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Figuras de um desmantelo blue

Um dos conceitos mais envolventes sobre espaço que conheço foi cunhado por Milton Santos. Com uma simplicidade cortante, Santos afirma: “O espaço geográfico é uma acumulação desigual de tempos onde convivem simultaneamente diferentes temporalidades”. Ao ler essa sentença, a primeira impressão que surge é a de um desvio do espaço pelo tempo. Mas há, na formulação, uma interessante provocação: o convívio – e essa palavra não é trivial – de distintas camadas temporais, como se o espaço fosse crivado por inscrições, vestígios, palimpsestos, acúmulos e ruínas. Mais do que isso, o espaço é descortinado por um olhar, uma fresta, um ponto de vista embalado por uma peculiar latência na sua ora longa, ora breve pulsação dos segundos.

Lembro de Milton Santos ao emaranhar nas mesmas linhas as mais recentes obras de Helvécio Marins Jr. e Marcelo Gomes. Ambos os filmes lançam olhares dos seus personagens ao espaço com que interagem. Em Querência, Marcelo é um dos poucos personagens da obra que ainda não abandonou a vida rural diante do crescimento de empregos em Unaí, em Minas Gerais, à beira do lendário rio Urucuia. Sua irmã, num determinado momento, passa um final de semana com ele, mas já fica ansiosa para ir ao aeroporto de Brasília e voltar à vivência urbana que aprecia. Isolado, ao som do fogo-apagou que passeia por essa paisagem, Marcelo lança um olhar de um lamento vazio do espaço onde morou, mora; o local que, de certa forma, ainda guarda com emoção as suas vivências.

Em Estou Me Guardando Para Quando o Carnaval Chegar, Marcelo Gomes volta a Toritama, no agreste pernambucano, pequeno município onde costumava passar parte da sua infância. O deslocamento temporal para aquele espaço é mais dele, do próprio Marcelo, como sujeito e narrador do filme. Ele possui uma imagem um tanto idealizada, romântica, nostálgica e temporalmente congelada sobre aquela cidade. Boa parte do filme ocorre nesse precioso hiato afetivo, entre a imagem que Gomes tinha antes da cidade e aquilo que ela se transformou; ou seja, numa das maiores produtoras de jeans do país e que chega a exportar o “ouro azul”, como é chamado pelos seus moradores, mundo a fora.

Embora a cadência temporal do espaço esteja presente em ambos os filmes, ela embala distintas figuras estéticas. Em Querência, o espaço, entre as paisagens rurais, os bois e as lindas cenas de rodeio, obtém claras feições de melancolia. Torna-se um (dolorido) espaço que habita e é habitado pelos personagens. É, contudo, um local presente, que ainda possibilita uma atuação, uma intervenção e uma forma de atualizar a melancolia pelos tantos desmantelos que estão ao redor de Marcelo. Com seu parceiro de versos e de rodeio, Kaic Lima, Marcelo acaba por sublimar a melancolia do lento ocaso do mundo (e do imaginário) rural que Helvécio Marins busca captar. São em instantes poéticos, justamente durante a narrativa do rodeio, que o filme salta para outra esfera lúdica, simbólica e mesmo de afetos.

Querência é também um filme que flerta diretamente com o rico imaginário de Guimarães Rosa. Transforma-se, rapidamente, numa película de escuta do e ao outro: as expressões, os modos de fala, os trejeitos, as visões de mundo, como se buscasse reter o universo antropológico num almanaque de afetos ligados intimamente à terra. Esse trejeito já estava presente em Girimunho (2011), feito em parceria com Clarissa Campolina. Em ambos os filmes de Helvécio Marins há um esmero em mediar esse amparo roseano para sons e imagens poéticas, que se revelam, sobretudo, no modo como o som d’O Grivo é desenhado, e nas formas como as imagens, atentas, vagarosas, atingem a tela. São mais do que simples rimas o que chega aos olhos. São intensos lampejos, instantes poéticos marcados por flagrar as espessuras do espaço, sua lentidão, sua forma de resistir às transformações vindas de um mundo urbano e uniforme, e de, entre sujeitos como Marcelo, vislumbrar outros começos, outras atualizações.

Em Estou Me Guardando…, Marcelo Gomes tem, ao início, um plot de fundo nostálgico, sobretudo por ser um filme de retorno, de regresso ao espaço em busca de voltar a sentir e enxergar a Toritama de outrora. É nostálgico por esse gesto, que se persistisse apenas nele, por si só, não seguraria o filme. Aos poucos Gomes faz da sua frustração inicial de não mais ver a Toritama que encontrava uma notável curiosidade ao outro, ao diferente. Ele percebe como a cidade obteve um ritmo frenético, semi-industrial, de pequenos e independentes produtores de jeans, numa atividade muitas vezes realizada nas garagens das casas, que une o caseiro ao comercial. Toritama mostra-se bem distante do tom bucólico, pacato e interiorano que ainda vibrava na memória de Gomes. Todos estão preocupados com vendas, negócios, tempo de trabalho, preços. Mas também há uma enorme valorização do trabalho autônomo, individual, sem chefe.

Em meio às cativantes figuras que conhece, Marcelo Gomes consegue flagrar alguns espaços do saboroso delírio pernambucano que talvez buscasse reencontrar. Numa delas, uma sesta, uma invejável modorra ao fim da tarde, quando deixa-se de costurar para alguns minutos dedicados à preguiça. O personagem tem a alcunha de “hora extra”, por ser um workaholic, mas não abdica da sua sesta. Vem um estilista do jeans e a loucura de todos que tudo vendem para curtirem o carnaval na praia. Ali, a voracidade do capital, sua velocidade, seu bizarro “aceleracionismo”, obtém uma latência de ritmos maiores, cadências com pausas e compassos culturais. A tarde a esmorecer, na sua indolência que desafia a ganância do capital. A tarde de Toritama continua, nesse recorte, a mesma de antanho.

Na sequência mais bela do filme, Gomes admite ficar extremamente irritado com o barulho da máquina de costurar. Tampouco aguenta observar a exaustiva repetição do ato e do gesto de coser o jeans. Diante dessas emoções controversas, Gomes furta-se, deliberadamente, a uma intervenção na montagem: torna a cena muda, sem som. Aos poucos adiciona uma música clássica, na trilha sonora, e transforma o que era um som chato e uma imagem enfadonha, num estranho balé das mãos. Com seus comentários, ele, sabiamente, não critica o trabalho dos seus personagens. É pela forma de trabalho que ele encontra uma identificação. Há, ali, no torpor da produção capitalista a lentamente devastar as nostálgicas riquezas interioranas de Toritama, a criação um tempo abstrato do trabalho. Gomes percebe, por outro lado, que com seu ofício como cineastas faz algo próximo: ele rouba tempo dos outros. E cala-se, e junta-se àqueles que poderiam ter sido seus concidadãos. É por não levar totalmente à sério a nostalgia do seu dispositivo inicial que Estou Me Guardando Para Quando o Carnaval Chegar revela-se bem aberto às surpresas, aos outros, a afetos mínimos que cintilam em encantos entre o asfalto quente, o azul de ouro, seu desmantelo blue, e o novo agreste de Toritama, cujo nome, etimologicamente, pode remeter à terra da felicidade.


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