Boi Neon, de Gabriel Mascaro (Brasil/Uruguai/Holanda/Espanha, 2015)

setembro 1, 2016 em Cinema brasileiro, Em Cartaz, Fábio Andrade

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O boi e o brilho
por Fábio Andrade

Das várias aproximações possíveis a Boi Neon, de Gabriel Mascaro, uma particularmente proveitosa está indicada em uma escolha de casting discreta, mas que é fertilíssima semente de conversas: a presença de Vinícius de Oliveira no papel de Júnior, personagem que chega já na segunda metade do filme para substituir o rude vaqueiro Zé (Carlos Pessoa).

A primeira conclusão a ser tirada diz respeito à própria trajetória de Gabriel Mascaro como realizador, que interessa apenas como reflexo de o que acontece em seus filmes: a substituição de um ator não-profissional, Carlos Pessoa – um tipo que tem como maior valor a agregar à personagem sua própria autenticidade, e cuja personagem vai embora, inclusive, porque é contratada por um fazendeiro mais rico, que releva suas puladas de cerca éticas, sua sina de Grande Otelo, para poder lucrar do seu lido especial para com os animais mais ariscos, mais selvagens, mais autênticos – por um ator profissional, detentor de uma história própria na tela, não necessariamente mais consciente de sua presença física, mas certamente mais cultivado, mais claramente moldado para ser uma imagem – como as horas dedicadas ao seu cabelão e à sua beleza cuidadosamente tratada deixam evidente. Júnior, personagem sem nome que se afirma apenas como um pós-alguém, é tanto índice de profissionalização da vaquejada como espetáculo, dentro do filme, como grifo da profissionalização do filme mesmo (que já trazia Juliano Cazarré e Maeve Jinkings nos papéis principais) como uma espécie de espetáculo, não menos exótico ou pitoresco do que o boi pintado com tinta que brilha no escuro (e não vês como ele brilha?). E, se falamos em espetáculo, falamos, necessariamente, na existência de uma platéia.

A segunda, mais profunda, conclusão vem da escolha específica de Vinícius de Oliveira, ator revelado ao Brasil e ao mundo no papel de Josué, o menino protagonista de Central do Brasil (1998), de Walter Salles. O paralelo é fortuito pois, assim como o filme de Salles, Boi Neon se impõe – mesmo que provisoriamente – como um dado histórico considerável na relação do cinema brasileiro com aquilo que se convencionou chamar de world cinema – saco de gatos ofertado pelos centros produtores de maior prestígio (Estados Unidos e França, especialmente) à produção periférica que ganhava seu carimbo de aprovação traduzido em participações e premiações nos festivais “A list”. Premiado em Veneza e Toronto após o sucesso nada desprezível do anterior Ventos de Agosto (2014) em Locarno, coroado com retrospectiva do diretor no reputado Lincoln Center, em Nova York, a segunda ficção em longa-metragem de Mascaro cumpre com rigor certa liturgia de inserção no circuito comercial dos festivais internacionais, acumulando credenciais que, de valor sempre discutível, seguem como objetos de inevitável cobiça de muitos de seus pares (mas não todos), sejam eles brasileiros ou não. O aceno a Central do Brasil, premiado em Berlim à sua época e divisor de águas indiscutível na carreira de Walter Salles, afirma que Boi Neon não só está disposto a jogar esse jogo, como assinala que essa postura é, senão programática, decerto auto-consciente.

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Júnior e Cacá, em Boi Neon (2015)

Josué e Isadora, em Central do Brasil

Josué e Isadora, em Central do Brasil (1998)

A contradição inerente ao world cinema é o que é: uma contradição, não um pecado. Se há, neste diálogo, um pressuposto colonialista inevitável, cineastas sem dúvida entre os maiores das últimas décadas, como Apichatpong Weerasethakul, Hou Hsiao-hsien e o recém-falecido Abbas Kiarostami, tampouco negam ou negaram essa negociação – muitos deles dependeram vitalmente dela, movendo totalmente seus núcleos de produção para os grandes centros do financiamento cultural mundial. A auto-consciência se torna, assim, mais importante do que mera inflamação iluminista: em vez de simplesmente jogar o jogo, Boi Neon expõe o voluntarismo de sua participação ao olhar crítico do espectador – na presença de Vinícius de Oliveira, sem dúvidas, mas não só – mudando a chave da questão: importa menos que a negociação tenha sido feita do que as bases acordadas, e tensionadas, por ela.

O filme faz, portanto, o que lhe cabe fazer: se a contradição é inevitável, é preciso encená-la. Com essa honestidade primeva (lembremos do plano de abertura de ABC África, de Kiarostami, mostrando o fax que lhe encomendava o filme), é possível morder (e assoprar) a mão que alimenta; ou, nas palavras de Pierre Bourdieu, partindo da literatura, em As Regras da Arte: “O campo é uma rede de relações objetivas (de dominação ou de subordinação, de complementaridade ou de antagonismo, etc) entre posições… Todas as posições dependem, em sua própria existência e nas determinações que impõem aos seus ocupantes, de sua situação atual e potencial na estrutura do campo, ou seja, na estrutura da distribuição das espécies de capital (ou de poder) cuja posse comanda a obtenção dos lucros específicos (como o prestígio literário) postos em jogo no campo”. Joga-se o jogo na esperança de, uma vez em campo, mudar suas regras.

Dado este cenário, na pior das hipóteses Boi Neon se sacrificaria em um churrasco superfaturado, com farofa suficiente para camuflar carne de segunda com carimbo adulterado para gringo não ler. Na melhor, o filme sentaria à mesa como o convidado que, de tão maldito, fez por merecer as mais altas honrarias, naquilo que a museologia espertamente apelidou de “crítica institucional” (com duplo sentido): obras que, ao fazerem a crítica das instituições que as abrigam (o que inclui, necessariamente, algum tipo de assimilação – um convite à mesa), visam agir ativamente na configuração política daquela “rede de relações objetivas”, alterando-a de dentro para fora – ou seja, revitalizando-a pela ameaça de destruição, ajudando-a a superar os motivos dessa mesma crítica. Ganham todos: os artistas sentam-se à mesa e comem bem, uma vez na vida que seja, e o museu – e os festivais de cinema são um museu – tomam, dessas críticas, não só o valor agregado que as transforma em auto-crítica (nada mais eficiente, como estratégia de marketing, do que a estrela hollywoodiana que vai ao Saturday Night Life debochar de seu próprio status como engrenagem voluntária de um sistema genocida), mas também a possibilidade de se repensar, se reinventar, se manter relevante – logo, se fazer uma instituição ainda mais forte, capaz de absorver mesmo as mais duras críticas e reciclá-las como valor.

Fossem, o mundo e os filmes, mais simples, Boi Neon estaria confortável e facilmente identificável em uma dessas posições extremas. Mas o mundo é complicado e os filmes, ao menos aqueles que não simplificam para fazerem sentido, exigem ser vistos. Na atual conjuntura que fatura o já visto, filmes que precisam ser vistos se tornaram um luxo… mas parte da graça do cinema em relação ao museu é que o luxo não necessariamente se traduz em escassez, e a escassez não resulta em dificuldade. O que pode sobrar de melhor, em toda essa abundância, é a permanência de um certo mistério que a auto-consciência – se tomada como fim, não como princípio; ou seja: se transformada em cinismo – tende a devassar.

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O filme, porém, é mais esperto que isso: ao se aventurar em um contexto que coloniza, controla e exotiza o corpo terceiro mundista, o diretor cria uma fábula precisamente sobre o controle desse mesmo corpo, espelhando, na trama, sua condição de existência. Não faltam imagens que ilustrem esse dilema, tornando o problema do filme uma confidência ao espectador: dos bois marcados a ferro quente ao unicórnio de brinquedo cintilante que Cacá (Alyne Santana) vinhetiza, planando sobre o curral, passando por todos os corpos que são medidos, esquadrinhados, coloridos, depilados pelo filme, Boi Neon versa sobre o que há de submisso e o que há de autônomo nesse processo de controlar o corpo… sobre o quanto esse corpo pode ser adestrado e o quanto de forças lhe sobra para reagir. Não à toa, a imagem calculadamente iconográfica de Maeve Jinkings – de cabelo loiro, rebatizada Galega – com cabeça de cavalo se impõe no filme ao mesmo tempo como sua didática e seu paradigma: caberá a ele o dilema de se decidir entre o salto alto e o casco de cavalo.

Para fins críticos, a facilidade gerada pela auto-consciência despudorada é que, com ela, o filme deixa de ser só filme e passa a ser, também, um pouco crítica – ou, como estampa a conhecida camisa de outro cineasta de Recife, Kleber Mendonça Filho: todo cineasta é um crítico frustrado. A própria existência de um filme que se afirma auto-consciente, como Boi Neon, é também um gesto, uma intervenção historiográfica; sua carne fala. E, do corte, sangra uma voz que, diferente do mistério voraz da esfinge edipiana, se debruça sobre o mapa que anatomiza seu próprio corpo e se oferece para pensar junto do crítico – que, por sua vez, tem a autonomia de decidir se aprecia ou não a companhia. Para isso, porém, é preciso ouvir. Escutemos, com atenção, as palavras do bife.

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Aqui e agora

Se Central do Brasil é um marco materializado, Boi Neon se coloca, antes de tudo, como historiador de si mesmo: o que mudou? E o que permanece igual?

Em primeiro lugar, há de se notar um respeito à autonomia dessa mesma história: Júnior não é apenas sombra do Josué do passado, mas uma nova articulação a partir do mesmo corpo, que toma o passado como ponto de partida para afirmar, sem rodeios: “eu mudei” (diria, inclusive, que a “sacada” da escalação só se fará notável para a grande maioria dos espectadores retroativamente, quando o nome do ator aparece nos créditos finais). Em vez de carregar o nome bíblico de um líder de Israel, carrega um não-nome, referente a um pai não identificado que importa tanto quanto é afirmado ausente. É, também, um personagem presente, mas codjuvante. Se o cinema brasileiro muitas vezes se voluntariou na interrupção e reinauguração pauloemiliana de sua própria história – de Cidade de Deus (2002) a O Som ao Redor (2012) – ou encarou-a com ironia ou pessimismo – pensemos no tratamento dado à figura de Carlos Reichenbach em Avanti Popolo (2012), de Michael Wahrmann – Boi Neon propõe uma outra via: muito mudou, algo permanece; o que fazer?

Um road movie, talvez? Nem tanto. Há, aqui como lá, um caminhão, uma criança sem pai (em Central, Josué; em Boi Neon, a menina Cacá), o sertão como espaço mítico, e uma possibilidade de conexão entre o profundo interior brasileiro e as mais reputadas telas internacionais. Mas enquanto Walter Salles subia na boleia reverente ao ímpeto da caravana Farkas de “descobrir um Brasil” a rigor já há muito descoberto, Boi Neon é um road movie estático, mais Paisagem na Neblina (1988) do que Corrida sem Fim (1971), de um caminhão que aparece quase sempre parado, e que, quando muito, faz cabotagem em círculos ao redor de seus pontos de parada.

A parada, no caso, é mais que uma espera; é onde o show acontece. Mascaro, afinal, é um dos representantes mais celebrados da nova geração do cinema pernambucano – aquela que, graças a políticas de Estado que não existiam para a geração anterior de Cláudio Assis e Lírio Ferreira, pode escolher ficar. O filme reflete a política desenvolvimentista do Nordeste dos anos Lula e Dilma, retratando esse espaço não mais como clareira mítica da carência ou da pureza, mas como potência heterogênea. Entre Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), Central do Brasil e Boi Neon pode-se, antes de tudo, visualizar a história de um pedaço do Brasil. O sertão, literalmente, virou mar: se tornou polo produtor de surfwear.

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Se o simples registro dessa transformação não seria mais do que esforço de propaganda política, Boi Neon percebe, ali, o canto da ordem estética do dia: a possibilidade de convivência entre opostos em um mesmo espaço que – de Bernd e Hilla Becher a Apichatpong Weerasthakul – encaderna a cartilha curatorial de nossa época. Nada mais rico do que um sertão que virou mar, desde que ele não tenha deixado de ser sertão. O filme passa a se dedicar a articular e promover, mais do que registrar, essas inversões, em esquetes em tableux que reafirmam o seu ponto de partida. O drama da estrada é substituído por uma performance permanente que não exatamente desafia o status quo, mas sim o põe plantando bananeira. Um número circense, em suma. O para-choque de caminhão que, em Cinema, Aspirinas e Urubus (2005) ou Estrada para Ythaca (2010), celebrava a platitude de que “a jornada importa mais do que o destino” lambe a poeira de seu próprio atoleiro: a estrada só é promessa de aventura para quem nunca teve negada a possibilidade de ficar.

O fascínio por objetos que carregam impressão de contradição, a bem da justiça, não é novo e espelha um impulso fundamental do homem em direção a obras de arte (ao menos do homem contemporâneo, aquele que Jacques Rancière chamaria de o homem da era estética). Está lá na ostranenie do formalismo russo – o efeito criado pela obra de arte para distanciar o espectador do mundo comum, gerando um estranhamento no ordinário – e no A República, de Platão – “Os objetos que não convidam o espírito à reflexão são todos aqueles que não conduzem simultaneamente a sensações contrárias; os que conduzem, coloco-os entre os que convidam à reflexão, sempre que a sensação, quer venha de perto, quer de longe, não põe em evidência se se trata de um objeto, se do seu contrário”. Boi Neon sistematiza esse efeito como princípio organizador: todo o filme é uma teia de inversões, onde todo um alude a um outro. Do road movie que não se mexe sobre um vaqueiro interessado em moda à garotinha apaixonada por cavalos e a futura mãe de família que trabalha como segurança armada, o filme materializa esse fora utópico, esse outro que poderia ser eu, de certa maneira criando dois filmes que se encontram, sem se chocar: o do mundo dos personagens (o dentro) e o de seus desejos (o fora).

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Aludir, porém, não é materializar, e duas andorinhas não fazem Verão. Uma vez estabelecido esse princípio fundador, Boi Neon se acomoda em uma encenação ainda sim binária, estanque, que começa de fato em um lugar diferente do que se convencionou esperar, mas termina nesse mesmo lugar. Muito à maneira de Apichatpong Weerasethakul, o que se vê são diversas manifestações, ou mesmo aplicações, desse mesmo conceito; mas o que, em Apichatpong, é princípio, aqui é fim: mais do que registrar as modulações geradas por esse disparador, as cenas ilustram, de variadas maneiras, um princípio que não muda. Em vez de uma representação em devir, em permanente transformação, o filme faz uma espécie de mimesis de ponta cabeça. Se o mar se separou da praia (ainda o paradigma de um filme como Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo, de Karim Ainouz e Marcelo Gomes), não há, no fim das contas, desejo ou necessidade de mudar. Aproveita-se a brisa que sopra do Atlântico, fechando os olhos para que não entre areia.

A opção pela desdramatização – pela anulação de uma progressão dramática; de uma mudança – se coloca, na verdade, como postulado pós-dramático: os personagens já começam o filme mudados; solicita-se, agora, o direito de ser quem se decidiu ser por pouco menos de duas horas. Se Central do Brasil era também um Bildungsroman – de Josué, talvez, mas certamente de Isadora (Fernanda Montenegro), ainda que tardio – aqui tudo já está devidamente formado desde o princípio; não há nada a aprender. O que se busca – o filme, mas também Iremar (Juliano Cazarré) – não é a possibilidade de uma escolha, um protagonismo (do grego protos – primeiro – e agon – desafio; em outras palavras: um desbravador), mas a oportunidade de refinar a artesania do gesto. O que se busca é, no fim das contas, uma oportunidade.

Há uma dubiedade, mais do que uma dualidade, que nasce dessa busca. Pois se, por um lado, as cenas são facilmente enquadráveis como demonstrações de savoir faire, há, por outro, em diversas delas, margens para uma interação com o inesperado, com o descontrole, que quebram o binarismo vigente e rendem momentos memoráveis. Não há ilustração mais clara da pedagogia desse deslocamento do que a reaparição da cena da mulher-cavalo: enquanto a primeira apresentação é finamente estilizada à moda do neon-realismo e, em consequência, friamente esterilizada em sua transposição ao presente, a segunda, mais à frente, contrasta a performance com o ruído da platéia, a sujeira da lona de fundo, ressaltando uma dificuldade de adequação dos desejos à realidade que é, também, sua possibilidade de transcendência. Daquele choque entre figura e fundo nasce uma terceira coisa, junto ao espectador, que transforma o binarismo em dialética.

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Em igual medida, há os animais, que, como elementos de cena ou como pano de fundo, criam uma perturbação, um duro contraste à estilização doce que o filme pratica – e que tem em alguns momentos de trilha-sonora uma ameaça hiperglicêmica. Quando, logo no princípio, Iremar conta a Cacá que geleia é feita do mocotó guardado dentro da canela do boi – uma das claras metáforas de um filme cheio delas – a presença dos animais ao fundo, lutando para se manter de pé com a trepidação do caminhão, equilibrando-se nas mesmas canelas que escondem a matéria-prima do doce, palpabiliza e desafia o que o diálogo ilustra ou teoriza, e o que o prateado soft da bela fotografia de Diego García pictorializa. Desses encontros – seja num confronto entre vaqueiro e bezerro, ou num homem que masturba um cavalo – Boi Neon aponta para outros filmes possíveis que pressionam e invadem o espaço controlado da cena, efetivando, com isso, sua própria contradição: o corpo, por fim, se rebela, ao menos até, como na própria vaquejada, ser enlaçado pelo espetáculo novamente.

Daqui pro futuro

Esse cabo de guerra entre momentos de bruta revelação e outros de reafirmação desse constante deja entendu planifica o filme como uma experiência agradável, de notável talento, que corre sem maiores sobressaltos, mas também sem grandes surpresas. Não muito diferente de Ventos de Agosto, Boi Neon seguiria como promessa adiada, sem sustentar plenamente a força que Doméstica (2012), A Onda Traz, O Vento Leva (2012) e As Aventuras de Paulo Bruscky (2010) tão habilmente construíam, não fosse seu desfecho.

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Há, no encontro de Iremar com Geise (Samya de Lavor) um potente curto-circuito que de certa forma subverte a lógica binária (ainda que invertida) do filme: Iremar erotizando não só uma mulher, mas toda uma fábrica e um desejo de transcedência de sua própria condição; Geise carregando no ventre um rastro que é igualmente passado e futuro, fora e dentro, ela e um outro. A mais-valia do shock value inicial é aos poucos solapada pela duração, criando uma verdadeira movimentação política dentro da cena, obrigando – como fazia Doméstica – o espectador a se confrontar com suas expectativas e preconceitos, transcendendo o incômodo inicial como um gesto potente de autonomia. Mas, sobretudo, trata-se de um plano forte por toda uma coreografia de gestos – o olhar decidido de Geise; a forma erotizada com que Iremar aperta sua barriga grávida; o recorte suave da luz e a movimentação lenta e nada invasiva da câmera – que levam o filme novamente do binarismo à dialética; da aparência de dois à existência de três.

Há algo de pulsante e de tardio na simplicidade dessa descoberta. Mas a esta altura, o boi há muito já se sentou à mesa, e o jogo permanece aberto. E se Boi Neon aponta tão claramente para um porvir – um filme que termina literalmente grávido – permanece a curiosidade de como Gabriel Mascaro tensionará, em um próximo filme, a etiqueta esperada do convidado que, em segredo, não perde a oportunidade de bagunçar os talheres.

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