Batguano, de Tavinho Teixeira (Brasil, 2014)

fevereiro 4, 2014 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Em Cartaz, Fábio Andrade

* Cobertura da Mostra de Tiradentes 2014

batguano

A verdade do falso
por Fábio Andrade

“A paisagem pintada no palco dificilmente poderia rivalizar com as maravilhas da natureza e da cultura em cenas filmadas nos recantos mais sublimes do mundo. São amplas vistas, de florestas, rios, vales e oceano, que se abrem diante de nós com todo o impacto da realidade”.

Hugo Munsterberg, The Film: a Psychological Study.

Batguano, segundo longa-metragem de Tavinho Teixeira, começa com um plano geral que mostra uma frondosa fábrica que se impõe à mata que cresce à beira de uma auto-estrada. A montagem corta para um plano de um galpão e, em seguida, adentra aquele espaço, de onde ela não mais sairá. A natureza, que dominava boa parte do quadro no primeiro plano do filme, será retomada apenas como elemento de cena – de teatro – em parte do cenário fechado onde se passa praticamente todo o filme. Dentro deste galpão – uma fábrica (de sonhos? De filmes?) abandonada que mais parece um estúdio de cinema -, Batman (Everaldo Pontes) e Robin (Tavinho Teixeira) moram em um trailer, o espaço de descanso (da aposentadoria?) do ator em um set de filmagem hollywoodiano, e cumprem os sonhos dourados de gerações de fãs de super-heróis: são um casal. Batguano é um filme protagonizado por super-heróis que, como Beavis e Butthead (citados em uma cena do filme), não saem da frente da televisão – super-heróis inúteis, portanto, que não só não lutam contra o mal, mas ajudam a propagá-lo.

As aproximações desta breve premissa com todo um apreço pela apropriação e ressignificação dos super-heróis norte-americanos pela pop art, o tropicalismo (não faltam bananas em Batguano) e o cinema underground brasileiro – para usar um termo mais abrangente do que simplesmente “marginal”, e com isso incluir filmes como Meteorango Kid – O Herói Intergalático (1970), de André Luiz Oliveira, e Superoutro (1989), de Edgard Navarro – é uma primeira chave de associações possível, mais imediata, decerto, mas também imprecisa em seu potencial de revelação. Pois, ao contrário do deslocamento amulambado de personagens de um imaginário de estúdio primeiro-mundista para os cortiços infiltrados e os pés cravejados por pregos enferrujados nas ruas do realismo brasileiro (vinculado, inclusive, a uma longeva tradição literária), em Batguano o processo é um tanto inverso. Batman e Robin são apenas ícones mais reconhecíveis dentro de um filme totalmente dedicado a confrontar e ressignificar os limites entre imagem (cinema, fotografia, espelhos e até mesmo a imagem religiosa, com o presépio final) e realidade, em uma estilização auto-evidente da cena cinematográfica que parece, de fato, muito mais próxima de um filme como Anjos da Noite (1987), de Wilson Barros, ou com Fundo do Coração (1982), de Coppola. O que está em questão, aqui, não é o deslocamento de um signo de seu habitat natural de maneira a inverter sua polaridade, mas a potência que aquilo que se assume como falso tem de revelar a verdade.

“Quanto simulacro para possuir um corpo”, diz o Batman de Everaldo Pontes. Em Batguano, o homem-morcego (alcunha que, quando feita literal, se mostra bastante iluminadora da premissa do filme: um mundo devassado por uma peste disseminada pelas fezes de morcegos que tiveram contato com fezes humanas) se transformou no morcego-merda de seu título – mutilado, com um braço arrancado por um acidente do passado que o cinema institucionalizou ao se emancipar do teatro: a mutilação de um close-up – a ferramenta de ouro do star system, da publicidade e da televisão. “Sempre que a atenção se fixa em alguma coisa específica,” escreveu Munsterberg, no seminal The Film: a Psychological Study (1916), “todo o resto se ajusta, elimina-se o que não interessa e o close-up destaca o detalhe privilegiado pela mente”. Em uma sequência apropriadamente atípica, o filme joga diretamente com esse aspecto mutilador do quadro, separando as cabeças de Tavinho e de Everaldo Pontes lado a lado, dentro de pequenas janelas que recortam uma parede branca, feito rostos sem corpo. Em quase todo o resto de sua duração, Batguano é um filme justamente sobre o que não interessa, o que foi deixado às margens do close-up (não à toa, a casa dos atores é seu lugar nos bastidores), borrado na ausência de profundidade de campo e no colonialismo da própria fotogenia. É, afinal, um filme sobre envelhecer. E se a idade que importa, no caso, é a das estrelas, é necessário fechar as portas do estúdio – um microcosmo nitidamente distante das “maravilhas da natureza” que Munsterberg trazia como índice da extraordinária capacidade cinematográfica de imprimir o real como real – para, uma vez lá, evitar o close-up, afastar o rosto da fonte de imagem, manter os elementos sempre em relação dentro do tempo e do espaço. É preciso se manter fiel a uma apreensão realista de um espaço assumidamente irreal, como se somente O Iluminado (1980) pudesse exprimir a verdade interior de Veronika Voss.

Se, por um lado, o envelhecimento é tão inevitável quanto todo filme é linear, Batguano troca a subserviência à decadência das narrativas teleológicas por um conjunto de esquetes especulativas, de pequenas encenações e modulações de intensidades que, ao mesmo tempo, retomam a mesma questão e, ao desdobrá-la em várias representações, adiam o fim. Este exercício cíclico de encenar e reencenar diferentes faces de uma mesma coisa – não tanto uma janela quanto um prisma, diria Arnehim – é irregular por natureza, mas o esmero da criatividade e do esforço de acabamento permite que Tavinho Teixeira alcance alguns momentos dignos de antologia. Se só é possível se aproximar da verdade de um personagem fixo escancarando o simulacro, Batguano impressiona pelos momentos em que sua construção se mostra mais refinada, mais complexa, mais inquebrantável, e o efeito de realidade se impõe à exposição do truque. Em uma cena, um carro conversível está parado em frente a uma tela de back projection. Batman e Robin entram no carro, acendem os faróis, giram o motor, e a projeção começa a avançar pelas ruas de uma cidade filmada. Lentamente, a câmera se movimenta em direção ao carro, reenquadrando a cena de maneira que os limites da tela não sejam mais vistos, e o efeito da back projection se efetive. Não é necessário muito tempo para que o carro, que sabemos estar imóvel dentro de um galpão, pareça de fato se movimentar pelas ruas da cidade (e o filme tem ainda outros dois ou três momentos preciosos de interação entre os personagens e as imagens da back projection): “que experiência incrível esta de existir!”, diz o Batman. Como os próprios personagens, vemos que é falso e, ainda assim, acreditamos.

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Em outro momento, Batman senta de frente para um espelho de camarim, com a típica moldura de luzes que suaviza os traços dos rostos dos atores, e reclama de ainda sentir coceira no braço amputado. Robin se aproxima e começa a coçar não o resto de braço de Batman, mas seu reflexo no espelho. Quando, ao final, Robin dá um beliscão na imagem refletida, Batman, do lado de cá do espelho, sente a dor.

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O que vemos é uma estilização surpreendente e um tanto sem lugar no cinema brasileiro de ficção contemporâneo – frequentemente apegado ao realismo das ruas e das locações reais, seja por gosto ou por necessidade orçamentária -, mas que busca um raciocínio paradoxalmente presente em parte da melhor produção documentária brasileira da década passada (Santiago, Jogo de Cena): afirmar como os artifícios da encenação são ferramentas potentes de exposição da verdade. Pela brechas do falso, o mundo concreto, real, natural, se impõe. “O mato tá tomando conta de tudo”, diz Robin, arrancando um pedaço de planta que cresce dentro do galpão. “Deixa o mato entrar”, responde Batman, pois, se o mato for mostrado como mato, de certa maneira ele sempre entrará. O potencial especular da imagem – seja uma foto do passado glorioso, um michê em back projection ou uma cena de O Homem Elefante (1980) – faz com que cada criação cinematográfica carregue o peso do braço pendurado em um gancho de açougueiro ou de uma morte que, embora não seja morte, carregue o drama de parecer a morte.

Em um filme tão extraordinariamente dedicado aos poderes da aparência e à potência do momento em relação à quase ausência de encadeamento de uma narração (o que por vezes traz ao filme algumas dificuldades rítmicas), falta regularidade a Batguano para manter o alto giro de suas sequências mais potentes. Se, por um lado, não restam dúvidas da força da evocação a Morte em Veneza (1971) na caça por encontros noturnos em slow motion em um milharal (carregando não só o subtexto gay mais superficial do filme do Visconti, mas sobretudo instaurando o envelhecimento e a perda da beleza como questões centrais para este filme mutilado em um mundo mutilado), ou do empilhamento de vozes e camadas de imagens (os home videos feitos pelas personagens, ora projetados sobre o cenário, ora tomando toda a tela e se tornando o filme que vemos), o filme parece nem sempre encontrar um registro vocal para os atores que coloque as palavras à altura do texto e o texto à altura das imagens. Batguano permanece como um salto surpreendente em relação a Luzeiro Volante (2011) e Púrpura (2013) – tanto pela distinção do próprio material, quanto pela inteireza com que o filme o apresenta – e uma incisão de frescor dentro de um certo conjunto de procedimentos aparentemente dominantes no cinema brasileiro contemporâneo. Possivelmente, ao filme falta força para saltar sobre o abismo e chegar do outro lado; mas talvez Batguano sempre tenha tido maior interesse na certeza da queda e na beleza do salto.

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