Aqueles que não querem se afetar

Durante uma hora, vinte e oito minutos e dezessete segundos, entre os dias vinte e quatro e vinte cinco de maio de 1975, a lua sangrenta se interpôs por completo entre o sol e a terra, lambuzando a Argentina de vermelho. Exatamente dez meses a partir do eclipse lunar total a Argentina sofreria um golpe, que retiraria Isabelita Perón do governo e uma junta militar, liderada por Jorge Rafael Videla, ascenderia ao poder e iniciaria uma ditadura no país. É no contexto desses dois eventos… CONTINUA

O retorno ao pornodrama

Escondida em uma quitinete no Rio de Janeiro, mais precisamente no bairro de Copacabana, a pornochanchada permanece viva entre nós. Tem saudades do tempo em que, serelepe, circulava pela cidade querida. Invadia a praia, os botequins e, principalmente, os cinemas. Passeava de carro, mantinha outro endereço em São Paulo, fumava cigarros Vila Rica – porque levava vantagem em tudo –, era fértil e desejada. Hoje muitos pensam que está morta, mas a verdade é que sempre a alimentamos clandestinamente e, de vez em quando, alguém… CONTINUA

O fundo do ar entre duas carrocerias

Logo que a greve dos caminhoneiros, em maio de 2018, bloqueou inúmeras rodovias do país e se fez assunto incontornável – por efeito cascata, percebida no desabastecimento de produtos e nas filas de carro infindáveis por combustível –, muitos interrogaram sobre o locaute articulado pelas empresas distribuidoras, instrumentalizando os caminhoneiros como “massa de manobra” de intenções patronais na diminuição do preço combustível. Imbuída da postura crítica que “vê aquilo que está por trás das aparências”, essa versão deu a tônica para que setores do campo… CONTINUA

Imagens que assombram – o efeito impeachment no cinema documental

As manifestações de rua em 2013 foram um acontecimento fundamental da história brasileira. De caráter popular, tais demonstrações deixavam claro o nível de frustração social com uma perspectiva de enriquecimento, de participação democrática, de justiça social e cidadã que não ocorreu. Elas revelavam o desejo de “um país diferente de tudo que está aí”. E poderiam ter sido utilizadas pela esquerda para dizer: estamos enredados em uma camisa de força de alianças para conseguir fazer a segunda rodada de políticas de crescimento e redistribuição de… CONTINUA

Permear dissonâncias, resistir aos deslumbres

Restaurar possibilidades de interlocução, cuidar das ausências, reelaborar o luto – a força desses gestos constitui Los Silencios, de Beatriz Seigner, um filme que, não à toa, se compõe não apenas em uma zona indefinida de fronteiras, mas também sobre o fluxo inquieto dos rios. Ao abordar uma guerra, em que os homens geralmente ocupam o fronte, importa que o filme se dedique, sobretudo, às mulheres e às crianças, a sua capacidade de resistência e reinvenção. Essa sensibilidade voltada àquelas que encontram refúgios, abrigos e… CONTINUA

Os destroços da civilização europeia

A Portuguesa é o sétimo longa-metragem de Rita Azevedo Gomes, cineasta da linha de frente do cinema português que apesar de três décadas de uma produção rica, só nos últimos anos veem recebendo timidamente um pouco da atenção merecida. Recentemente o filme circulou pelo Brasil, primeiro no Olhar de Cinema e depois numa pequena retrospectiva dos seus filmes em São Paulo. O cinema de Gomes traz à frente alguns elementos da tradição do cinema português, sobretudo na sua relação com a literatura e aristocracia, com… CONTINUA

“As mulheres são como as águas, crescem quando juntas”

  “Os homens olham para as mulheres, as mulheres olham para elas mesmas sendo olhadas. Os homens sonham com as mulheres, as mulheres sonham com elas mesmas sendo sonhadas.” John Berger começa o segundo episódio, Women in Art, de sua série televisiva Ways of Seeing com essas palavras para dizer da forma com que se dão as imagens das mulheres (vale ressaltar que, principalmente, a imagem da mulher branca, pois essas imagens, além da questão de gênero, também sofrem por um recorte de raça e… CONTINUA

A Chance de Um Milhão de Dólares

Erasmo Carlos sempre foi uma espécie de “patinho feio” na história da música brasileira. Noves fora sua imagem de sujeito bonachão, coautor das canções que Roberto Carlos imortalizou, a narrativa consagrada de Erasmo é a de uma espécie de Pete Best ao contrário: o que permaneceu no lugar certo na hora certa, mas que nunca conseguiu devolver em sua própria carreira a complexidade que o amigo de fé, irmão camarada, esbanjou até se tornar uma caricatura. Em meados dos anos 1970, para um desavisado, Erasmo… CONTINUA

Cinética Podcast #4 – “A Mula” e “Imagem e Palavra”

O quarto episódio do Cinética Podcast reúne Marcelo Miranda, Raul Arthuso e Pedro Henrique Ferreira numa sessão dupla de dois grandes realizadores. Não há relações diretas eles, a não ser que nasceram ambos em 1930 e tiveram seus novos trabalhos lançados no circuito brasileiro no começo de 2019. Um é Clint Eastwood e A Mula, seu 38º longa-metragem. O outro é Jean-Luc Godard e Imagem e Palavra, o 44º longa do cineasta. Os dois títulos mobilizaram a redação da revista nas últimas semanas, então não… CONTINUA

As culpas dos velhos e os erros dos novos

As inflexões mais cômicas de A Mula fazem-se evidentes nos momentos em que seu tema principal salta à vista: o descompasso entre as imagens preconcebidas que fazemos de alguém ou de algo, com os devidos papéis e lugares que estas devem ocupar no mundo, e sua materialidade ou existência objetiva que frequentemente as desloca. Um exemplo ilustrativo – o agente Colin Bates (Bradley Cooper) sabe que o traficante que procura na estrada dirige uma pick-up preta; ele passa por diversos carros como este, observando e… CONTINUA