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Imagens contra a rua

Existem imagens que gritam. Existem outras, não menos fortes, estridentes, ou inquietantes que conotam silêncio, introspecção. Presentes numa mesma sessão, os curtas Nunca é Noite no Mapa (2016) e Na Missão, com Kadu (2016) possuem um precioso ponto em comum: em ambos a câmera em punho transforma-se num gesto de resistência possível. Mais do que isso: são filmes alinhados a movimentos sociais por reivindicações de moradia e resistência contra a gentrificação, como o Estelita, em Recife, e o Izidora, em Belo Horizonte. É pela câmera, é por sua performance, que eles intervêm na cena pública; é pela imagem que denunciam formas de cerceamento e controle das vidas e subjetividades dos cidadãos sequiosos por ocupar o espaço público. São, portanto, filmes da rua, que ocorrem na rua; essencialmente políticos, que desafiam redes de poderes limitantes à forma como a rua seria celebrada.

Nunca é Noite no Mapa deixa claro seu dispositivo desde os primeiros segundos. Ao som de um calmo Ravi Shankar, a voz over pontua cenas aéreas que surgem do Google Maps. Aos poucos, aproxima-se de uma cidade, de uma rua, de uma viela. E nesta mesma rua, curiosamente, vê-se um sujeito com uma câmera na mão. A voz pontua: “este sou eu”. Há, portanto, um sujeito no mapa – justo no mapa, local historicamente marcado pelo apagamento de subjetividades, pelo controle militar – e um sujeito que fotografa. Com a câmera em punho, ele capta precisamente o instante em que um carro, veja bem, da própria Google está a escanear aquele espaço. Na sucessão de fotografias que se intercalam – de forma digital e cheia de interessantes mecanismos de montagem – vê-se, ao lado do carro da Google, um funcionário de uma empresa de segurança privada. Embora a câmera fotográfica de Ernesto capte este instante de vigilante informação digital, paira no ar a possibilidade da segurança privada estar a serviço desta outra empresa.

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“Todos são iguais perante a lei. Todos são iguais perante o mapa”, reitera a voz do narrador, enquanto vemos, agora, uma grande área urbana e periférica mudar radicalmente para abrigar investimentos relacionados à Copa do Mundo. São esvaziamentos de comunidade mostrados de forma irretocável por uma casa, resistente, teimosa, que estampa em sua fachada: “aluga-se casas e quartos”. A casa ali queda enquanto todas as demais construções que estavam ao redor acabam demolidas. No entanto, lê-se a mesma mensagem, vê-se os mesmos moradores imóveis diante dos tratores, do asfalto a chegar, dos ramos da gentrificação que precisam limpar a rua para torná-la insípida, inóspita, para tornar a linguagem digital do mapa totalmente possível e reconhecível. Com sua montagem, pela gramática do mapa, dos vestígios de acontecimentos passados, Ernesto de Carvalho insere história onde há o apagamento; ele mostra os pontos escuros dessa excessiva claridade da linguagem digital, dos vetores abstratos que pontuam as ruas para dominar os espaços públicos com pulsões do capital privado. Além da câmera do narrador que encontra a câmera do mapa, esse curta cria uma interessante e simples linguagem de movimentação, percurso e trajetos históricos no mapa. Insere movimento e tempo onde há, como é caro ao mapa, apenas recorte, registro, informação e domínio e o faz com uma animação sutil que busca encontrar fendas históricas nos artifícios dos algoritmos.

O curta de Ernesto de Carvalho tem uma estrutura poética e uma urgência política análogas a Je Vous Salue Sarajevo (1995), de Jean-Luc Godard, no qual uma simples, remota e bizarramente banal foto adquire uma incrível complexidade. Godard perfura a imagem e conduz ao instante em que a pesada botina de um soldado aperta a cabeça de um civil. Esse momento eclode com toda a força e grifa a sua célebre frase de que a cultura é a regra e a arte é a exceção. Ernesto de Carvalho segue esses passos: ele frisa a regra de imagens que usamos cotidianamente e que nos apartam de uma verdadeira apropriação política da rua. Sua câmera perscruta uma exceção. É desobediente diante de imagens que policiam as ruas; diante de formas de ver que sequer reivindicam mais a observação típica das câmeras de vigilância, pois somos nós mesmos, como câmera móveis, os usuários desse sistema de mapas digitais, parte integrante e mola motriz de toda a higienização que testemunhamos – e repudiamos.

Desafiante, a câmera e a montagem visam desafiar esse sistema, e não apenas olhá-lo frontalmente. Nunca é Noite no Mapa quer destituir a perigosa abstração das imagens digitais e restituir história às ruas, a despeito de gramáticas, tecnologias e imagens que retiram o próprio chão que pisamos como algo que podemos chamar de nosso. O perigo dessas novas ferramentas tecnológicas reside no roubo do espaço, no silenciamento do comum, no ato de extirpar da rua um último espaço público possível. Com essa simples constatação, essa renitente desobediência transforma-se num gesto poeticamente político e Ernesto de Carvalho grifa uma diferença, gesticula um pequeno dissenso diante da banalidade das ruas que deixam de ser um espaço público, pois são metodicamente desocupadas para dar espaço a outros e nefastos interesses.

Em Na Missão, com Kadu temos uma preocupação similar, embora o mundo abstrato e higiênico das ruas no mapa flexione-se para uma ocupação real, em carne e osso, e as formas de dominação militares tornam-se presentes, interferem e passam a reivindicar, pela violência, o comando das ruas. O curta opta por seguir Kadu, ficar junto a ele – como indica o título – que, inclusive, assina e participa da direção. O filme é dividido em três tempos distintos. No primeiro, vemos o próprio Kadu mais acanhado, a narrar, com suas palavras, detalhes da violência policial num dia de manifestação por reivindicação de moradia em Minas Gerais. Em seguida, ele recebe amigos numa rua e irá exibir, publicamente, as imagens que gravou do dia das manifestações. Orgulhoso, ele se gaba que a cena estava bombando na internet e que se espalhou mundo afora, como de fato ocorreu. O interessante desse momento é como o filme dentro do filme modela um ritual puramente cinematográfico. É pela imagem – quando pública – que essa reflexão torna-se possível, como se ela pudesse incarnar pulsões de catarse a uma experiência profundamente traumática para toda a comunidade que ficou na mira de cassetetes, helicópteros, gases de intimidação, espadadas e balas de borracha.

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Subitamente, na terceira e última parte do filme, entra-se na rua, e, com a câmera grudada no corpo de Kadu, vê-se a manifestação a partir de uma perspectiva interna. Aqui, a câmera subjetiva desdobra-se num veemente testemunho. Inicialmente, o regitro de Kadu vincula-se a todas as imagens e sequências que vemos de manifestações. É, inclusive, na apropriação cinematográfica dessa sequência viralizada pela internet que se concentra a força e a forma do curta. Revelam-se laços comunitários que celebram a ocupação da rua. Garotos jogam futebol diante dos policias, mas de uma forma leve, que não é provocativa e nem visa causar tumultos. São, ali, cidadãos na rua festejando justamente o fervor de toda cidadania, que é o que motiva, enfim, toda manifestação. A comunidade está em peso: homens, mulheres, crianças, pessoas simples. Quando o revide da polícia inicia-se, a digna ocupação da ruas é rapidamente desmanchada. É a imagem dessa desocupação que abriga um dos mais inquietantes momentos do filme. Essas três partes conotam familiaridade e adesão afetiva ao dia a dia da comunidade. Mais do que legítima e perceptível, a liderança de Kadu é sentida pela proximidade com a câmera, pela imagem que o mostra carregando a sobrinha nos braços, como se aquele cidadão tivesse apenas seu corpo – e sua câmera – para proteger-se e proteger seus familiares da brutalidade policial, de veios ditatoriais que só percebem a porrada como um ato de contato político.

Quando o corpo não basta para o embate, quando o corpo queda e fraqueja, restam as imagens e seu poder de encarnação. Ou mesmo a ausência das cenas diante das emboscadas inerentes à guerra das imagens e à peleja por discursos políticos. Sutilmente, o filme tece um potente paradoxo, que oscila entre o grito político e o silêncio inoculado pela violência estatal. O grito das ruas que, de forma tensa, reverte-se nos murmúrios e reclames ressentidos – em palavras que mal saem da boca. Durante a manifestação a filmagem de Kadu capta um documento da repressão, imagens que evidenciam os esvaziamento político da rua. Essas cenas gritam, enervam, comovem. Vem, contudo, um potente silêncio no letreiro final e é nele, não apenas pelas suas informações, que o grito do corpo de Kadu ainda reverbera no corpo dos seus concidadãos, nos espectadores que não estavam lá, que quedam tão silentes como as imagens ausentes das cenas radicais que não pudemos ver. Aliás, a imagem final de Kadu com a voz atordoada, exasperado, com a sobrinha no colo remete, direta ou indiretamente, à escultura grega Laocoonte e seus filhos, onde todo corpo do personagem se contorce para gerar um grito mudo. No caso de Kadu, o grito ainda ecoa depois que se choca com uma imagem ausente.

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Diante dessa estrutura circular – de imagens de um filme que se atam pelas pontas… de um fim que reata-se a um recomeço da barbárie – a filmagem de Kadu obtém feições de um réquiem, de uma modulação melancólica, de derrota, diante do massacre da polícia em restituir a “ordem pública” à rua. Leia-se, por essa ordem, que os carros voltem a passar lépidos, ligeiros e indiferentes às pautas da comunidade quando a caminho da casa ou rumo ao trabalho. As imagens de Kadu atuam contra a banalidade e a indiferença política desse cotidiano e buscam restituir uma sensibilidade comum mínima a qualquer convivência social. Para fora do filme, os acontecimentos transformam-na num fiasco histórico, numa impotência de reversão; as cenas tornam-se documento, registro, passado, pois derrotadas, de forma bruta, pois apartadas das ruas. São imagens de luta que, ao perder o direito da rua, tornam-se imagens de um luto ainda sem ritual definido. É nesse hiato que emerge a estupenda força do filme. Ele nos transmite um grito mudo. Um grito, enfim, impregnado nos tímpanos de cada espectador.

Não há imagem inocente. Juntos, Nunca é Noite no Mapa e Na Missão com Kadu traduzem mais do que o bizarro momento político brasileiro que estamos vivendo nos últimos meses; eles realçam como o jogo com imagens já tornou-se parte integrante do tabuleiro, das peças, e é inerente a qualquer gramática política, seja ela macro ou micro. Os curtas articulam cenas, sensações e afetos que enfrentam e desafiam o vocabulário cotidiano de imagens que nos invadem. Não são imagens contrárias à rua, mas cenas que se chocam a um modelo de rua como espaço público que estamos perdendo, e com modos de circulação vindouros, onde cidadãos transitam como se fossem mercadorias. De um lado, em Nunca é Noite no Mapa, desmonta-se imagens que dominam a rua, que apartam, expulsam e retiram rua das ruas, como se, na abstração alfanumérica, a pavimentação das ruas estivesse se despedaçando. Passamos, politicamente, a andar no mapa, a caminhar pelo ar. E não há intervenção política que não ocorra com os pés no chão. Em Na Missão, com Kadu, por outro lado, vê-se um distinto vértice da partilha do sensível. São imagens vindas de olhares oprimidos: mais do que ir às ruas, e manifestar-se, é preciso mostrar-se na rua, como uma forma, inclusive, de se apropriar da opressão e revertê-la politicamente. Se a rua é o espaço clássico da reivindicação política, é dessa perda, dessa supressão, que esses filmes nos contam – e de uma decréscimo articulado pelo modo como a circulação das imagens empobrece nossa sensibilidade cidadã. Juntos, Nunca é Noite no Mapa e Na Missão, com Kadu gritam para que as ruas permaneçam abrigando o dissenso.


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