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Figuras da persistência

Há um conhecido provérbio grego a dizer que “a faca não corta o fogo”. Muito aparta-se com uma lâmina. Muito ceifa-se com sua violência, sua vontade de dividir. Diante do fogo, a lâmina e seus ásperos fios de metal tornam-se impotentes – nada retiram. Queimam-se, apenas. O provérbio é uma metáfora sugestiva para captarmos a potência de dois documentários brasileiros que estrearam nesta Berlinale de 2019. Embora tenham formas de abordagens e mesmo grupos temáticos bem diferentes, ambos os filmes oferecem retratos contundentes de algumas lutas políticas no Brasil dos nossos dias. Chão é um documentário observacional de um assentamento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o MST. Espero Tua (Re)volta narra e recapitula as ocupações dos estudantes secundaristas em São Paulo em 2015 e 2017, mas também realiza um retrospecto das manifestações de rua, seus avanços, seus recuos, que marcaram o país nos últimos anos. Em comum, os dois filmes compartilham uma vontade de ocupar, de intervir na cena política com a urgência de criar outra ágora, outra esfera pública. As duas obras captam uma chama viva, irrequieta, que corte algum apagará.

 

Uma câmera a deliberar

Da faca passamos às enxadas. Ou às mãos a segura-las. Aos dedos um tanto trêmulos de uma camponesa de longos cabelos brancos, trançados, que apontam, num horizonte imaginário, onde plantar, capinar; onde dividir a terra que um dia poderá ser reconhecida como sua. A força de Chão nasce da sua proximidade com o local, com as pessoas que ali moram e com o projeto político do MST. Um filme paradoxalmente atual, embora pareça ter vindo um tanto tarde, dado o notável atraso de um documentário que se fie a simplesmente retratar o maior e mais longevo movimento popular brasileiro. Sim, houveram outros filmes sobre o MST, como é o caso de Uma Terra Para Rose (1987), de Tetê Moraes, que denuncia o impiedoso e imperdoável assassinato de mais uma liderança popular brasileira. Na maioria dessas obras, contudo, os cineastas alinham-se ao discurso político de forma abstrata, ao teor ideológico e às proposições articuladas pelo movimento. Há em Chão algo ausente nos documentários anteriores: uma total aderência ao local, ao assentamento que se torna gradativamente presente e faz da ocupação uma forma de convívio, um gesto de transformar o espaço, improdutivo, num lugar habitado por camponeses. São frames de imersão num lugar, como se fosse mais um documentário sobre o assentamento em Santa Helena, no Goyaz, do que propriamente um filme “sobre” o MST. Em Chão não há generalizações, mas uma aposta em deslocar a utopia de um lugar por vir, e de um futuro projetado para um horizonte intocável, ainda por aparecer, num cotidiano presente. É um filme a regar, junto com seus personagens, junto com seus espectadores, a mesma terra, o mesmo lugar que retrata.

Camila Freitas prima por um ponto de vista sobre o MST, uma forma de olha-lo, uma maneira, com a câmera, de coabitar seus assentamentos. Mais do que simplesmente observar os camponeses, na tradição da “mosca na parede” vinda de Frederick Wiseman, a câmera de Freitas e de sua equipe instala uma ética do convívio, um filme que se dispõe a estar junto com o movimento. São minutos de sociabilidade, como nas prosas à toa, na manifestação que distribui produtos orgânicos aos habitantes vizinhos, ou mesmo nas horas em que cada representante de um assentamento toma a palavra.

Este olhar é sutilmente costurado pela montagem. Não por acaso, uma das cenas mais enfatizadas é a construção de uma torre de vigilância, de proteção. Uma torre alta que possui a missão de espreitar para ver se não virão capangas, policiais, viaturas, homens fardados, ou disfarçados, a “reapropriar”, a agredir, a retirar o assentamento do seu efetivo lugar. Há um olhar atento e preocupado dessa vigília que passa pouco a pouco a ser o do espectador. Um olhar junto e ao lado dos ocupantes, horizontal, mas que fura o retrato. De forma inteligente, Camila Freitas inverte o ponto de vista comum nos filmes “sobre o MST”. Quando menos se percebe vem um repórter e pede uma filmagem, uma encenação qualquer, a qual é negada por Ellizabett Conceição, a liderança responsável por realizar a interlocução naquele momento. Os repórteres insistem para entrar e recebem outra educada negativa das lideranças. O movimento desconfia da representação midiática, opta por evitá-la. Delicadamente, Chão situa-se na linha de fronteira. Limita-se a flagrar a câmera do repórter. Flagra e cria frestas de denúncia, como se já estivesse junto aos assentados a olhar o patético e ridículo teatro do discurso sobre o MST, pintado como violento, sangrento, agressivo. Na sua retórica observacional, Freitas convence sobre a docilidade daquele convívio, já que todos são personagens cativantes, que despertam uma certa vontade de ouvir mais, de tomar café com eles, pitar, beber, prosear, puxar conversa – e quem sabe até plantar e regar junto.

Poucos documentários brasileiros fizeram essa inversão de ponto de vista tão argutamente, pela qual o olhar de dentro gera um lampejo, um estranhamento de como o mundo urbano e midiático são observados pelo MST. Do retrato-reportagem sobram apenas os cacos desse espelho partido – um olho de dentro a retratar um espio de fora, distante, indiferente, impiedoso, estrangeiro. Chão, assim, alinha-se a Martírio (2016), de Vincent Carelli, na forma como passa-se a compreender o pathos totalmente desigual de uma luta política por sobrevivência. O filme de Camila Freitas, no entanto, distancia-se do tom épico e didático de Carelli, e faz da presença uma forma de escuta do movimento.

Numa das poucas sequências que ocorre longe do assentamento, acompanha-se um julgamento, os votos de juízes, a arguição dos advogados sobre a necessidade das ocupações, a urgência de uma reforma agrária. Ouve-se e vê-se todas as arguições e a câmera situa-se, uma vez mais, junta aos camponeses, e os retrata a bocejar, inquietos diante de uma angústia sobre a decisão final. Mais uma vez, a paciência; a comovente retórica do MST de que não é preciso aguardar um reconhecimento judicial, político e legal para agir, para permanecer ocupando, para continuar a plantar. Na sua inversão, constata-se um judiciário injusto. Mas isso, naquele momento, importa menos, já que a força do MST brota justamente por se fiar numa cultura política que vai além da chancela estatal e sequer solicita uma representação política legislativa. Um movimento paraestatal que acena para um direito fundamental, um pilar da nossa constituinte ausente nas políticas públicas. Um espaço político, enfim, que não cultiva o lugar do pequeno agricultor. O filme faz dos fios de deliberação, tão bem cultivados pelos camponeses, uma forma de interpelar os espectadores, e os cidadãos do mesmo país – do mesmo chão. É dessa fresta, é desse intervalo político que Chão nos fala.

 

Por uma narrativa das ocupações

Espero Tua (Re)volta (2019) é um filme de notável força pedagógica. Ao vê-lo pela primeira vez fica a impressão de como será uma obra essencial a ser exibida nas escolas para aguçar e transmitir uma cultura e história política que ele tão bem reivindica. Tal como ocorre em Chão, Eliza Capai privilegia o olhar interno. Mais do que um ponto de vista, no entanto, ela dá voz a lideranças estudantis. Logo nas primeiras sequências, os espectadores passam a ouvir as vozes de Lucas “Koka”, Nayara Santos e Marcela Jesus. O uso da voz over desses adolescentes que vivenciaram as ocupações é bastante acertado. Passam gírias, tiradas, e sobretudo a narrativa ganha um notável ritmo, dinâmico e didático. Juntas, intercaladas com comentários emocionados sobre as imagens de manifestações e as pancadarias repressivas, as três vozes emanam autenticidade, aproximam e possuem trejeitos caros às narrativas de youtubers.

Ao contrastar com outros bons filmes sobre as ocupações estudantis como o longa Escolas em Luta (2017), de Rodrigo Marques, Thiago Tambelli, Eduardo Consonni; e o curta Secundas (2018), de Cacá Nazário, que exibe o ponto de vista dos estudantes de Porto Alegre, Espero Tua (Re)volta certamente obtém uma maior densidade narrativa. Capai, junto com as teias de casos dos estudantes, aposta em leituras de um maior fôlego temporal. Retorna às manifestações de 2013, para o movimento pelo passe livre e ainda acrescenta o golpe de 2016 até chegar ao seu desdobramento mais direto: a eleição de Bolsonaro, já no ano passado. Paulatinamente, o filme mostra uma geração jovem e aguerrida que soube obter vitórias, como o recuo das mudanças das escolas no Estado de São Paulo; e derrotas, como o acirramento do autoritarismo no mesmo Estado – e no país. Esse talvez acabe sendo o maior mérito do filme: como entrelaçamos os eventos cotidianos de uma ocupação com os marco-acontecimentos do país. Como a organização da cozinha, os debates sobre racismo, a luta por uma igualdade de gênero reflete-se no discurso diante dos procuradores de justiça e dos vereadores. Nesse viés, a cultura e a história política acabam obtendo escalas complementares – é na luta por uma educação digna, a brotar no interior de cada escola pública, que um grito político foi contaminando e obtendo um expressivo coro em todo país.

É curioso constatar como não se vê aulas nesse filme sobre o movimento estudantil. O que ele deixa claro, por outro lado, é um comovente aprendizado político desses mesmos estudantes numa época totalmente adversa. Em determinado momento da sua narrativa, Marcela Jesus diz que sentia falta de ler sobre as rebeliões dos escravos, a história dos movimentos estudantis – é contra essa mesma ausência que eles clamam, como se não mais suportassem uma educação que prima pela passividade política, por uma dócil obediência. A escola, literalmente, ganhou e ocorreu nas ruas, naqueles dias, naqueles meses; nas manchetes, nos temas de debate, nas reportagens.

Uma cultura política que, aliás, não se afronta diante da violência e repressão policial. Koka e Marcela Jesus possuem uma consciência aguda sobre como seus corpos negros desafiam os homens fardados. Afinal, eles são apenas crianças, são simples estudantes pedindo, vejam só, para estudar de forma digna e decente. Foi com esse bordão que eles, estrategicamente, conseguiram comover a opinião pública daqueles dias. Suas vozes emaranham-se num coro crescente, num coro que os fortalece. Koka faz lindas e memoráveis rimas de raps – canto com o corpo. Nayara passa a liderança estudantil para uma sucessora. Marcela Jesus fala de como parou de alisar o cabelo: assume sua identidade negra. Nos seus minutos mais tocantes, o documentário de Capai capta uma geração em formação – uma formação longe das escolas, dos pais, dos professores, uma educação feita por eles mesmos, autônoma, sem partidos políticos (mas convicta nos seus posicionamentos) e já pensando num futuro legado para a escola onde estudou, seu bairro, a universidade que frequentará, sua cidade, seu país.

Há, contudo, um único e espinhoso senão diante da montagem de Espero Tua (Re)volta. O filme alinha-se abertamente à esquerda, e com isso cria um posicionamento político bastante claro, e realmente saudável, que congrega a diretora e seus personagens. A montagem, no entanto, fia-se numa narrativa sobre o golpe de 2016 e chega a ver uma continuidade entre esse acontecimento e a chegada de Bolsonaro no poder. É claro que essa continuidade existe – e não cabe aqui entrarmos nas minúcias históricas – mas o filme também opta por não dar uma imagem e voz precisa à emergência de movimentos sociais à direita e a uma derrota eleitoral que realmente ocorreu depois do golpe. Ele é sutilmente anacrônico. Dessa forma, a retórica do filme acaba por acenar para o grupo da mesma “bolha” de valores políticos e cria argumentos que muitas vezes, diante de uma rede de fake news e ondas de pós-verdade, tendem a ser por demais auto evidentes e arrefecem sua força retórica para quem simplesmente pensa e se posiciona diferentemente no espectro político. Trata-se de uma questão mais de forma do que de conteúdo. Não se abre espaço efetivo, no filme, para outras vozes e pensamentos de estudantes e lideranças sobre os movimentos sociais, a pedagogia, o papel da política nas escolas, as políticas de gênero nos governos Lula e Dilma, e mesmo a revisão conservadora da história do país, na qual a ditadura militar volta a chamar-se revolução. Não se trata aqui de acenar para a famosa e inócua neutralidade jornalística. Pelo contrário. O que faltou foi um retrato mínimo das forças antagônicas, as quais foram dissipadas por discursos que podem despertar tanto uma imediata aderência como irrequieta desconfiança.

Chão e Espero Tua (Re)volta possuem em comum uma aposta em movimentos sociais autônomos, que ocorrem à margem do Estado, à margem dos partidos e suas representações. São movimentos críticos às cristalizações de poder e às instituições que marcam o Brasil. São movimentos independentes, mas que, de forma sintomática, pressionam por fundamentos e direitos basilares de um estado democrático, como são a reforma agrária e a educação fundamental. Ao final, o que fagulha é a vibrante persistência desses corpos diante de uma repressão, de um autoritarismo e mesmo de uma indiferença que não será suficiente para desfigurá-los. Cada um à sua maneira, os dois filmes juntos exalam notáveis lições de frestas políticas em tempos de uma barbárie oficializada.


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