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Ouvindo com olhos livres

O dicionário Houaiss registra, no sentido figurado, duas acepções para “caleidoscópio”: 1) “conjunto de objetos, cores, formas etc. que formam imagens em constante mutação”; 2) “sucessão vertiginosa, cambiante, de ações, sensações”. A palavra foi adotada em 2018 para nomear uma mostra paralela do 51o Festival de Brasília composta por cinco longas-metragens que, segundo texto do catálogo do evento (repetido diariamente por um apresentador antes de cada sessão), abriam espaço “para realizadores que se arriscam muito, em suas propostas absolutamente únicas e pessoais (seja no sentido individual ou de grupos de pessoas criativas)”. A programação se concentrou entre os dias 17 e 21 de setembro (segunda a sexta-feira) no Museu Nacional da República, sempre às 16h30, com bate-papo com os realizadores logo em seguida às exibições. Reprises se seguiram no sábado, 22, e domingo, 23. Entre os títulos, constavam O Pequeno Mal (Lucas Camargo de Barros e Nicolas Thomé Zetune, SP), Calypso (Rodrigo Lima e Lucas Parente, RJ), Os Jovens Baumann (Bruna Carvalho Almeida, SP), Os Sonâmbulos (Tiago Mata Machado, MG) e Inferninho (Guto Parente e Pedro Diógenes, CE).

Um elemento em comum entre os cinco filmes aparecia antes mesmo da mostra acontecer e pela via da negação: por estarem num recorte paralelo, nenhum deles participava da competição principal do festival. Dois dos filmes chamavam especialmente atenção por esse aspecto: Os Sonâmbulos, primeiro trabalho de Tiago Mata Machado depois de Os Residentes, que saiu do Festival de Brasília em 2010 com quatro troféus Candango; e Inferninho, que em 2017 participara do programa “Futuro Brasil” (que exibe projetos em desenvolvimento), também no festival. Nenhuma das circunstâncias era garantia ou salvo-conduto para que ambos efetivamente participassem da competição, claro. Mas, a quem acompanha com regularidade o circuito de festivais (não só brasileiros), algum estranhamento se acendeu. O que não teria encantado a comissão de seleção para que tais filmes ficassem numa paralela realizada à tarde num espaço que não o Cine Brasília, centro nervoso do festival?

O estranhamento não se devia só às particularidades exteriores dos dois citados, mas principalmente ao conceito da mostra Caleidoscópio de, ainda conforme o catálogo, ser “um importante complemento” ao “espaço da mostra competitiva, por mais amplo que se apresente”. Assistindo-se aos cinco filmes, esclarece-se um pouco mais que o “importante complemento” se pautou por produções que de fato não pareciam se conectar ao cenário que a competição de 2018 apresentou, caracterizada pela predominância de trabalhos nos quais questões e temas pululavam da tela diretamente às sensibilidades mais efervescentes do atual momento político-social brasileiro, ao trafegar por discussões de relevância nos debates contemporâneos, como representação e representatividade, presença de novos/outros corpos em cena, recorrência de afetos e abalos advindos de uma sociedade injusta e excludente e questionamentos de um certo status quo social que tende a se reproduzir no audiovisual.

A enumeração acima em nada quer dizer que a mostra competitiva do Festival de Brasília 2018 tenha sido composta de filmes mais ou menos significativos. De fato, uma presunção possível é a de que a comissão de seleção detectou (e levou adiante à competição) um pragmatismo multifacetado de possibilidades outras do cinema brasileiro contemporâneo na abordagem de determinados assuntos a partir de novos pontos de vista que têm se visibilizado num rearranjo de enunciações há muito represadas e que enfim estão sendo colocadas em campo. Em especial Temporada, de André Novais Oliveira; A Sombra do Pai, de Gabriela Amaral Almeida; e Bixa Travesty, de Cláudia Priscila e Kiko Goifman, apresentaram formulações em grande parte renovadas nos parâmetros de suas linguagens: da afetuosidade comunitária de um bairro periférico de Contagem (Temporada), do duro ambiente do trabalho braçal que se impregna de um horror projetado pelo imaginário infantil (A Sombra do Pai) e do retrato amplificado e explosivo de uma neocelebridade, Linn da Quebrada, que dá curto-circuito no conservadorismo mais pedestre e se impõe como corpo e presença urgentes (Bixa Travesty).

Entre os demais filmes da competição, o gesto criativo também se fez constante, ora provocando verdadeiros abalos nas estruturas, ora apenas reiterando o já conhecido, ainda que sem indiferença ou ingenuidade. Diretamente das trincheiras da greve dos caminhoneiros, Bloqueio (Victória Álvares e Quentin Delaroche) se arrisca à superficialidade para oferecer registro direto de um front ainda não devidamente construído pelo cinema brasileiro, assim como faz, pela via ficcional, New Life S.A. (André Carvalheira), espécie de irmão mais imaturo do cinema de Sérgio Bianchi. Ilha (Glenda Nicácio e Ary Rosa), Luna (Cris Azzi) e Los Silencios (Beatriz Seigner), igualmente conectados (em maior ou menor grau) à incontornável visibilidade e viabilidade de corpos e espaços outros, lenta e discretamente constroem a complexidade das relações em choque, da violência que rasga e do afeto que impregna, enquanto Torre das Donzelas (Susanna Lira) recorre à ficção da memória para reconfigurar um período-chave do terror da ditadura militar pós-1968.

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Na mostra Caleidoscópio, por sua vez, ainda que alguns elementos vez ou outra convergissem em diálogo com os títulos da competição, a essência de cada filme partia de proposições distintas. O risco estético-visual, as abordagens poéticas a certas formas de estar no mundo (e reagir a ele), o manejo com as texturas da imagem e do som, a indefinição de limites entre o que se “narra” e o que se vê ou percebe, a quase ausência de personagens “tácteis”, o recorrente mergulho no vácuo de sentidos lógicos em direção a incertezas de percepção – eis um resumo do que se podia encontrar naqueles cinco trabalhos. Um cinema do ruído, da ruptura, do obstáculo, sem convites a melhor compreensão de seus mecanismos. Não por menos, na apresentação da Caleidoscópio, o catálogo do festival invocava Jairo Ferreira e seu conceito de cinema de invenção, que pregava “invenção de uma outra estética. Invenção da música de outra ordem. Cinematografia: invenção permanente. O experimental em nosso cinema (ou não): a música da luz”.

Entendida a proposta da Caleidoscópio, vêm algumas questões. Se essa mostra paralela trazia “propostas absolutamente únicas e pessoais”, havia contradição de seus filmes estarem sendo apresentados como “um complemento” à competição e exibidos fora do espaço e horário nobres do festival? Existia risco de a mostra ter pouco alcance com uma fatia de público (especialmente local, mas não só) que talvez não se deslocasse para o Museu Nacional no meio da tarde de alguns dias da semana, fazendo com que os filmes fossem vistos predominantemente por espectadores relativamente experientes na decodificação de vários dos códigos propostos? Se a Caleidoscópio continha “propostas absolutamente únicas e pessoais”, por que mover a “invenção” da centralidade de um grande evento para um local e hora alternativos?

Todo grande festival de cinema, no mundo inteiro, se compõe de várias mostras – em muitos deles, há a competição e há as paralelas, de acordo com critérios próprios para cada organização. Não seria justo cobrar postura diferente do Festival de Brasília, com sua abrangência histórica e cultural. Desde 2016, quando Eduardo Valente assumiu a coordenação artística do festival, ampliou-se significativamente a quantidade de seções para além da competitiva e, consequentemente, o número de filmes exibidos anualmente (inclusive porque houve a decisão de ampliar também a competição, passando de seis para nove longas). Em 2015, por exemplo, foram duas paralelas que somavam 10 filmes. No ano seguinte, já com Valente à frente das comissões de seleção, foram 15 filmes em três paralelas. Em 2017, novamente três paralelas, com a celebratória 50 Anos em 5 Dias (que comemorava a quinquagésima edição do festival) contendo uma verdadeira maratona de 23 títulos, entre curtas e longas-metragens. Por fim, em 2018, foram quatro paralelas somando 18 títulos.

Chamar atenção aqui justamente à Caleidoscópio se deve a ela ser a única paralela do Festival de Brasília 2018 (e, talvez, de todas as paralelas desde 2016) a lidar com um recorte para além do conteúdo e teor dos selecionados. Não se tratou de delimitação temática, nem autoral, nem retrospectiva, nem celebratória. Em comum, no máximo, a onipresença de grupos de personagens em espaços (físicos ou sentimentais) à margem de qualquer tipo de centralidade. A base da mostra foi conceitual, e conceitos são fluidos e passíveis de um sem-número de variáveis. A mesma sensibilidade que inseriu na competição um filme como Ilha poderia deslocá-lo para a Caleidoscópio, assim como Inferninho estaria apto ao caminho inverso – para ficarmos com dois exemplos que, por motivos vários, guardam importantes pontos de contato. Os motivos para a competição de longas ser da forma como se apresentou pertencem à alçada da comissão de seleção, em sua legitimidade para tais definições. A se considerar novamente o texto do catálogo (“o espaço da mostra competitiva, por mais amplo que se apresente, não dá conta de esgotar as propostas inventivas que cineastas nos propõem”), a prerrogativa para a competição foi de definir títulos mais próximos a determinadas urgências do tempo histórico brasileiro de hoje que se apresentavam num escopo mais plural e representativo de ascendentes (e, por muito tempo, sufocadas) sensibilidades e disputas de narrativa. Para a Caleidoscópio, direcionaram-se filmes cuja invenção parece estar em outra ordem, posicionada num espectro não completamente marcado por evidências.

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A fluidez contida na ideia do “cinema de invenção” deu à Caleidoscópio uma miríade de possibilidades, desde filmes mais propensos a narrativas fixadas em sequências e consequências, especialmente O Pequeno Mal e Inferninho, até outros bastante enigmáticos, rarefeitos e lacunares, como Os Jovens Baumann, Os Sonâmbulos e Calypso. Em todos, a deliberada não-necessidade de amarrar pontas ou dar a ver soluções óbvias nas suas construções formais. Mesmo um trabalho mais afeito à autocomiseração como O Pequeno Mal – que insiste numa constante “melancolização” de seus próprios efeitos – faz toda tentativa possível de escapar do que se espera de um drama juvenil urbano.

Em Calypso, o exuberante exercício de performance audiovisual se ambienta na Ilha do Sol, na Baía de Guanabara, cenário a uma “releitura” da passagem de Luz del Fuego pelo lugar a partir do mito da ninfa marítima que, na Odisseia, faz de tudo para quebrar a promessa de Ulisses de se manter puro até reencontrar a amada Penélope. Pela movimentação dos corpos da dupla Julia Gorman e Walter Reis e na invocação das imagens do curta-metragem A Nativa Solitária (1954), no qual Francisco de Almeida Fleming documentava Del Fuego e seu clube de naturismo fundado na ilha, Calypso liquidifica Villa-Lobos e poluição, dança e línguas nativas, erotismo e aventura, Noel Rosa e ópera, Bressane e Rossellini. Culmina num dos planos finais mais impressionantes do cinema brasileiro em muitos anos.

Depois da experiência de Calypso, o filme seguinte da Caleidoscópio, em alguma medida, relaxou os humores. Os Jovens Baumann não é exatamente “suave”, mas certamente era o mais lúdico dentre os cinco títulos da mostra. A começar pela escolha do VHS como forma de registro das imagens, dando ao filme um aspecto propositadamente anacrônico, como se vindo de outros tempos (nem tão distantes). O found footage arquitetado por Bruna Carvalho Almeida se estabelece a partir de uma narração em off que, num futuro bastante adiante à ação das cenas em VHS, apresenta os registros de uma família que desaparecera misteriosamente. Introduzindo vários pequenos mistérios na fala reflexiva e melancólica, a voz convida o espectador a decifrar um quebra-cabeças que desde o princípio se revela uma armadilha. A natureza de Os Jovens Baumann é a do “mockumentary” (ou “falso documentário”), que paradoxalmente é sua força e sua fraqueza. Força porque permite ao filme jogar com destreza os limites de percepção das imagens e com tudo aquilo que, entre um corte e outro, nunca será recuperado, exigindo que se crie, na individualidade de quem assiste, uma conexão entre o que não se vê e o que talvez tenha acontecido; por outro lado, a fraqueza está no próprio truque, que se esgota rápido demais tão logo sobem os créditos com os nomes de atores, atrizes e técnicos que cuidadosamente encenaram o que foi feito para parecer tão “verdadeiro”.

Das estripulias misteriosas dos Baumann, a mostra fez um salto para a desilusão política de Os Sonâmbulos. Assim como em Os Residentes, Tiago Mata Machado mostra um grupo de personagens em interação, porém agora a escuridão (interior e exterior) domina. Saem as ironias e as contradições da arte, emergem o esvaziamento e a melancolia de uma contemporaneidade que está se acostumando à irrupção do totalitarismo e à opressão à resistência. No debate pós-sessão, Mata Machado revelou inspiração no filósofo Giorgio Agamben e seu Estado de Exceção. Agamben, no livro, parte de Walter Benjamin para defender a ideia de que a exceção como condição se tornou regra, o que faz com que haja certa normalidade naquilo que deveria ser anormal. Os Sonâmbulos é a manifestação ficcional mais concreta de aonde foi parar a energia das manifestações de 2013 e de tudo que aconteceu dali adiante no Brasil e também em escala global. A reflexividade (e autorreflexividade) do filme não se resume a aspectos únicos ou específicos de determinadas condições políticas e sociais, e sim capta atmosferas e sentimentos de um pequeno coletivo arquetípico que insiste em acreditar que alguma luz pode nascer no dia seguinte. Como Era uma Vez Brasília (Adirley Queirós), exibido na competição de 2017 do festival, Os Sonâmbulos é o tatear, ainda grogue das bombas, de uma ebulição que passou e não deixou muita coisa de pé para além de corpos, sombras e imobilidades.

A conclusão da Caleidoscópio ficou com a explosão imaginativa de Inferninho, levando a mostra novamente a uma chave lúdica, desta vez pelos labirintos de outro conjunto de personagens isolados num determinado ambiente. Se Os Sonâmbulos tem em Era uma Vez Brasília um duplo possível, Inferninho está próximo de outro brasileiro recente, Sol Alegria (Tavinho Teixeira e Mariah Teixeira, 2018), também devedor da teatralidade da presença do corpo e do artifício como forma dramática para lidar com as contradições e a potência ficcional de um grupo de indivíduos singulares. Ecos de Carlos Reichenbach (e consequentemente de Valerio Zurlini, um de seus ídolos) irrompem na construção das cenas de Inferninho, no olhar cúmplice para o “rés do chão” de uma sociedade brasileira fundada a partir da exclusão e no mergulho pela mente de Deusimar (Yuri Yamamoto) nas suas cada vez mais infinitas possibilidades de escape. Na aproximação com personagens que parecem existir uns para (e pelos) outros, o filme resulta numa crônica em que o realismo não é parâmetro para que a concretude dos gestos e dos corpos defina a verdade do que se vê. A força está justamente na ideia de presença, na pujança de um cinema que se apropria do teatro, da dança, da literatura, dos quadrinhos e de uma rede referencial de vários tempos e gerações para se fixar num núcleo muito restrito de pessoas e acontecimentos, cujos arcos dramáticos não se fecham em conclusões fáceis.

Inferninho foi o clímax de um pequeno apanhado de produções que, para retornarmos a Jairo Ferreira, é a “iluminação de um novo continente. A música de um novo ser da experimental cinematografia terrestre ou não”. Mesmo esse conjunto de filmes estando, por circunstâncias externas a eles, num recorte “complementar” ao miolo do Festival de Brasília, certamente a força de suas imagens e sons (com graus variados de uns para outros) soube fazer jus à exaltação de Jairo: “Não há essa de que um filme do experimental em qualquer latitude e em qualquer cinematografia nunca foi nem será ouvido: ele é ouvido. Ouça com olhos livres”.


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