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“As mulheres são como as águas, crescem quando juntas”

 

“Os homens olham para as mulheres, as mulheres olham para elas mesmas sendo olhadas. Os homens sonham com as mulheres, as mulheres sonham com elas mesmas sendo sonhadas.” John Berger começa o segundo episódio, Women in Art, de sua série televisiva Ways of Seeing com essas palavras para dizer da forma com que se dão as imagens das mulheres (vale ressaltar que, principalmente, a imagem da mulher branca, pois essas imagens, além da questão de gênero, também sofrem por um recorte de raça e classe) na história da arte, onde essas aparecem nuas e/ou lânguidas, em meio a poses, enquanto todos os corpos dos homens estarão cobertos e ativos, ou então elas estarão olhando para a pessoa que a olha e produz aquelas imagens. A questão ali levantada diz respeito às imagens das mulheres na história da arte estarem sempre em posição de espera, de contemplação do olhar masculino que vai buscar manipular e projetar naquele corpo seus desejos e vontades. Para esse olhar muito pouco importa as vontades daquele sujeito, pois ele somente o enxerga como receptáculo para as suas. Os homens olham e nós somos olhadas. O mesmo será reproduzido na fotografia, no cinema, na pornografia e até mesmo nas imagens que produzimos (e, principalmente, reproduzimos) no Instagram, por exemplo.

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Primeiramente, torna-se necessário ressaltar que as imagens acima, são, em sua maioria, de mulheres brancas padronizadas colocadas em altares como os de mãe/virgem/musa/sex symbol/ninfeta/objeto de desejo/etc, e possuem um recorte violento de raça, classe, idade, formas de corpo, cabelo e demais elementos estéticos (curioso isso se repetir sendo todas elas relacionadas ao desejo masculino prioritariamente hetero e branco #seliga). E justamente essas imagens, violentas em tantos sentidos, como os citados anteriormente e os demais elementos que serão abordados em seguida, são constantemente reproduzidos à exaustão por diversos formatos de mídia. Diante ao exposto, surgem algumas questões: o que podem dizer a postura desses corpos perante as tecnologias (câmera, pincel, lápis, celular…) que servem de suporte para aqueles que olham? Esses corpos que posam, que nos encaram com expressões sedutoras, de tesão, de bondade, de doçura, olham como uma resposta ou como uma afirmação? Olham para quem e, principalmente, por quem?

Primeiramente, torna-se necessário ressaltar que as imagens acima, são, em sua maioria, de mulheres brancas padronizadas colocadas em altares como os de mãe/virgem/musa/sex symbol/ninfeta/objeto de desejo/etc, e possuem um recorte violento de raça, classe, idade, formas de corpo, cabelo e demais elementos estéticos (curioso isso se repetir sendo todas elas relacionadas ao desejo masculino prioritariamente hetero e branco #seliga). E justamente essas imagens, violentas em tantos sentidos, como os citados anteriormente e os demais elementos que serão abordados em seguida, são constantemente reproduzidos à exaustão por diversos formatos de mídia. Diante ao exposto, surgem algumas questões: o que podem dizer a postura desses corpos perante as tecnologias (câmera, pincel, lápis, celular…) que servem de suporte para aqueles que olham? Esses corpos que posam, que nos encaram com expressões sedutoras, de tesão, de bondade, de doçura, olham como uma resposta ou como uma afirmação? Olham para quem e, principalmente, por quem?

Elas olham. Olham…

Os olhares dessas mulheres, sempre em ênfase, são, de certa forma, conscientes de um olhar que as acompanha, que as pede para posar, que busca moldá-las de acordo com outros desejos e projeções. E esse olhar -retratado por outro olhar masculino- parece ocupar, em grande parte dos casos, uma posição passiva da resposta, não de contestação, mas de afirmação do lugar de poder daquele que as olha. Nosso olhar também nos foi roubado e doutrinado, mediado sempre por outro olhar que irá decupar e dar close em nossos rostos ao gozar (pois nosso gozo também não é nosso, ele é o instrumento de ereção outra.)

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No regime das imagens pornográficas, esse processo intensifica-se, devido a alguns elementos essenciais da pornografia:

1. Sua finalidade maior é provocar excitação (ou, em sua grande maioria, para provocar a ereção). E esse elemento estará extremamente vinculado ao imaginário despertado por aquelas imagens.

2. Na maioria dos casos, o universo criado (muito a partir de elementos do Camp), as imagens dos corpos e a interação entre eles será usada como matéria-prima para essa finalidade.

3. Um pouco óbvio, mas sempre bom lembrar que, historicamente, a maior parte das produções pornográficas foi concebida, pensada, produzida, realizada e montada por e para homens.

4. Em boa parte das produções audiovisuais e fotográficas (mas não somente), a decupagem e montagem serão uma das ferramentas mais determinantes para “alcançar a meta” – excitar o espectador. E esses dois elementos serão os principais responsáveis para a criação de ritmo (que será muito usada para uma tradução da fricção física para a forma do filme) e os “pontos G” da relação imagem-espectador. Um exemplo de uma cena pornográfica mais calcada à heteronormatividade seria: dois corpos, juntos, em um mesmo ambiente. Começam a se aproximar e a se tocar. Mão masculina na coxa feminina, mão masculina no seio feminino. Seio. Bunda. Coxa. Homem tira a calça. Mulher fica de quatro. Ânus e buceta feminina. Penetração. Close da penetração. Close do rosto feminino tendo um ‘orgasmo’ (ouvimos gemidos femininos). A mulher olha quando geme. Repito: a mulher olha para o corpo masculino que a penetra, para o câmera, para os realizadores masculinos que produzem aquela imagem, para o espectador homem, para os sonhos dos homens. Para as ‘homenagens’ que eles estão a bater. Ela olha para a ereção de todos eles. E eles gozam na cara, na tela, na revista, no pôster…

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Seguindo essa lógica, pode-se concluir que para a pornografia (e não só) decupar o corpo da mulher em um picadinho de partes sensuais já é o suficiente para a ereção. Partes íntimas (que são escancaradas ali), os seios, bunda, coxa, boca e principalmente os olhos, elemento responsável por uma vivência mais visceral na relação espectador-imagem. A dimensão do toque entre o corpo-espectador e o corpo-representado nessas imagens é saciado pelo o gesto do olhar receber outro olhar como ‘resposta’. E, ao ser olhado de volta, faz-se possível uma espécie de correspondência entre corpo real e virtual, tornando-os mais próximos, fazendo com que o falo expurgue seu gozo mais efetivamente.

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Todas essas questões complexificam-se ainda mais quando olhadas por um viés quase educacional/doutrinador, pois serão essas imagens que irão influenciar diretamente na forma com que os corpos – reais – conceberam e projetam seus desejos, o que está diretamente relacionado à forma com que as expectativas desses corpos em relação a outros, pautando também as formas de relações. O desejo pode ser uma matéria introjetada e que irá buscar correspondência no mundo, buscará satisfazer suas demandas criadas e reproduzidas. “Mas anota aí pro teu futuro cair na real: essa sede, ninguém mata. Sexo é na cabeça: você não consegue nunca. Sexo é só na imaginação. Você goza com aquilo que imagina que te dá o gozo, não com uma pessoa real, entendeu? Você goza sempre com o que tá na sua cabeça, não com quem tá na cama. Sexo é mentira, sexo é loucura, sexo é sozinho, boy.” Mais uma vez cito esse trecho do conto A Dama da Noite, de Caio Fernando Abreu, por acreditar que essas palavras acabam por expor a dinâmica do desejo frente às relações com o ato sexual e seus desdobramentos nas imagens.

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Diante de todo o exposto anteriormente, surge outra questão: como, nós mulheres cis e trans, e nós mulheres lésbicas, pansexuais, bissexuais +, como nós podemos nos relacionar com essas imagens e com esse formato de desejo que não compromete-se a excitar, também, os nossos corpos e desejos? Como podemos desejar de outra forma? Como não reproduzir essa mesma lógica fálica ao nos relacionarmos e, principalmente, produzirmos peças pornográficas que representem outras formas possíveis de olhar, transar e excitar? É possível desejar, sermos olhadas e olharmos de outras formas? É justamente essa pergunta que o filme As Filhas do Fogo, de Albertina Carri, busca responder.

O filme é um road movie pornográfico, em que um casal lésbico e outra companheira, ao envolverem-se em uma briga de bar com um grupo de homens machões e homofóbicos, começam a ser procuradas pela polícia e decidem fugir pela estrada sem um rumo específico, mas com uma busca evidente por um espaço onde seja possível amar sem a violência opressora. Nesse percurso, elas encontram outras mulheres que elas acolhem e ajudam, seja dando um espaço na van / na viagem / nos braços, ou a ajudar mais frontalmente uma companheira a se livrar do marido abusivo e das violências que ele exerce. Em meio a essa jornada das heroínas – que agem coletivamente, que batem de frente e com o punho nos agentes do patriarcado, que acolhem todas as mulheres e que se amam livremente – Violeta, uma das personagens que é cineasta, começa a realizar um filme-busca do gênero pornográfico.

O percurso dessa meta-busca dos filmes (As Filhas… e o filme de Violeta) seguem uma lógica similar ao percurso das personagens na estrada e que terá, também, alguns pontos de encontro com o percurso do próprio gênero de road movies:

– O primeiro passo dessas buscas se dá ao confrontar e desconstruir a estrutura que serviu-lhes como ponto de partida, seja a dos filmes, toda a produção pornográfica anterior e a das personagens, seja as instituições que trabalham, o cotidiano, um relacionamento monogâmico, a polícia, o machismo e a homofobia do entorno.

– Partir. Em todos os casos, para a estrada e as paisagens que a acompanha.

– Se deparar e acolher os novos elementos que surgem no percurso. O que acontece nas filmagens mais abstratas que Violeta produzirá para seu filme pornô, como a imagem de troncos empilhados, da janela do carro, das paisagens, etc. No caso de As Filhas do Fogo, na forma com que cada novo elemento (geralmente, a chegada de outra mulher) da trama reverbera em mudanças também na forma do filme. E no caso das personagens, na maneira com que as viajantes acolhem todas as mulheres que surgem, sempre respeitando as especificidade de cada universo pessoal.

– Refletir sobre as mudanças do percurso. No caso do filme de Violeta, com a narração em over sobre seus pensamentos e questionamentos dos rumos do filme e as influências das novas companheiras em seu relacionamento. No caso de As Filhas do Fogo, com as proposições de enquadramentos e mise-en-scène que sofrem drásticas mudanças ao decorrer da trama, uma forma de demonstrar que as cenas do filme são testes e experimentos de alguns dos caminhos possíveis.

– Se perder. No caso de ambos os filmes, quando começam a flertar com elementos surrealistas, como em cenas de sonhos/delírios, na onda provocada pelos cogumelos alucinógenos e da festa. E no caso das personagens, o momento em que cada mulher começa a seguir rumos diferentes, como na casa da mãe de uma das personagens, em algumas paradas da estrada e na festa, por exemplo.

O sexo, e a forma com que ele é representado no filme, passa por processo similar ao das demais buscas. A primeira cena de sexo é composta por uma sala vazia escura e aparentemente úmida, onde Violeta masturba-se com um dildo (consolo ou consolador, é um objeto em formato que imita um pênis). Vemos por um ângulo estranho, a ponto do desenho do corpo não formar-se inteiro. O corpo de uma mulher branca gorda e lésbica se masturbando sozinha em uma posição incomum. Ao compararmos essa imagem a outras imagens pornográficas, já percebemos o enfrentamento de alguns dos “preceitos base” da pronografia, em seu enquadramento, ambientação, padrão estético, por exemplo. Em seguida, teremos cenas de sexo lésbico entre Violeta e sua parceira, ainda com o uso do dildo. Inicialmente, os enquadramentos ainda são similares à linguagem pornográfica dominante, mas já pode-se perceber ali pequenas subversões, como quando a câmera se aproxima dos corpos deformando-os ou quando vemos um gozo feminino (brisa nos nossos olhos que já está acostumado a ver somente cenas de esperma na tela). Aos poucos, a estrutura do casal principal vai se diluir, outros corpos entram naquela relação e no sexo. Com essa mudança, as cenas de sexo começam a se permitir mais, a câmera fica mais próxima, as cenas tornam-se mais lúdicas, os brinquedos sexuais mudam, já não usam somente o dildo, começamos a ver closes das xanas junto a dedos e línguas. O afeto ganha espaço também, as cenas se deixam perder naqueles corpos e nas carícias entre eles. As relações vão tornando-se cada vez mais fluídas e o filme acompanha isso criando um paralelo entre as cenas de sexo e cenas de água, permitindo-se também imagens totalmente abstratas em meio à narrativa.

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As referências ao padrão continuam, mas fica explícito o desejo crescente de se desprender disso. Até chegar a última cena, em meio a uma festa/bacanal, onde a personagem mais reservada do coletivo – conhecida por preferir ficar numa posição de voyeur durante os atos sexuais – flana pelo bacanal, sai da casa onde ele acontece e coloca seus fones de ouvidos. A música do filme se interrompe, a mulher senta numa cadeira em primeiro plano e começa a se masturbar. E por muitos minutos a câmera fica ali, imóvel, em plano aberto, dando todo tempo, espaço e liberdade para aquele corpo que se toca, se ama, se liberta e goza.

O primeiro e último passo do filme e da busca de Violeta partem de um gesto de auto amor, de autoerotismo. Se na primeira cena temos uma atmosfera hostil, sufocante, opressora, na qual um corpo se masturba escondido visto em plongée, na última temos um corpo que masturba-se em público, em ambiente onde mulheres unem-se para amar umas às outras, um corpo que masturba-se plenamente visto frontalmente com todo tempo e espaço disponível para aquele gesto e toda a força que carrega. O filme não nos dá uma resposta, pelo contrário, ele se perde em inúmeras possibilidades possíveis, tornando-se, até mesmo, cansativo em alguns momentos. Mas, independentemente disso, As Filhas do Fogo ousa um caminho (dentre tantos outros possíveis), buscando formas não dominadas de excitação, de corpo, de amor, de sexo e de relações com xs outrxs, com os corpos, com a paisagem, com as relações, com a estrada, com o cinema e consigo mesma (eis o elemento da revolução). O filme serve como um caminho e, principalmente, como um convite.


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