Ventos de Agosto, de Gabriel Mascaro (Brasil, 2014)

agosto 25, 2014 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Raul Arthuso

ventos

Ela está sempre lá – Notas para um filme de impasse
por Raul Arthuso

No primeiro plano de Ventos de Agosto, a câmera acoplada a um barco começa embrenhada na da mata virgem, em um pequeno rio, até sair por uma clareira que revela um rio maior. Na ponta do barco, uma mulher de costas para a câmera observa imóvel o que há pela frente. Após o corte, a mesma mulher, o mesmo barco, a mesma posição, mas agora no mar aberto: é o movimento contrário do descobridor que, vindo do mar, adentrara o interior. Ventos de Agosto seria, então, um olhar de retorno, um reverso que mergulha no Brasil profundo em oposição ao olhar da faixa litorânea moderna e desenvolvida, em busca de uma pureza mais natural ligada à terra e seus eventos mais íntimos, não estivesse essa possibilidade de pureza já corrompida: um banho de Coca-Cola no corpo lascivo de Shirley (Dandara de Morais), que se banha no sol lancinante dos trópicos ao som do punk rock inglês, à espera de Jeison (Geová Manoel dos Santos) voltar do mergulho no Atlântico.

Se é possível pensar no “arcaico” para o qual o filme se volta, ele reside mais em uma ideia: o vilarejo de pescadores e artesãos com um modo de subsistência ligado à terra, ao coco e à pesca; a vida de simplicidade material; a natureza exuberante cercando os habitantes; a tecnologia ainda artesanal que fascina quando se pensa que Ventos de Agosto é um filme brasileiro do século XXI, quando o país não é o “do futuro” e sim o “da vez”, com lugar de destaque dentro no imaginário das nações. Este arcaico, contudo, não resiste ao visível. Junto dele convive o moderno, a cultura urbana do rock ou das técnicas de tatuagem, a motocicleta num lugar onde só é possível chegar ou sair de barco, o celular com sinal precário, a fotografia – estopim de uma visualidade propriamente moderna – e seus recursos de manipulação por computador que permitem juntar fotografias diferentes numa só, como prometem colocar a imagem dos mortos no céu, pois lá eles estão. O natural – a paisagem, o corpo – convive com o tecnológico – o industrial, o produto.

Evidentemente, colocar o arcaico e o moderno no mesmo balaio não é novidade. Sua sobreposição para dialogar com certo desenvolvimento da sociedade brasileira é artifício recorrente no cinema brasileiro pelo menos desde Bye Bye Brasil (1980). Em dado momento, numa notícia de TV (mais um sinal de modernidade), a âncora pergunta: “O que está acontecendo com o nosso país?”. O mar está tomando a terra em vários pontos do litoral e isso atinge também o vilarejo de Ventos de Agosto. Uma transformação iminente se impõe. E, então, coloca-se um impasse sobre a própria ideia de “Brasil profundo”, segundo a qual seria possível olhar para uma natureza mais bruta e sensível. Não é mais possível um olhar de identificação com algum passado distante ou um estado natural – não estamos na comunhão com a paisagem de Aboio ou a universalidade espiritual de GirimunhoVentos de Agosto habita um país em transformação indistinta, que vem de fora dessa ilha da qual é impossível escapar.

Mais que a brutalidade natural da terra ou da tropicalidade, a vida em Ventos de Agosto é de uma insignificância assombrosa, um viver automatizado no ritual de pegar o coco e transportá-lo, mergulhar para pescar o que está além da superfície ou preparar a rede para o trabalho diário. Mesmo o sexo reproduz essa morosidade própria do balançar das árvores contra o vento, fazendo-se mais de êxtase que luxúria. Aproximar-se, então, dessa pequena sociedade como uma forma de descobrir algo primitivo, inocente ou, na melhor das hipóteses, transcendental como exemplo ou ensinamento seja lá do que for, é apenas primitivo, inocente ou idealista. Afinal, o primeiro olhar do filme para o corpo e a paisagem é um movimento que sai, não que chega – não se trata de descobrir ou revelar algo, que já não faz sentido. Ventos de Agosto vai ao pulmão da pedra para buscar o corpo todo. Ainda que se passe num “Brasil profundo”, o lugar que interessa ao filme é no litoral – mais uma sobreposição problematizadora desse país em transformação.

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Ventos de Agosto confirma o cinema de Gabriel Mascaro como uma indagação da forma de aproximação do olhar. É possível enxergar no filme um impasse de procedimentos – não é exagero dizer que, num trajeto cinematográfico ainda em construção, Ventos de Agosto é o ponto de crise, em que as potências revelam as fraquezas e as questões denotam problemas.

Pois o cinema de Gabriel Mascaro tem uma proposta realista muito clara. Se sua geração se preocupa com a autenticidade do olhar frente ao objeto filmado, Mascaro busca olhar antes de estender a mão para alcançar o objeto. Ele não é um formalista ou um esteta, mas, com o problema que se coloca diante do artista de expressar a realidade, seus filmes tateiam a própria forma. A questão do registro frente a um ideal de autenticidade – não apenas dele, mas, pode-se dizer, de grande parte dos filmes de sua geração – é o elemento que mais chama a atenção em seu filmes, e, se é impossível, por sua vez, falar em um “estilo Mascaro”, isso se dá pela própria natureza incerta de como se aproximar de algo para filmar. Cada um de seus filmes traz sua particular forma de aproximação, seja intervindo abertamente ao criar situações ficcionais para alcançar a realidade das personagens de Avenida Brasília Formosa (2010), criando uma ficção extra-filme para tornar Um Lugar ao Sol (2009) possível, ou a filmagem de aquário de Doméstica (2012), no qual o diretor é mais um orientador do material filmado e seu trabalho discursivo se mostra nas escolhas de montagem em que busca criar relações, historietas ou dar ênfase a momentos deslumbrantes latentes no registro. Em todos os casos, busca-se o olhar do mergulho.

O impasse em Ventos de Agosto se dá primeiro por ser uma ficção, diferente dos outros filmes de Mascaro, cuja matéria real se fazia sempre um elemento dominante em alguma medida para a força do discurso – mesmo em As Aventuras de Paulo Bruscky (2011), que, curiosamente, é um falso documentário que busca se aproximar do universo do artista Paulo Bruscky. Nesse realismo de autenticidade, o impasse se coloca na conjunção de dois registros que convivem em Ventos de Agosto: um registro abertamente discursivo e outro contemplativo – falar em “ficcional” e “documental” seria mais claro, porém mais inocente.

Assim, existe um olhar que se deixa levar pela exuberância dos movimentos dos homens que trepam nas árvores para pegar o coco, que se fixa na beleza dos corpos e nos gestos próprios de certas ações do trabalho e das relações, um olhar de observação que se deixa fascinar, mantido a certa distância, como quem se coloca intruso esperando sua brecha – algo muito similar aos procedimentos de A Onda Traz, O Vento Leva (2011) na precisão dos tempos e na distância. Por outro lado, há momentos de diálogos construídos, uma encenação mais forte, de aproximação das entranhas das personagens – olhar que se mostra mais desconfortável, pois expõe as fraquezas principalmente dos atores coadjuvantes em torno de Shirley e Jeison, deixando evidente certa fragilidade do texto escrito quando não depurado, e impõe as limitações de realização do próprio filme. É esse, especialmente, o caso da dublagem evidente de muitas seqüências, que complicam o jogo entre a autenticidade e a ficção, o gesto do artista de composição e o objeto filmado que se impõe na tela, pois as costuras da narrativa ficam várias vezes em evidência. Não surpreende que os nomes de Shirley e Jeison quase não sejam falados ao longo do filme, assim como as outras personagens, pois são poucos os dados de personagem e sua construção ao longo do filme, sendo seus corpos, seus olhares, seu jeito de falar, a figura em si, o elemento sensível de sua existência na ficção.

As cenas são frágeis; ao mesmo tempo, as vistas são maravilhosas. Sua sobreposição cria uma dialética da própria busca do realizador pela forma que perpassa o seu cinema, aqui trazida como impasse: como realizar uma arte realista, valorizando a autenticidade do lugar, dos corpos, dos gestos, da fala, ao mesmo tempo em que se cria um discurso? Contrariando o sensorialismo e uma anti-discursividade do cinema brasileiro mais arriscado hoje, Ventos de Agosto lida com natureza, tropicalidade, corpos, gestos para, em verdade, ser o mais cerebral dos filmes.

Em dado momento, um homem aparece com um aparato tecnológico para registrar os ventos do lugar. Encarnado pelo próprio diretor Gabriel Mascaro, o personagem trava contato com diversos moradores do lugar. Nesses vários momentos, enquanto Mascaro continua em sua personagem, dialogando de acordo com uma necessidade da narrativa, os não-atores que com ele contracenam olham para a câmera, riem, saem e voltam para a cena como tomados pela presença da câmera. São momentos maravilhosos nos quais, no mesmo plano, o “posado” da encenação fica evidenciado pela presença de Mascaro, e a fluidez do olhar das pessoas demonstra a inoperância dentro da situação de construção ficcional delas, ao mesmo tempo revelando aquelas personagens quase passageiras do barco que é Ventos de Agosto. Não à toa, o viajante que capta os ventos tem vários problemas com ventanias e chuvas: em Ventos de Agosto, a realidade se impõe – com força, doçura, surpresa ou inoperância.

O impasse – consciente – é que a realidade sempre está lá. O papel do cineasta, seu gesto e sua mão, é que é o motivo do impasse. Ou, como diz a música de Zezé di Camargo & Luciano gravada pelo viajante que capta os ventos – ou colocada em pós-produção por Gabriel Mascaro? – “preciso de você aqui”. A realidade se impõe; mas em arte, ela por si só é uma ausência.

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A geração de Gabriel Mascaro faz um cinema do luto. Estrada para Ythaca (2010), Pacific (2010), A Falta que me Faz (2009), Girimunho (2011), A Fuga da Mulher Gorila (2008), vários filmes em alguma medida dialogam com a ideia de uma perda, muitas vezes inominada, mas compartilhada por personagens e realizadores. Em Ventos de Agosto, Jeison entra num grande luto por um corpo desconhecido encontrado no mar. Ele se identifica com o morto, é fascinado por ele, cuida dele ao mesmo tempo em que vê essa morte interferir em sua existência, sua rotina, seu relacionamento (sexual) com Shirley. É impossível identificar o morto pelo processo de decomposição (“os peixes comeram tudo ele”), mas ao mesmo tempo é impossível se livrar dele. Impõe-se a pergunta feita por Godard nos anos 1970: “Que Fazer?”.

Pois esse morto é o Brasil. Um outro Brasil, aquele onde essa geração nasceu e que os anos Lula vieram transformar. É o país do futuro que virou o do presente, o país profundo hoje potência internacional. Um cemitério na areia da praia do vilarejo tem em uma das cruzes que servem de lápides um nome curioso inscrito: Otto Bastos. Coincidência ou uma corruptela proposital do nome do ator de Corisco em Deus e o Diabo na Terra do Sol? A realidade extra-fílmica, representada pela meteorologia que avisa sobre a água que está tomando a terra, anuncia que o sertão está virando mar. No final do filme, os habitantes do lugar fazem uma pequena barragem para proteger o cemitério do mar invadindo a praia; mas a água, implacável, sobrepõe-se à barragem e toma o cemitério sob o olhar inebriado de Jeison. A realidade se impõe sob o olhar assombrado de nosso luto.

Esse último impasse é o de geração: o país está em transformação irrefreável, o mar está a entrar na terra, e o luto precisa ser expurgado. É esse o movimento nas entranhas de Ventos de Agosto. Por mais que a identificação com o morto seja legítima, não existe um luto eterno. Jeison não pode carregar eternamente um morto desconhecido. O que fazer? Alguma coisa. A transformação do país, o mergulho do olhar, a postura diante do luto: os impasses se colocam – o filme começa em movimento sobre as águas e termina estático, com a água avançando sobre a terra. E se Ventos de Agosto não traz respostas concretas, certamente os coloca diante dos olhos.

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