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O Paraíso segundo Murnau

Tabu, último trabalho de F.W. Murnau, morto em acidente automobilístico dias antes da estreia do filme, em 1931, encerra a carreira do diretor como a nota final de uma trajetória cinematográfica: a depuração de um estilo e de um olhar que acabam protocolando, em quase metalinguagem, a escrita de seu criador e, também, a do cinema até ali. A trágica história de amor entre Matahi e Reri, filmada in loco no Pacífico Sul e baseada numa iconografia e numa pulsação motora típicas dos contos de aventura celebrizados pela literatura e, já ali, pelo cinema, é ipsis literis o que Murnau trazia desde Nosferatu, de 1922: o convívio entre luz e sombras, vida e morte, natureza e cultura, prazer e dor, vitalidade e degradação. Uma radicalização, pois encontra na tradição narrativa do cinema (de aventura, essencialmente um gênero do movimento, nada mais cinematográfico) uma forma de discurso conceitual típico da arte moderna do século 20.

Tabu é uma radical experiência dentro da filmografia de Murnau, graças a um percurso que decorreu dum motivo típico do fazer cinematográfico, pois ele, após ser convidado em 1926 pela Fox para filmar nos EUA, realizar Aurora em 1927, sofrer interferências em outras duas fitas e ser demitido pelo estúdio, encontra em Robert Flaherty um parceiro para a aventura da realização independente, o que coincidiu com o interesse pelos Mares do Sul. Filmar “em viagem” demanda uma praticidade documental, um desprendimento que Murnau, devoto do aparato tecnológico como melhor meio de experimentação formal, não era tão acostumado, o que tornou Tabu o filme mais “direto” e “literal” de sua obra, e, por isso, seu trabalho avant-garde por excelência – pela miscigenação que se revela nas imagens, híbridas entre uma objetividade documental e uma estilização formalista, entre as tomadas abertas e o plano-detalhe, entre a iconografia do clássico e o “inaugural encontro com o mundo” do Primeiro Cinema. As tensões estiveram presentes também entre os realizadores, pois o diretor de Nanook, o Esquimó pretendia uma antropologia daquele lugar por meio de um conto, mantendo um olhar mais compenetrado, ao passo que Murnau buscava ali uma verdade mais oculta, sensorial (e sexual), num olhar mais penetrado. Em suma, o cinema de Flaherty utiliza a ficção para revelar uma realidade, ao passo que o de Murnau recorre à realidade para construir um mundo. Flaherty acabou abandonando a direção em favor do colega, e Tabu tornou-se mais erótico e (tenebrosamente) apoteótico, onde cada tomada transpira vida e fatalidade, o inesperado e o reconhecido surgindo na cena, o in natura visceral trazido pela câmera documental e o “exotismo idílico” dos motivos patenteados pelos tableaux e pela iconografia de viagem.

A depuração da escrita de Murnau deve muito a essa experiência em rodar um filme essencialmente de aventura – de amor, sobretudo; mas o amor é sempre uma aventura. Presente na obra do diretor, da grande viagem marítima do vampiro de Nosferatu ao epifânico desfecho que é puro frenesi óptico em A Última Gargalhada, o movimento ganha soberania absoluta em Tabu. Movimento e motivo, que é o grande vigor da tradição narrativa clássica ocidental, estão impressos no filme desde o primeiro plano, com Matahi, o nativo do Novo Mundo, como um herói grego. A atenção do filme está nos corpos seminus dos rapazes, depois nas moças com seios à vista, todos lindos e, mais importante, num vigor que se traduz em êxtase, em alegria conjunta, mãos tocando em corpos, que esbarram entre si e entrosam-se com a natureza. É a visão do Paraíso, sublinhada pelo que mais justifica um ideal paradisíaco: o prazer. O movimento do mundo também transparece nas imagens, insinuando uma dinâmica sadia e natural, que faz tudo convergir para a vida, para o momento da Criação – o sexo é vida e morte, e, por isso, (re)criação.

Esse estado existe, mas não sozinho, o filme logo deixará claro. O cinema de Murnau mostra a convivência brutal entre positivo e negativo (o claro e o escuro convergidos), e também como essas forças antagônicas desdobram-se umas nas outras, tumultuam-se, numa degradação inevitável, à qual os personagens resistem. O movimento do casal apaixonado, entrosado e em dança com a natureza, nesse natural de corpos e coisas do mundo existindo, tomará outro movimento, o de proscritos em fuga, interditados por uma tradição que integra o povoado, e um dogma torna Reri um tabu, a virgem escolhida que não pode ser tocada sob pena de morte. Bela síntese dessa visão está na divisão do enredo em dois capítulos, “Paraíso” e “Paraíso perdido”. É outra referência ocidental, aqui reconfigurada, como dizendo que esse Paraíso já sofre com as contingências do mundo material e civilizado, pois o amor do casal é interditado antes do capítulo 2, e, por isso, os paraísos não são antagônicos, são o “Paraíso real”. O tabu é tanto uma realidade material na história como também presença cinematográfica: numa ilha onde o casal encontra refúgio, nada paradisíaca e já maltratada pela civilização mercantil, uma placa flutuante estampa a palavra “tabu”, colocada ali para alertar sobre um tubarão que protege as ostras dos caçadores de pérolas.

O aviso na placa seria a conservação, justificada pela manutenção da vida – mas sem liberdade de ir e vir, mergulhar e transgredir o perigo das águas. A virtude, que sugere preservação e vida, justificaria a regra, o tabu, a paralisia. Matahi, em princípio abatido pela notícia de Reri ter se tornado uma proibição, tomba ao chão, inerte, mas uma criança reanima o rapaz, que partirá para a ação. Ante a virtude, o virtuosismo. O cinema, este que apresenta imagens que geram emoções e sensações, é um grande exercício de virtuosidade, e Murnau o leva ao nível do erotismo, sobretudo aqui, com matérias expansivas, corpos e coisas. Tabu é um filme sobre a resistência contra a degradação e a imobilidade.

O amor de Matahi é inesquecível porque o cinema o torna evidente, latente, explícito, nas imagens finais dele indo, a nado desesperado, ao encontro de Rari no barco que a leva para o horrendo destino imposto. A natação incansável de Matahi, pura consagração do movimento, de um “todo em movimento”, faz ele se fundir ao oceano, ou seja, retornar a uma natureza perdida. O plano final, o último da filmografia de Murnau, traz as ondas do mar, outra imagem-síntese de movimento – acima do Homem –, que logo é sobreposta pelo título do filme. Depuração de um gênio criativo, Tabu é uma carta que Murnau deixou para o cinema.


No dia 22 de Junho às 19h30, a Sessão Cinética exibe Tabu (Tabu – A Story of the South Seas), de F. W. Murnau (Estados Unidos, 1931) no Instituto Moreira Salles – Rio de Janeiro. A sessão será seguida de debate com os críticos da revista.

Uma vez ao mês, a Cinética faz uma sessão no Instituto Moreira Salles, no Rio de Janeiro, abrindo mais um espaço de reflexão e apreciação de filmes fora do circuito exibidor tradicional. A curadoria tem a intenção de programar obras importantes, de circulação restrita nas salas brasileiras, respeitando ao máximo as características originais de projeção de cada filme. Além disso, críticos da revista produzem textos especiais para as sessões e mediam um debate após a exibição.

Tabu será exibido em DCP.

Ingressos: R$ 8 (inteira) e R$ 4 (meia). Vendas na recepção do IMS-RJ e no site ingresso.com.


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