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Quando corpos desafiam suas figuras

Uma das formas de testar e sentir o corpo é confrontar os seus limites. Embora opostos, o sublime e o grotesco são dois gestos estéticos que costumam desafiar as fronteiras dos nossos corpos. Com o sublime, o corpo é afrontado numa extremidade do sensível. Diante de um espanto, aposta-se numa transcendência, pela qual os olhos, os ouvidos e mesmo a pele passam a sentir algo que não se supunha possível. Com o grotesco é o próprio corpo que entra em colapso, pende para o verso negativo do abismo. Como uma figura estética afim à escatologia, o grotesco pulsa como pura deformação, opta por separar o que antes era considerado harmônico. Há algo de monstruoso nos corpos grotescos, na forma como eles acenam para vetores mais próximos ao obsceno, no sentido daquilo que é considerado como fora da cena, fora do espectro de visão, do que aquilo que é tradicionalmente tido como belo.

De maneira bastante peculiar, os filmes de Gabriel Mascaro e da dupla Gustavo Vinagre-Rodrigo Carneiro dialogam, sem se restringir a isso, respectivamente, com o sublime e ao grotesco. Do paraíso ao cu, de um céu religioso à performance pornográfica, é curioso perceber como esse gesto inverte-se em ambos os casos. Há, nesses filmes, a experiência de corpos descontrolados, soltos, os quais pouco a pouco mostram-se distantes das linhas morais que buscam sua classificação, seu domínio, sua domesticação. Obviamente os diretores desses dois filmes perfazem eventuais flertes ao sublime e ao grotesco, mas dessa vez eles mascaram seus atores para iluminar corpos indóceis, desobedientes, a germinar uma indolência presa entre os lábios, ou prestes a desobedecer, para enfatizar tão somente uma liberdade e um júbilo do corpo pleno, íntegro – e fora da ordem moral vigente, e mais restrita.

 

Um afeto anal

O filme de Vinagre e Carneiro deixa claro, desde a sua primeira sequência, o teor lúdico que será estabelecido com o espectador. Eles estão juntos com Marcos Diorio, bem próximos do seu personagem, numa interlocução direta e mesmo uma cumplicidade entre o personagem e a câmera. Essa cercania, por outro lado, é permeada por um constante fervor que ora mostra-se afetuoso, ora é abertamente perverso. “O cinema direto é uma forma de torturar seus objetos”, como diz Marcelo, numa frase que soa abertamente encenada. Não por acaso, Marcelo aparece numa posição desconfortável, com o corpo torcido, logo numa das primeiras imagens do filme. Ele lê um dos poemas à morte de Hilda Hilst; está nu, com as pernas para cima, o pescoço no chão, e ao fundo vê-se uma figura decomposta num dos quadros de Francis Bacon. Hilst e Bacon, aliás, não estão ali à toa. Eles apontam justamente sobre formas corporais que desafiam preceitos (e schematas) morais. Com Hilst, o divino surge aliado a Tânatos, ao fim, ao ponto final. Embora também seja pelo corpo que, tal como numa via sacra, ocorre uma transubstanciação, onde as transcendências corporais conduzem ao divino. Há, nos diálogos com Marcelo, uma visão que flerta com a espiritualidade de fundo católico, como nas suas falas sobre algumas estórias de santos; ou mesmo com o místico, quando ele afirma, com ótima convicção, de que foi um general e Novalis em duas das suas vidas passadas.

A Rosa Azul de Novalis, contudo, filia-se como uma interessante inflexão no cinema queer brasileiro mais recente. Num ensaio sobre Os Famosos e os Duendes da Morte (2009), de Esmir Filho, Denilson Lopes aponta como o personagem fala do ânus, do cu, mas nunca, no filme, é visto. Ele sugere que haveria um certo pudor em falar dessa parte do corpo tão recalcada (ou perversamente explorada) nos códigos masculinos e heteronormativas do cinema. Pois bem, da polca do cu em Tatuagem (2013), de Hilton Lacerda, passado pelas ótimas falas de Linn da Quebrada e Jup do Bairro, em Bixa Travesty (2018), de Kiko Goifman e Claudia Priscilla, esse cenário mudou bastante. No cinema brasileiro o cu passou a ter voz, espaço, a ser visto e falado de várias formas. Do deboche da contracultura dos anos setenta às reflexões sobre certos problemas existenciais que perpassam as neuras heteronormativas, o cu deixa de ser uma figura marginal.

Em A Rosa Azul de Novalis o ânus está no centro da filmagem, do discurso e mesmo do argumento do documentário. Como se perguntasse (e mesmo afrontasse): qual é de fato o problema que se tem com essa parte do corpo? Marcelo posiciona-se várias vezes de costas para a câmera, como na cena inicial, ou numa em que ele aparece transando e conversa com o espectador. Numa das suas melhores sequências ele está sentado numa bacia com leite de amêndoas, num momento de zelo, preparo e cuidado com as suas zonas anais, erógenas. Nessas horas, ele delira. Deliciosamente. É nessa junção entre o extremo do corpo e um prazer dócil, calmo, que o filme ganha seus melhores momentos. Como se, no meio de tantas tormentas e tantos traumas que perpassam os testemunhos e as confissões de Marcelo, ele tivesse no âmbito do sexo sem fronteiras, da suas taras e seus jogos sadomasoquistas seus momentos de desligamento total das couraças que lhe comprimem um cotidiano heteronormativo e uma família de verve católica. Um espaço, diga-se, que possui o prazer anal como trama central da sua conquista e existência. Chama a atenção, nessa linha, o desejo de Marcelo de enviar ao seu pai um vídeo em que ele estivesse transando – é desse prazer proibido, ou dessa descoberta que se descortina da proibição, que o filme obtém sua singularidade. Num passo além da desmistificação, portanto, o que se vê é um cu cercado de afeto por todos os lados.

Afetos, diga-se, que não precisam rimar (apenas e restritamente) com docilidades, meiguices e carinhos primos. Esses são afetos plurais, muitas vezes violentos, de verve acintosamente sexual, e estão bem delineados no conjunto da obra de Vinagre, um dos co-diretores de A Rosa Azul de Novalis. Desde Filme Para um Poeta Cego (2012) e passando por Nova Dubai (2014), Vinagre cria um jogo de trocas sadomasoquistas, ora constrangendo quem filma (ou “documenta”) ora alterando o eixo das suas provocações e atingindo frontalmente os espectadores. Subitamente, a câmera de Vinagre transforma sujeitos em objetos e reverte, num veloz chicote cinematográfico, os objetos em sujeitos a conduzir instantes de autonomia. A sequência final é exímia nessas mutações. Uma vez mais, é o dorso de Marcelo que chama para centralidade do quadro, temos uma série de closes anais, escancarados, para além das fronteiras que separam o pornográfico, o escatológico e o suportável.

Se remetermos à importantes e provocadoras reflexões vindas de Paul B. Preciado, essa ênfase num olhar pornográfico seria um gesto estético de subverter uma naturalização do gênero e da sexualidade. Flerta-se, assim, numa vertente que inclusive acelera o contexto contemporâneo de uma farmacpornografia de clivagem audiovisual para ir além, para flertar, por dentro de uma história e cultura homoaeftiva, com outros horizontes, nos quais o sexo, o gênero e o papel do ânus dentro ultrapassem violenta e docemente o regime heteressoxual dimórfico, onde os portadores de óvulos e espermas perdem um protagonismo e mesmo um paulatino sentido histórico.

Nesse esteira, Vinagre, Carneiro e Marcelo estão a mostrar apenas um cu, uma parte normal do corpo de qualquer um, e provocativamente, a dizer “Deus é o meu cu”. O cu à vista, exposto, sem possibilidade de subterfúgios ao olhar que, talvez, insistiria em desviar, em escapar da sua imagem, hiper exposta. Mas o ânus surge ali também como um espaço de acolhimento, de troca afetiva possível que agrega os personagens e os diretores com a câmera. Transforma-se numa dobra, numa inflexão que coliga a escatologia rumo ao infinito, ao desconhecido, a uma radical alteridade; e cose uma tênue linha a acenar para a ética, para o cuidado de si, para um intenso cuidado com o outro.

 

Corpos dentro (e fora) da biopolítica

Do documentário à ficção ligeiramente científica, o filme mais recente de Gabriel Mascaro parte de uma premissa bem provocadora: e se um futuro dominado por um estado teocrático e evangélico no Brasil realmente implementasse uma ideia de felicidade? O que aconteceria com os “nossos” valores, com os “nossos” costumes? Engenhoso e versátil o argumento de Mascaro obtém uma consistência bastante concreta no bom retrato que faz de Joana (Dira Paes), uma funcionária pública responsável por conduzir os divórcios de casamentos civis no âmbito de um estado religioso. O que poderia ser uma fácil denuncia política ganha ares jocosos, leves, especulativos e de bons momentos ficcionais. Joana, por exemplo, é crédula demais. Acredita piamente nos preceitos monogâmicos do divino amor. Tem tanta fé em Deus, em Jesus, no casamento e nos motes ideológicos do Estado para o qual trabalha como funcionária pública, que chega a realizar os seus “jeitinhos”, de modo a deixar o status quo vibrante em cada casal que atende. Na primeira parte do filme, Joana é orgulhosa dos retratos que recebe dos casais que, de forma irônica, ajudou a superar as crises. Da segunda parte em diante, os fantasmas que ela evitava irão aflorar no seu corpo, no de Danilo (Júlio Machado), seu marido e vão gerar uma boa guinada do ponto de vista moralista do filme.

Embora numa ficção, Mascaro realiza um dos melhores retratos do imaginário evangélico brasileiro contemporâneo. Ele não embarca nos estereótipos rasteiros que estão presentes na maioria dos filmes brasileiros sobre essa religião, cada dia mais poderosa em nosso país. Mascaro reconstrói parte de um inconsciente coletivo feliz, ingênuo e mesmo hipócrita que habita nos evangélicos, e o faz com uma direção de arte engenhosa, simples, mas eloquente. Na sequência de abertura, por exemplo, vê-se os personagens a dançar uma música com tons de rosa que vagarosamente alcançam a tela. O carnaval acabou, diz o narrador, mas vingou a festa do divino amor. Como se mudasse a roupa, viesse uma nova roupagem moral, mas, no círculo ficcional da obra, permanecesse uma mesma parte dos costumes. Embora oposta, onde o corpo, antes superexposto, agora tivesse que prezar pelo resguardo, o recato.

Joana também vai de carro tomar uma espécie de “passe” com o pastor, realizar confissões. São despachos feitos sem sair do automóvel, bem burocráticos, mas há sempre a busca de um instante de reconforto, e de sublime, guiado por uma música que pode soar como piegas, mas que funciona muito bem para o propósito da estória que está sendo contada. A ironia está lá, presente, mas ela não se sobrepõe a uma espécie de retrato antropológico de um imaginário da diferença, que Mascaro, desde Um Lugar Ao Sol (2009) capta com notável apuro. A artimanha do diretor está em fisgar um imaginário estético e deixar que os personagens e o ambiente ficcional naveguem livremente nesse estranho conto de fadas às avessas.

Todo o problema da estória é que o filho de Joana e Danilo, o aguardado e pequenino “messias”, não vem, não chega, não torna-se realidade. É interessante como nesse ponto o argumento aglutina certos aspectos de uma biopolítica – vindo da imposição do corpo feminino de parir; e do masculino de conceber uma nova vida – com outros teológicos, sobretudo na tradição cristã. Ligado ao sublime, o corpo é um dos principais nódulos de tensão dessa religião. Desde a concepção de Jesus, que surge de um anjo, sem atos sexuais, até o debate da transubstanciação, a imortalidade, a transcendência (e de algum modo, a descendência) passa pela superação do corpo, seja pela sua negação, seja pela sua sublimação. “Os prazeres da carne”, como se diz, tornam-se tabus, com espaços, claro, para perversidades, mas sempre sujeitos a condenações morais. Nesse recorte, Mascaro duplica o corpo e faz dele um duplo agonístico de Joana. De um lado, como burocrata, ela controla o polo casal-natalidade dos corpos masculinos e femininos domesticado aos Estado para o qual trabalha. De outro lado, ela experimenta do mesmo “veneno” que tende a “curar”. Paulatinamente seu corpo torna-se inexplicável, incontrolável, fora dos padrões e dos ditames da biopolítica para qual ela era um dos seus bedéis. Nesse impasse, Joana e o filme crescem. Precisam se defrontar com um sistema autoritário e de poder que até então era apenas apaziguado – é aqui que surge a potente fresta hipócrita da religião, muito bem contada pelo filme.

Há boas gotas – e mesmo doses – de inexplicável e absurdo em Divino Amor. Elas pulsam com independência e autonomia dentro do enredo e da atmosfera ficcional. Essas pitadas de delírio, no entanto, são uma constante na obra de Mascaro. Elas estão presentes num curta como As Aventuras de Paulo Bruscky (2010), no qual personagem e diretor optam por um corpo-avatar no Second Life. Destaco uma cena, na qual o personagem decide perder a gravidade, transar com o avatar que bem quiser. O inusitado também habita ótimas sequências de Boi Neon (2015), o segundo longa-metragem de Mascaro, quando a dança de um boi, ou a masturbação para pegar os caros sêmens de um cavalo garanhão incitam a momentos bastante inesperados da trama. Curiosamente, todos esses pontos de inflexão estão ligados a deslocamentos do corpo; e o corpo, de forma subcutânea, revela-se uma das temáticas centrais da obra do diretor. Nos seus filmes, Mascaro ora retrata as forças centrípetas, e opressoras, que controlam os corpos, ora esgarça seus limites e, nos seus rasgos lúdicos, sugere fugas possíveis, descontroles, novas órbitas dos prazeres sensíveis potentes em todos os corpos.


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