O Homem das Multidões, de Cao Guimarães e Marcelo Gomes (Brasil, 2013)

outubro 1, 2013 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Fabian Cantieri

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Reflexos de um atavismo impessoal
por Fabian Cantieri

Ce grand malheur, de ne pouvoir être seul”.

La Bruyère

 Em O Homem das Multidões, antes mesmo do primeiro plano, brota um prefácio imaginário, entre créditos e a primeira imagem real do filme, que já nos causa estranhamento: sua janela de aparência vertical (que no fundo é quadrada), tal qual um 3×4 de uma foto, ou melhor, tal qual um perfil de facebook. Ao longo do filme – e para isso nem precisamos ir tão longe, basta reconhecermos o verde de seu apartamento – percebemos que a janela nos remete mesmo, graças à dessaturação de suas cores, a fotos com filtro de Instagram em movimento. É uma escolha ousada, quase embutida de um preconceito natural pela plasticidade recorrente e automática, que nos atrasa de uma imersão imediata no filme, mas que ao fim coaduna com os princípios instauradores da narrativa: a virtualidade de um acompanhamento oco que nos alimenta com placebo.

A sutileza do argumento está em se incrustar pelo crossover entre duas solidões: uma proveniente do flâneur europeu do fin de siècle, que não se adequa à imprevisibilidade de um mundo em transformações – do declínio da experiência feudal ao desenvolvimento urbano-capitalista – e outra advinda do andarilho estacado, que conhece todo um novo mundo – mundo que também se transforma dentro e fora do real –, a partir da sua própria cadeira e somente dela, com a internet. Dessa dicotomia secular, tão contígua (pela reformulação do espaço de convivência) e distante (pelo paradigma temporal que impõe), entrecruza-se um interessante horizonte da arte: por um lado, o pessimismo schopenhaueriano verte-se num decadentismo literário (Baudelaire, Poe, Alcindo Guanabara) no qual as palavras vagueiam por um detalhamento de cada pormenor do olhar para quem sabe trazer algum sentido do spleen epocal (a multidão no conto de Poe não é nada mais, nada menos, do que uma composição disforme desses tantos homens modernos); por outro lado, o apocalipse virtual disseminado, antevistos na população gorducha de WALL-E (2008), de uma civilização que se embrenha na companhia de um simulacro e vampiriza-se por sangues celulares, dilui-se em um cinema de rarefação (Gus Van Sant, Sofia Coppola, Tsai Ming-liang), de um mutismo patente, manifestamente incapaz da palavra, visto que o verbo já é arrombado pela imagem retumbante de tão fácil acesso deste outro mundo.

Juvenal é Poe, é a literatura. Margô, a “gorducha”, o cinema.

Como em Hou Hsiao-hsien, a narrativa recai entre trilhos de uma simbologia antiga reconfigurada – os trens da modernidade ainda carregam multidões. Juvenal, motorista do trem, é a ponte entre a aurora da era moderna trazida pela maria-fumaça e a contemporaneidade que ele próprio vive e inescapa. Juvenal é mineiro de 2013. Gosta de caminhar por entre a multidão, reflete pensando alto quando sozinho em casa, gasta sua energia com putas e não compreende a afeição feminina que bate à sua porta a cada almoço entre trabalho. Margô masturba-se com um vibrador fofinho, que talvez nem seja um de origem. Conheceu seu noivo na internet, claro, e depois de apenas alguns encontros já resolveu casar por que “batia o perfil”. Veste uma munhequeira do primeiro ao último plano. É a síndrome do túnel de carpo jogada por um roteiro espertamente silencioso para não esgotar-se em explicações óbvias mas que acaba reiterando obviedades como qualquer outra redundância: de que ela é uma mulher voltada para as modernidades líquidas (Bauman) e enclausurantes da informática. Ele dirige, ela é voyer; mas, quando juntos, ela age, ele se cala.

A câmera, também esperta, escrutina cada idiossincrasia em tom menor, sem muito alarde. Em planos-sequências de alguns minutos na casa dele, observamos apenas uma panorâmica lenta de um cabo ao outro, ou a lente movendo-se languidamente num eixo de trilho circular, saindo do perfil de Juvenal para chegar em Margô. Sem contracampos numa conversa-monólogo, como todas quase são.

Quando não, outras tantas são monólogos interiores. O silêncio pode enfatizar um gesto, pode espocar o indizível, pode até ser a celebração da imagem totalitária… mas às vezes é só um não-confrontamento diante do mundo. Essa linha é tênue e invisível, até que uma imagem a contradiga. Entre a apreensibilidade da palavra muda, da ação, e a falta de uma proposição instauradora, há o limbo de uma passividade conformista que apenas flui como rebarba regurgitada de outros movimentos, cinemas, artes e mundos.

Esta nulidade de ação diante das transformações do mundo lá no fin de siècle fazia com que Bernardo Soares voltasse pra si e questionasse em prosa poética fragmentária a validade do rumo que tomávamos para a História. A crise existencial deflagrava um processo a se lutar. Em Poe, esta solidão fazia com que o narrador levantasse o olhar para fora do Café D… e fosse atrás do senhor que lhe sugeria ao espírito as idéias de “vasto poder mental, de cautela, de indigência, de avareza, de frieza, de malícia, de ardor, sanguinário, de triunfo, de jovialidade, de excessivo terror, de intenso e supremo desespero”. Não era pouca coisa… Em O Homem das Multidões, a nulidade é de reação, é a de fricção quanto aos atritos que a física nos impõe… não é uma nulidade de consonância ou de afastamento idealista platônico, mas de prostração diante dos presentes ou violações da vida. Seja a efetivação de um casamento que lhe atinge sem o machucar ou um jogo de copos que lhe acrescenta sem lhe empurrar, estanque não só é a fumaça do cigarro que se dissipa no ar. 

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