Câmara Escura, de Marcelo Pedroso (Brasil, 2012)

maio 14, 2013 em Cinema brasileiro, Em Pauta, Luiz Soares Júnior

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Aqueles que chegam com a noite
por Luiz Soares Júnior

“A câmara representacional é um energético dispositivo. O que é necessário ser feito é descrevê-lo e seguir as etapas de seu funcionamento”.

Jean-François Lyotard, “Le Dispositif”.

“O tipo de experimento em questão nos dias de hoje pressupõe a manutenção de uma exigência baziniana no cerne de uma análise não-baziniana, que não mais toma o real como segunda natureza, ou como a segunda natureza do filme”.

Nicole Brenez., “Movie Mutations”.

Roland Bathes nos “brindou” com uma definição do erotismo que permanece seminal para pensarmos o caráter intersticial da imagem cinematográfica, meio de cultura e contato entre superfícies, visíveis e invisíveis: “Na perversão, (que constitui o regime do prazer textual) não há ‘zonas erógenas’. (…) é a intermitência, como bem o disse a psicanálise, que é erótica: a intermitência da pele que cintila entre duas peças (a calça e a camisa), entre duas bordas (a camisa entreaberta, a luva, a manga); é esta cintilação mesma que seduz – ou ainda: a mise en scène de uma aparição-desaparição”.

O cinema é antes de tudo affaire de erotismo, não de pornografia. No cinema, tão fundamental quanto o que se manifesta é o que se vela e retrai: o fora de quadro, o fora de campo. Arte ambígua, andrógena: eminentemente materialista, evanescentemente metafísica; sua Física situa-se num limbo temporal e espacial de retração: o Tempo que se evoca e imagina no fora de campo, e que permite a reconstituição do filme, totalidade de momentos descontínuos, numa unidade aparente. A pornografia é, pelo contrário, por natureza explícita; ela não estabelece, como o cinema, este jogar (no sentido literal e verbal) entre presença e ausência, jogo indispensável à participação ativa do imaginário do espectador no que se mostra. Nela, um cú é apenas um cú (ou um X, na ironia godardiana). Ela não difere nem conjuga, não conhece a metáfora ou a metonímia, porque se ancora no presente absoluto da gozada: finito o gozo, morto o sentido… No cinema, irmanam-se o atual e o possível, os modos do subjuntivo e do present tense; os mortos servem-se do mesmo (último) repasto dos vivos.

Este preâmbulo tenta emular retoricamente o jogo posto em cena na abertura de Câmara Escura, de Marcelo Pedroso: o jogar entre presença e ausência constitutivo desta arte povoada por máscaras e fantasmas. Primeiro, o confronto violento (háptico, por que não?) entre a matéria da câmera e a matéria do muro – um ringue ou estande de tiro, como tantos encenados pelas comédias físicas dos primórdios, pelo L’Arroseur Arrosé (1895) de Lumière, as decapitações fantasmagóricas de Mèliès, pela misantropia “feito carne” do psicopata-dandy Carlitos… o cinema começa como um violento embate do corpo do homem contra o corpo do mundo, esta matéria em nada dúctil, que o cineasta precisa violar – escarafunchar, escavar, atomizar – para “tornar sua”. Cruel demiurgia! Na pintura, basta-nos um cavalete e tintas; tudo é espiritual, tudo “já pertence ao homem”; na escritura, ainda mais: uma cabeça e um lápis, qualquer superfície nos basta… mas o cinema é uma arte na qual o homem precisa recuperar aquela força épica que os poetas celebravam – o pathos necessário aos Enéas e aos Aquiles para reconstruir um mundo, para afrontar-se à Hybris do mundo, e dela – desta matéria infamemente irredutível -, forjar um novo Cosmo…

O contracampo desta arena com o mundo é uma câmara escura – uma ausência, que precede e situa ao combate, que lhe dá origem -, e em off a voz de Pedroso, indagando se… As regras do jogo já estão dadas: se o cinema nasce de um embate demoníaco com o mundo, a História do cinema vai-se desviando (ampliando, redimensionando) este tète a tète monstruoso, e inventando outras formas de convívio e diálogo – vai mediando as suas relações com a matéria, com o fito de torná-la mais e mais maleável ao sentido… de levá-la a exprimir qualquer sentido. Se o cinema clássico, com seu ideal de auto-transparência, ocultou e segregou a “câmara escura” (recalcou-a?), ao fim da História do cinema, o modelo do “retorno do recalcado” freudiano não é desmentido. Ela é solicitada a voltar à cena como um indispensável aliado no jogo (como jogo): o fora de campo se impõe no cinema contemporâneo (sobretudo modernista) com o propósito de que se abra espaço no campo “material, manifesto, frontal e central” do classicismo para outras inflexões, virtualidades (psíquicas, pulsionais, metafísicas), presenças não exatamente visíveis, às vezes francamente fantasmagóricas, fraturadas ou rasuradas: os corpos segmentados de Bresson; as vozes off dos filmes de Duras, os diários prismáticos de Mekas (que atomizam o Eu do diário íntimo, des-cobrindo sob sua superfície hagiográfica tantos outros pronomes e verbos de ligação); os corpos energéticos de Cassavetes, que circulam num território magmático e pulsional, alheio à divisão plano e  seqüência… Resnais é o primeiro a se aventurar formalmente neste caminho arriscado, com seus quebra-cabeças einsteineanos (Marienbad, Muriel, La Guerre est Fini)… Mas em Cassavetes, Rivette, Jean Rouch, Godard, os corpos já não apenas habitam um plano (relação figura e fundo), não mais se constrangem e  “implodem” sob esta cápsula espaço-temporal; eles fraturam e ricocheteiam o plano, e em suas trajetórias de bólidos (Vachel Lindsay: “Cinema é luz e velocidade”) impulsionam o plano para alturas e intensidades insuspeitadas, a sobrevôos energéticos…

Adrian Martin, inspirado em Luc Moullet, esclarece-nos a respeito de uma tendência no cinema contemporâneo – o dispositivo – que tenta sintetizar estes distintos deslocamentos e ramificações do cinema recente, trajetórias que têm em comum a realização de uma impossível (?) simbiose: a restituição da materialidade do cinéma verité e do arcabouço conceitual presente no cinema estruturalista, por exemplo. “Um filme-dispositivo (…) é ao mesmo tempo um conceito (como os conceitos literários de Georges Perec ou de outros membros do Grupo Oulipo, escrevendo uma novela inteira com a limitação específica de não usar determinada letra do alfabeto) e uma máquina. Antes de tudo, é um filme conceitual, (no horizonte da arte conceitual), uma disposição (…) que usualmente anuncia sua estrutura ou sistema de início, na primeira cena, até mesmo em seu título, e então deve seguir o caminho traçado por esta estrutura passo a passo, até um terrível ou auspicioso fim”.

A idéia não é nova: o cadavre exquis (cadáver ilustre) dos surrealistas, em que consistia? Numa estrutura (aleatória, como de regra nos jogos surrealistas), cujas implicações eram seguidas até as bordas limítrofes de sua escritura – sua implosão ou esquizo caleidoscopia… No caso, o grupo de escritores se reunia, um deles começava o capítulo de um livro; outro era encarregado, sem ter lido o capítulo anterior (sabendo apenas do tema e estrutura geral do romance) de prosseguir, e assim de suite. Uma estrutura, sim, mas aberta (transversa) aos devires da experiência, aos esbarrões e associações que cada esquina nos reserva, ao intempestivo e ao casual…

O “dispositivo” de Marcelo Pedroso retoma esta brincadeira dialética – Acaso versus Necessidade, velho bate-bola grego -, este jogo que só adquire seu pleno (e triplo) sentido nas línguas francesa e inglesa, jouer e to play: jogar, interpretar e encenar (um corpo, no caso do ator)… Brincadeira mais atinente ao cinema – ao jogo erótico que o constitui, pelo menos -, impossível. A“tese ou programa” estruturais do filme são enunciadas pela carta, lida pelo policial – e transcrita de um texto deste amniótico-magmático bruxo, tão atento a infra e ultra percepções, Stan Brakhage. Cito de cor: “Recuperar, para além das leis da perspectiva e outras mediações, as aventuras da percepção”. Para empreender este caminho “regressivo”, esta retomada das origens onto-fenomenológicas do cinema, é preciso um ato terrorista (e é este clima de  thriller-complô que o filme sugere, com os protagonistas fugindo no carro tão logo entregam a “bomba”; com o preparo minucioso do pacote). Em que consiste esta violência – ou violação da propriedade privada, da identidade – quem ou o que são aqueles rostos que a câmera aborda em contra plongée violadora? Numa operação de rapto ou, para falar como Lacan, de perversão.

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A definição deleuziana de perversão entrega o(s) jogo(s): “Perversão, ao contrário do que Freud pensava – um desvio da norma – é um desvio dos fins”. Exemplo: se a norma que legitima o ato de transar for a procriação de filhos, transar por amor (transar em nome de outros fins que não a procriação) pode ser considerado uma perversão… O ato terrorista ou perverso aqui é pontual: um grupo de amigos resolve encenar um dispositivo; enfim, um registro das reações inesperadas de pessoas sem nome nem documento – sem idéia de que, sujeitos soberanos como são, podem vir a ser também objetos para outros -, mas um registro regrado e submetido a certas condições significativas, subsumido por uma estrutura ou conceito de. Em aparência, trata-se disto; mas este é o estratagema do perverso: o perverso é aquele coelhinho frágil que, para vencer a sanha do lobo cruel, traveste-se de lobo, e finalmente é admitido, como lobinho, na casa da mamãe lobo… bela noite, tira a máscara e come os lobinhos, bem mais frágeis do que o coelho. É uma ruse mimética – um fazer-se passar por -, que a Natureza conhece bem; e não só: todos os contrabandistas do cinema clássico americano conheciam bem esta sacanagenzinha: Lang, Fuller, Welles, Fleischer…e, claro, o Buñuel mexicano.

Estratégia semelhante aqui: o documentário ou dispositivo na verdade é uma ação terrorista que consiste em seqüestrar a câmera dos poderes constituídos que hoje a subjugam e controlam (a Lei, a Ordem, a paranóia dos condomínios) e restituí-la às funções demiúrgicas e encantatórias que os primórdios do cinema descobriram para ela. Porque o que importa no belo filme de Pedroso não é a Idéia – ou apenas a Idéia -, mas o caminho e o trabalho que a ela conduzem: o franzir das folhas que a câmera, des-coberta da caixa, flagra (quanto tempo dura aquela brisa soprada por Éolo sobre o arvoredo recifence?); o “trabalho” de pintar, cerzir, recortar, lamber, enrolar – em suma, suscitar da matéria (techné) a obra (poiésis), operação grega de posteridade mais do que presente no Ocidente.

Resistir à dureza e à impassibilidade do mundo – e não disse acima que o cineasta é o maior dos neo-demiurgos, porque, ao contrário de outros artistas, tem de lidar e ser lidado pela matéria do mundo, e não apenas com as mediações da subjetividade? Se não disse, repito: o atropelo das fugas do carro; a câmera que vasculha e trepida; o rosto que se desvela, a contra luz e contragosto… o susto, o sopro, o vácuo, a Morte talvez?

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… Assim, é fundamental que a carta seja escrita na máquina de escrever, que tenha a ressonância sonora de presença que nenhuma escrita a mão consegue restituir. É imprescindível que o cineasta exponha o seu corpotão fragilizado, tão exposto quanto os de quaisquer – ao tocar a campainha dos apartamentos; é indispensável que uma presença seja aqui manifesta em sua plenitude artesanal – em sua confecção de espaço, tempo, luz e sombra. O dispositivo é pervertido, diferido: o conceito não tem mais a primazia sobre a matéria; é ela, é seu móbil, dinâmico, magmático, caudaloso sopro que manda A estrutura é orientada, sopesada e finalmente embalsamada pela densa e intransigente massa ebúrnea do mundo, este bicho estranho e renitente ao contato – ele freme e morde, cuidado! Ela permanece lá, porque afinal somos modernos – trop modernes; ou seja: dialetas – mas precedida e coagida pelo júbilos das coisas. E repito, repito: pelo trabalhar e pelo processar, pois as coisas (na vida como no cinema) só se dão no tempo.

Rohmer escreveu algo esclarecedor em seu Gosto da beleza: “O cinema clássico é a arte do movimento, portanto, do espaço. Mas trata-se do espaço dinâmico do movimento; ou seja: é um espaço orientado e precedido pelo tempo, pela diferença”. Esta precedência e presciência do tempo sobre coisas e dispositivos se deixa flagrar (e o visor de uma câmera o que é, senão a fresta do fetichista, ou seja, minha?) no belíssimo plano em que Pedroso, num recanto do muro, parece esperar (hesitar, acumular dynamos e humilitas, indispensáveis ambas ao ofício da contemplação) para dar o “bote certo”, a prise de vue necessária à captação baziniana do instante. Mas não, já estamos tão longe de Bazin… ou nem tanto assim? Um jogo, sempre; cá e lá…

Tirar a câmera do olhar “panóptico” do segurança e do vigilante, retomá-la à criança e ao bicho que um dia foram o artista; devolvê-la à prestidigitação do primeiro olhar, ao olhar de direito… Lembro-me de uma frase que muito me impressionou de Pedro Costa numa conferência dada em Tóquio: ele falava do horror e do mal-estar provocado pelos primeiros filmes; quando se filmava um cachorro andando pela rua, não se sabia se no próximo plano o poodle ia ser atropelado. Um mendigo: o que seria dele no contracampo-viração, que a tudo arrasta consigo – ares, entes, História(s), o próprio tempo? Cada presença era ali e agora– e o revelateur da câmera deveria ser entendido no sentido igualmente místico de uma instância de epifania, de Revelação…sim, como no início: da ausência, emerge uma presença; do Nada, um Ser. O cinema, arte católica: concebe-se e comemora-se uma criação ex-nihilo… Uma presença era fixada pela câmera ali; desabrigada, aberta ao mundo, em sua indeterminação ontológica bruta, seu vir-a-ser. Era o lugar e o tempo desta essência da fascinação que Jean-Louis Schefer nos torna presente, em suas análises mito-poéticas do espectador de cinema: o horror e a delícia de um corpo que se entrega ao outro pela primeira e quiçá ultima vez… Never more! Never more!

O cinema perdeu isso: roteiro, pontos de vista, fotografia, marcações, glamour… mediações e mediações que foram nos separando do ali e do agora. Longo caminho se passou até que o cinema moderno buscasse recuperar este primeiro coup de foudre; foi necessária a deflagração de uma potência háptica do olhar – socos e atropelos, rasantes e sobrevôos – para escavar as camadas deste palimpsesto a que tinham reduzido a visão, para reencontrá-la, intacta, sob os escombros do mundo… o belicismo das vanguardas, os neo e os pós: Out 1 (Jacques Rivette, 1971); Carmelo Bene; Paolo Gioli.

Este magma bruto que os modernos tentaram restituir (no plano-sequência; no trabalho selvagem com o corpo do ator; no faux-raccord) já estava lá e ali. Mas não para nós, que deixamos de ver. Há filmes que recuperam esta intuição, e no-la dão a pensar (e viver) ainda uma vez. O dispositivo é uma solução de compromisso. A princípio, o acesso ao mundo desapareceu com os clássicos; e sobretudo agora, com o digital… a princípio. Este era o luto (o credo?) do “neo-clássico gorado” por Godard em O Desprezo (1963): sou um moderno, não tenho mais como ser-no-mundo; só me resta representá-lo, burilar seus signos… falar do mundo, não mais ser mundo.

Mas a solução de compromisso a que me referi acima reserva-nos boas surpresas- novamente surpresas, “primeiras vezes!”! Não o primeiro olhar, mas talvez um último: os corpos dissolvendo-se na energeia e no lusco-fusco da noite lisérgica, em Grandrieux; o punk apocalíptico de Ossang, collage de collage do que “nos sobrou”: panfleto, quadrinho, fotonovela; Costa e seus museus de cera, collages minimalistas entre a foto (sem aura) e o pictórico (hiperaurático). Estes artistas sabem que o caminho consiste em retomar, transler, transcodificar; enfim: deitar no leito de Procrusto da tradição, e dançar… a origem que Pedroso reivindica aqui é anterior, quase uma vista (d’olhos) pelas pinturas de Lascaux: um buraco negro; imemorial, inominável: uma câmara escura. É dali que viemos, é o que nos espera… somos os filhos natimortos do cinema . Esta é a aposta e a promessa abissais para um cinema que mal começou a nascer.

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