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Quatro notas sobre “Limite”

1. Limite é uma resposta indireta ao espectro ideológico que pôs fim à República Velha e trouxe à cena o desenvolvimentismo e o trabalhismo. Uma mulher sai da cadeia e retorna à cadeia no mundo do trabalho – a máquina de costura toma a forma da roda de trem. Os signos do progresso se espalham, povoando o passado dos três personagens à deriva no mar de fogo. O limite é a distopia do progresso, a constatação de que estamos presos à onipotência da natureza e não a dominamos. O único outro filme que demonstra semelhante reticência com o Brasil dos anos 1930 é o clássico Ganga Bruta (Humberto Mauro, 1933), em que os limites da mutabilidade do país são os impedimentos de sua psique – Eros e Tanatos, violência e sedução. Em Limite, o homem se rende à impávida natureza e à sua escravidão ao tempo. Não como aquele velho sábio de Terra (Aleksandr Dovzhenko, 1930), filme com o qual resguarda semelhanças, que entende com a proximidade da morte que a revolução não é um marco zero, mas uma flor desabrochando ou uma fruta da estação germinando nos ciclos exatos. Aqui, há a dor e a angústia de quem sabe que foi tudo em vão, e o Brasil não mudará. Passaram-se mais de três décadas para que tais valores que tomavam a dianteira naquele momento fossem novamente confrontados (Porto das Caixas, de Paulo César Saraceni, 1962).

2. Limite é uma síntese estética das vanguardas modernistas à mesma medida que sua negação. Emula a investigação sobre a fotogenia de Louis Delluc ou Jean Epstein, a lente objetiva como aquilo que dota vida aos movimentos registrados da natureza, que encontra neles uma música da luz, um espírito das coisas no chacoalhar das árvores, no bater das ondas, na terra bruta. Persegue um experimentalismo do olhar, marcantes movimentos de câmera, angulações inusitadas, construtos formais únicos, em parceria com o enorme Edgar Brasil, mais ambientados aos filmes dos grandes inventores europeus dos anos 1920 (F. W. Murnau, René Clair, E. A. Dupont, Abel Gance) que aos nossos pioneiros. A concepção temporal é como a de Dovzhenko – o tempo como reinante absoluto –, mas seu modo de elaboração da narrativa vem de James Joyce ou de William Faulkner, a polifonia como dado imediato do fluxo de consciência do mundo, o dentro e o fora como equivalentes – como poucas vezes visto no cinema. E há a tal “protoimagem”: as mãos algemadas sobre o rosto da mulher que Peixoto viu na capa da revista Vu. Ela é o centro propulsor de todas as outras. Todas nascem dela e retornam a ela. É uma imagem que traduz simbolicamente uma ideia, verbo e fonte geradora de todo o movimento do universo. E a narrativa segue o seu compasso, e, por isso, não se constrói. Sempre volta à estaca zero. A concepção narrativa desmonta o que o modernismo da forma constrói: não há avanço, não há evolução, não há utopia possível no mundo das máquinas ou no mundo do cinema (este que, no filme, exibe Carlitos fugindo da cadeia às bocas escancaradas e nojentas do público): há o eterno retorno à condição existencial mais básica. Mito de Sísifo.

3. Limite é cinema moderno avant la lettre. Jean-Claude Bernardet escreveu que é um dos raros precursores dos filmes de deambulação, que se tornaria traço estilístico entre os anos 1950 e 1970 (Roberto Rossellini, a nouvelle vague, Michelangelo Antonioni). “Anda-se muito, […] e andar nem sempre é fácil: os sapatos machucam ou a ferida na perna dói.” Os personagens de Limite deambulam mais que qualquer coisa. Mas o andar é mecânico, e passa a ser ele próprio objeto de interesse, num quase inventário dos modos de se andar. O Sísifo que estava condenado a fazer sempre as mesmas coisas, no cinema moderno, anda sem rumo. Não há sentido garantido à imagem, mas o interesse de sua superfície e textura. O deambular é tédio, angústia, e depois morte; porque não se vai para lugar nenhum, e morreremos num barco a esmo. Mas nenhuma andada é igual à outra. Finda a teleologia e a progressão histórica, resta-nos uma suspensão no presente do deambular, que é objeto de investigação estética. Meditação. Objeto de criação. Proliferam-se as imagens, impressões da natureza que nascem da caminhada, formas absolutamente inventivas do olhar. Exercício de composição cinematográfica. O prazer da criação como elixir contra o tédio ou a morte. Para o marginal, quando não há o que fazer, a gente avacalha. Para Limite, a gente cria.

4. Poucos filmes comprovam tão fortemente quanto Limite que o cinema brasileiro é uma enorme fábrica de mitologias fundadas por uma soma da ausência de material fílmico com os excessos de disse me disse. Entre imagens veladas (a Baía de Guanabara, de Segretto), morros desaparecidos (Favela dos Meus Amores, de Humberto Mauro), claquetadas famosas (Gregg Toland ou John Ford, em Moleque Tião, de José Carlos Burle) ou rostos estelares (Eva Nil em Barro Humano, de Adhemar Gonzaga), as ocasiões são inúmeras. Mas nenhuma delas é objeto de tanto culto, pesquisa, análise e utilização política quanto este único longa-metragem concluído por Mário Peixoto. Limite foi frequentemente citado como um dos maiores filmes já feitos, mesmo por quem nunca o assistiu. A cópia mais recente não tem ainda o filme inteiro, e chega a nós envolto por sua habitual mística. Existe graças ao esforço dedicado de gerações e gerações, partindo da alardeada sessão que Vinicius de Moraes fez para Orson Welles, até a campanha diplomática conduzida por Plínio Sussekind, que sensibilizou Jânio Quadros, ressurgindo no cuidado religioso da restauração de Saulo Pereira de Mello – a quem o cinema brasileiro deve demais –, e sacramentando-se na consciência de preservação e investimento que os Salles, e depois Scorsese e a World Cinema Foundation tiveram. Diante do vulto tremendo que o encobre, o que dizer sobre Limite hoje? Que ele é exatamente mais um (ou mesmo o maior) “tudo e nada” do cinema brasileiro? Presta-se a tudo, sem ser nada, objeto de contínua invenção de nossas origens, que mais nos assombra quão menos as entendemos e, justamente por isso, mais as sublimamos, mais as imaginamos. Ora produto do cosmopolitismo (Glauber), ora obra máxima de invenção (Jairo Ferreira), Limite é ele mesmo uma dessas titânicas protoimagens do cinema brasileiro à qual estamos inevitavelmente algemados, e, justamente por isso, precisamos dela demais.


Neste mês, a Sessão Cinética exibe Limite (1931), de Mário Peixoto. Tanto no IMS Paulista quanto no IMS Rio, a sessão será dia 20 de Dezembro às 19h. Após as exibições, haverá debates com os críticos da revista e convidados/as.

Uma vez ao mês, a Cinética faz uma sessão em parceria com o Instituto Moreira Salles, abrindo mais um espaço de reflexão e apreciação de filmes fora do circuito exibidor tradicional no Rio de Janeiro e em São Paulo. A curadoria tem a intenção de programar obras importantes, de circulação restrita nas salas brasileiras, respeitando ao máximo as características originais de projeção de cada filme. Além disso, críticos da revista produzem textos especiais para as sessões e mediam um debate após a exibição.

Limite será exibido em DCP.

Ingressos à venda na recepção do IMS e no site ingresso.com.


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