensão. Além do desgaste do termo “estilo”, ele é falho nessa questão, pois o estilo parece implicar em algo para além da obra, uma marca que independe do assunto e pertence mais ao artista que à obra. O caso aqui é diferente: existe relação dialética, em alguns casos não muito bem resolvida, entre o artista e a obra autônoma. Com a palavra gestual espero marcar a posição do artista no interior do filme. Isso porque algo a se notar sobre a produção de curta-metragem, cuja seleção de Brasília é um recorte possível entre tantos outros, é a predominância do narrativo. São raros os casos de curtas-metragens cujo cerne está em uma idéia visual que se desdobra (Palíndromo, 2001, de Philippe Barcinski), articulações em torno da visualidade plástica da imagem (Man.Road.River, 2004, de Marcellus L.) ou filmes lidando com o específico cinematográfico (os curtas de Carlos Adriano). O grosso da (enorme) produção em curta-metragem que chega via festivais de cinema atualmente tem uma irredutível tendência narrativa. Com isso em mente, a tensão entre o gestual e o narrativo fica mais evidente.

Isso é mais palpável quando se lida com o gênero cinematográfico, como é o caso de Estátua!, de Gabriela Amaral Almeida, e Loja de Répteis, de Pedro Severien. O primeiro segue a estrutura clássica do cinema de horror: uma personagem comum em situação corriqueira serve como trampolim para o medo, por um tour de force com uma força sobrenatural. É um universo ficcional muito próximo dos outros curtas-metragens da diretora (também roteirista de Quando Eu Era Vivo, de Marco Dutra), porém aqui os dados são mais claros e identificáveis. Por sua vez, o gênero subsiste numa construção reproduzível ao infinito – por isso o caráter identificável do gênero. Sem marcas, as costuras desaparecem na força do suspense e do medo – finalidade do terror clássico. Então, a tensão se dá entre essa estrutura dramática do gênero que tende a apagar-se para caminhar sozinha e a construção dos planos, excessivamente marcada, participando da narrativa quase como uma consciência extra-gênero. Enquanto a fábula em si pede o apagamento, a visualidade do filme é showoff, como o habilidoso jogador com a bola nos pés. O indivíduo em conflito com o coletivo. Essa tensão entre o gênero e a mão do artista é o corpo e a sombra do filme. A dialética desse caminhar faz de Estátua! um filme singular: não se entrega o genérico nem a desconstrução; caminha-se no fio da navalha – como a protagonista – entre o material (o filme de gênero) e o sobrenatural (o gestual).

Estátua! (2014), Gabriela Almeida Amaral

Estátua! (2014), Gabriela Amaral Almeida

Algo parecido se dá em Loja de Répteis. Sua diferença está no ponto de partida, pois, se Severien pinça aspectos do cinema de horror, seu filme nunca é como Estátua!. Não se trata tampouco de uma desconstrução: em Loja de Répteis, o gestual é feito de elementos do cinema de horror – o predomínio das sombras, os ruídos remetendo ao sobrenatural, o conflito entre o humano e o bestial. As elipses da narrativa são preenchidas pelas composições visuais que remetem ao horror e o som encarna algo sobrenatural que paira no ar. . Se Estátua! transita entre natural e o sobrenatural, Loja de Répteis é a força do gestual em si – a fábula propriamente dita é um fiapo distorcido até o limite para tornar-se filme – e, se o filme de Gabriela Amaral Almeida parte do corriqueiro para chegar a uma situação do horror, o curta pernambucano é feito de virtualidades: o visual encarna o horror enquanto a narrativa vaga. Na falta de um corpo, Loja de Répteis é um fantasma de exterioridade.

Nua por Dentro do Corpo (2014), Lucas Sá

Nua por Dentro do Couro (2014), Lucas Sá

A armadilha de Nua Por Dentro do Couro, de Lucas Sá, é idêntica. No filme, existe uma narrativa bastante construída; a clareza da trama e o papel desempenhado por cada figura são estabelecidos rapidamente. Por sua vez, uma série de elementos parecem incompletos ao redor do universo da personagem de Gilda Nomacce e do apartamento das três jovens, convivendo num condomínio suburbano comum. São os elementos de fora da narrativa que, ao ganhar a cena ou quadro, perdem sua força ou efetivamente não chegam a tê-la. É o caso do exame recebido pelo correio por uma das garotas, elemento perdido no meio de uma narrativa, mas tratado como algo vital; ou ainda o monstro alimentado pela vizinha – aparentemente – louca: seu mistério se dá até quando aparece e seu “truque” se revela, e ele passa de elemento de tensão a brinquedo. O momento mais pleno do filme é a pequena seqüência de montagem entre o encontro de uma das garotas com a personagem de Nomacce: uma música pop domina a cena, que se desenrola em câmera lenta; e, entremeado a isso, as outras companheiras de apartamento dançam a música, se beijam e se pegam. Como Loja de Répteis, essa cena é pura exterioridade. A “cena” mesma se desfaz numa força artificial de um videoclipe arremedado que alcança a narrativa. Nua por Dentro do Couro parece perdido entre o desejo de cinema pop e a narrativa que não se basta em si, da vontade de construção de cinema que se impõe ao universo ficcional para o qual a câmera se volta. É um filme de pontas soltas sem elipses e sem final aberto, de narrativa inconclusa sem mistério, de olhar para composição de planos, mas sem consistência de montagem. Fica entre o pastiche e a reprodução de todos os erros do “lixo cinematográfico”. Talvez a personagem mais interessante seja a única para quem o filme efetivamente olha sem impor uma construção de personagem de cinema: a síndica do prédio, cuja extensão da cena e a placidez do registro permite extrair uma graça que vem de dentro do filme. Nua por Dentro do Couro incha pelo desejo de cinema e parece fugir do controle, pedir algo mais: mais tempo, mais cena, mais plano.

Um tipo de inchaço é sensível também em Bashar, de Diogo Faggiano. Sua especificidade está no tamanho do tema: o filme tenta lidar com o conflito civil na Síria. Existe, primeiro, algo de inusitado em um curta-metragem brasileiro olhar para essa questão, distante culturalmente da realidade brasileira. Entretanto, o filme dialoga com essa “defasagem”. Diversos registros convivem em Bashar: a entrevista, o programa de televisão, a esquete cômica, o vídeo de internet, o documentário direto – impressionam as cenas no front. Mas a palavra conviver é imprecisa, pois esses registros, na verdade, minam um ao outro, confrontam-se, parecem brigar por um lugar na articulação do filme. Bashar reproduz em certa medida a visualidade do desastre e da destruição: é um filme a ponto de explodir, dada a quantidade de informações com as quais tenta lidar.

Bashar (2014), Diogo Faggiano

Bashar (2014), Diogo Faggiano

Dentro deste quadro, o filme se agarra às possibilidades de ser apenas mais uma fagulha de informação em meio ao turbilhão de imagens e dados veiculados já sobre o conflito. Faggiano opta pela manipulação extrema das imagens de arquivo, distorcendo cores e aplicando camadas de efeito de televisor, texturizando as imagens ao ponto de não ser possível mais vê-las. Bashar, personagem central, torna-se a representação última da operação do filme: sua voz é ouvida, seu corpo está presente, mas apenas enquanto imagem distorcida e amputada pelo quadro. Suas informações são apenas um ato de manipulação de dados frente à opinião pública. Bashar poderia muito bem cair na inocência da revelação frente à quantidade de material disponível (algo operado, por exemplo, por Crônicas de uma Cidade Inventada, outro curta-metragem exibido em competição); mas sua virada de mesa está em tornar-se um fantasma, fazer do gestual a operação do desastre tanto da destruição da Síria quanto das articulações do filme – a cidade bombardeada, tornada escombros, rima com a imagem distorcida em pós-produção, escombros de algo que fora imagem em determinado momento do passado. Fragmentação da montagem, excesso de informações, manipulação das texturas, multiplicidade de registros: a gestualidade de Bashar é a incapacidade do próprio filme em achar seu corpo.

Sem Coração (2014), Nara  Normande e Tião

Sem Coração (2014), Nara Normande e Tião

Por fim, um caso particular se dá com Sem Coração. Se vários dos filmes se concentram no papel desempenhado pela mão do artista em sua relação com as narrativas, o filme de Tião e Nara Normande é um caso raro hoje no cinema brasileiro, seja em curta ou longa-metragem, no qual a dialética entre a mão do artista e a narrativa tende à harmonia. Isso porque Sem Coração absorve sua influência indo direto às estruturas, e não à emulação de planos: sente-se a presença de Claire Denis na articulação do filme a partir de elipses, interrupções e planos epidérmicos, mas, menos que formas reproduzíveis, percebe-se a influência da realizadora francesa no olhar penetrante do filme para uma cosmologia do corpo. Sem Coração é sobre o corpo a ser preenchido, como o pré-adolescente a apaixonar-se, o desejo a realizar-se, a epiderme necessitando de um organismo, a narrativa composta pela mão do artista. A piscina à beira-mar, o peito sem coração, a paixão sem contato… Cheios e vazios transitam pelos planos, como o grão da película constituindo a imagem – noção de preenchimento físico que a imagem digital cada vez menos contempla. Tudo se resume na cena do protagonista realizando seu desejo do contato sexual com a garota na frente dos colegas, e, em seu ouvido, afirma, na verdade, querer beijá-la. Sem Coração é de uma fisicalidade visual ao mesmo tempo em que sua visualidade é a do corpo. Esse jogo entre a imagem e o físico, entre cheio e vazio, preenchimento e distensão, invasão e pertencimento é o ideal de Claire Denis, realizado aqui pelas entranhas, e não nos modos. Mas isso não é o essencial: importa que Sem Coração seja um filme fluido, e as questões da percepção do gestual e da narrativa desapareçam, pois se está diante de um filme, de fato. Narrativa e composição visual se fundem; falar na mão do artista sobre a obra ou vice-versa já não faz muito sentido. Destrói-se o crítico. Este é o ideal do cinema.

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