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A imagem interrompida e seu luto

Com um dispositivo bastante simples, Ignacio Agüero encontra a forma fílmica desses dois documentários. Vê-se um set de filmagem de um cineasta chileno. Ouve-se “corta”, desmonta-se o set e prepara-se, pragmaticamente, para a próxima sequência. Booms, câmera, conjuntos de três tabelas, sacos de areia e outros artefatos comuns aos sets; tudo desmonta-se, rearranja-se. Nesse exato instante, Ignacio surge no quadro, chama o diretor e faz uma pergunta bastante direta: “o que é o cinematográfico nesse teu filme?”. As respostas e as sentenças são as mais diversas, assim como os breves trechos dos filmes que vemos. Ao engatilhar a pergunta, busca-se uma história, uma imagem, uma fabulação, algo que dê gana. Com esse simples ato de perturbar a ordem de um set, retira-se a ideia da cena da cabeça do autor; compartilha-se ricas inquietações com quem ouve, vê e observa esses instantes de cinema.

Juntei dois filmes que alinham diferentes cronologias. O primeiro data de 1984 e conduz aos anos finais da ditadura de Pinochet. Sintomaticamente, nesse período, a maior parte dos cineastas chilenos encontram-se exilados, expatriados, e filmando fora do Chile – sendo Raul Ruiz e Patrício Guzmán alguns dos exemplos mais célebres. Agüero, contudo, aborda os cineastas que ali quedaram. Ele, inclusive, sendo mais um desses documentaristas que persistia, combativamente, em filmar diante de um cenário bastante adverso. A despeito da censura, da perseguição, e das notícias dos amigos e cineastas mortos, filmar permanecia como uma atividade urgente. Nas cenas iniciais de Como Me Da La Gana I, vê-se os banners de um filme biográfico sobre Jacqueline Kennedy que está sendo instalado na porta de um cinema, local inalcançável dos cineastas onde nenhuma película chilena seria projetada. É dessa impossibilidade fílmica que Agüero retira a (contida) fúria poética do seu documentário. Numa das sequências mais agoniantes (e reveladoras), ele aborda um documentarista que está em meio a uma manifestação e filma junto a sua pequena equipe. Agüero e seu colega encontram-se numa praça pública, ambos filmando, conversando, quando, subitamente, um grupo de policiais segue em direção aos cineastas e parece que irá abordá-los. O técnico de abaixa o boom, a roda da entrevista afasta-se, e um medo cotidiano diante do terror da ditadura passa, em poucos segundos, a atingir a equipe. No entanto, os policiais apenas andam pela praça e pela equipe, sem abordagem direta. Não há um pontapé, uma cacetada e sequer um baculejo, como assombra o cotidiano dos chilenos da oposição, e como é bem filmado nesse documentário.

O que essa breve e preciosa sequência revela é precisamente como a filmagem seria um gesto de afronta, e realmente perigoso, no complexo cenário interno à ditadura de Pinochet. Naqueles anos, o dispositivo da intervenção no set de Agüero remete à violenta interrupção vivida pela sociedade e pelo cinema chileno. É algo similar à morte do cinegrafista que olha para um policial no primeiro episódio de A Batalha do Chile (1975), de Patrício Guzmán, quando o ato de filmar o golpe de estado que ocorria em praça pública revertia-se num iminente – e constante – perigo de vida. À ditadura que surgia, e aos anos Pinochet que se instalaram, não havia espaço para uma duplicidade e uma reflexão crítica daquele instante. É essa proibição, latente e implícita, de uma imagem própria, que Agüero nos aponta. E se toda a ditadura repudia retratos distintos dos oficias, temos, no seio do cinema chileno algo único: eles filmam justamente o instante imagético e cinematográfico quando essa intervenção surge e ocorre. Temos um sintoma, um forte índice histórico. Com trinta minutos, esse primeiro filme do cineasta chileno detém-se ao registro desse momento e termina como se ele mesmo tivesse sido interrompido pelo fluxo histórico do seu tempo.

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Como Me Da La Gana I (1984), Ignacio Agüero

Em Como Me Da La Gana II, chega-se a 2016 e o mesmo dispositivo lida com um chão histórico sensivelmente distinto. Retrospectivo, o filme conta do forte impacto da censura ditatorial também atingiu obras de intervenção como No Olvidar (1982), do próprio Agüero, que relata o extermínio de camponeses próximos a Santiago. A imagem inicial de Como Me Da La Gana II, aliás, sai daquele filme: acompanha-se uma camponesa rumo ao cemitério que perdeu, nesse extermínio, seu marido e seus quatro filhos, assassinados pela polícia. A campesina passa os anos a procurar os restos mortais, sem saber exatamente onde encontrá-los. Mais do que a interrupção, Agüero passa a flertar com a longa herança dessa perda de heranças possíveis ou sequiosas pela possibilidade de outras heranças, interrompidas, alquebradas, assassinadas. A ditadura, portanto, não deixa de afligir e perseguir a carreira de Agüero. Se parte do segundo filme é um retrospecto da obra dos anos oitenta, o relato em primeira pessoa revela que ele também sofreu censura interna e externa. Por décadas, não conseguiu exibir Como Me Da La Gana, na versão de 1984, e ficou com esse filme guardado, clandestino, como se a negatividade da história fosse uma longa e infinda sombra do cinema chileno. É como se, da violência ditatorial, não escapasse de uma imagem potencialmente ausente, mas, na nervura da sua quase impossibilidade, na negatividade da sua não realização, viesse sua força, sua paradoxal presença. Como se desse hiato emergisse um estranho luto. Hoje, por demais históricas e passadas, as imagens empalideceram a fúria da sua urgência, morreram, tornaram-se meras sombras históricas de um passado bruto.

Primorosa, a montagem intercala um longo intervalo cronológico, que realça essas cicatrizes e as vê como sintomas sensíveis de um passado vivido que ainda não foi narrado, transmitido, e que tampouco encontra-se totalmente apagado. Agüero, no entanto, continua a interromper as filmagens dos seus colegas. Vê-se filmes de Pablo Larraín, de José Luis Torres Leiva, entre tantos outros cineastas chilenos e contemporâneos. Agüero modula a sua pergunta e busca uma aproximação mais formal: aborda certo mistério da linguagem cinematográfica. O cineasta quer sacar a magia do instante fílmico não das falas, em si, mas dos intervalos que as separam e coligam das filmagens. Extremamente formal e dialética, a montagem cria clivagens entre esses filmes do presente imediato, e de forma habilidosa, os intercala com o longo silêncio vivido pela obra de Agüero.

Mostra-se, por exemplo, um trecho da sua passagem por São Petersburgo, cidade com certo veio antissocialista, mesmo durante os tempo soviéticos, e que boicotou a exibição de Cien Niños Esperando un Tren (1988), simplesmente por ser um filme de um cineasta vindo do país de Salvador Allende. Inescapáveis, a censura e o trauma da história chilena voltam a persegui-lo. Ainda assim, Agüero refilma e reinsere uma das melhores sequências dessa obra. Ele acompanha a luta aguerrida de Alicia Vega, uma professora de escola pública, que insiste em realizar uma oficina de educação audiovisual. A oficina, contudo, não consegue recursos e, desde os anos 1970 até a época atual, recebe apenas recusas e negativas. A despeito de tantos senões, a professora Vega realiza um filme sem filmes, apenas com desenhos impressos numa centopeia que simula uma película. Foi uma forma que as próprias crianças encontraram para protestar contra a repressão que, embora novos, testemunhavam.

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A Batalha do Chile (1975), Patrício Guzmán

É essa gana que o filme, nos seus melhores instantes, tão bem retrata. Aos poucos, a sua pergunta sobre o que há de cinematográfico nos filmes dos outros cineastas chilenos flexiona-se para o espectador – e para si mesmo. Vemos as crianças a assistir essas películas. Ouvimos o próprio Agüero a conversar com Sofia, a sua montadora, diante de uma tela preta, a pensar na imagem seguinte, a ruminar a última cena mostrada. Delicadamente, emerge um filme que exalta e explora os contra-campos cinematográficos. O que se espelha são olhos sedentos por mais cinema para superar, nessa gana mágica, a falta, por tantos anos, de uma cinematografia histórica. Emana uma fé no cinema, uma forma de superação do luto de sua ausência, engendrada pelo próprio rito cinematográfico: a montagem, a exibição pública, a conversa sobre filmes. Nesse esplêndido conjunto de contra-campos cinematográficos, o cinema transforma-se numa arte póstuma que sobrevive, transforma-se, a despeito da sua constante finitude. Nesses momentos, Agüero dialogaria frontalmente com obras como Shrin (2008), de Abbas Kiarostami, e Adeus, Dragon Inn (2003), de Tsai Ming-Liang, os quais, ao filmarem espectadores vendo filmes, mostram como entre aqueles olhos, corpos e afetos a força da experiência cinematográfica persiste, permanece, vibra e resguarda-se.

No Chile, contudo, o cinema revela-se como o sintoma de um luto com sua a própria história. Não são apenas cineastas exilados – foi o próprio cinema integralmente de lá apartado, diante do choque da sua impossibilidade de fechar um ciclo de produção e recepção das suas imagens. Nesse contexto, é importante lembrar a obra Chile, la Memória Obstinada (1997), de Patrício Guzmán, na qual o diretor volta ao seu país depois do exílio, depois de finda a ditadura, e exibe pela primeira vez o diário do golpe de estado que ele filmou no épico A Batalha do Chile (1975), e que permaneceu inédito e censurado por anos a fio. O que Guzmán salienta é o contato dos chilenos com esse instante que lhes foi roubado. O que surge são afetos imprevisíveis: olhos cheios de lágrimas, corpos estupefatos – quando a história completa um dos seus ciclos possíveis, a despeito do seu longo intervalo. Se há algo de recalque no contra-campo (e no luto histórico), a dupla temporalidade das imagens possui a potência de desatualizar ou, no seu revés, de atualizar-se negativamente, de desdobrar-se, de trazer o que estava para ser esquecido como formas poéticas resistente, que vibram posteriormente, como se ocorressem pela primeira vez.

A aposta histórica de Guzmán, contudo, é bem distinta da de Agüero. Por demais expositivo, Guzmán prefere a grande história, seu sopro hegeliano. Compacto, conciso, e focado em pequenezas, a história do Chile comprime-se e expande-se em cada frame filmado por Agüero. E ainda assim ele falou apenas de si, dos vizinhos, dos colegas cineastas, da comunidade de uma escola, dos filmes que fez, dos que não fez, dos que faria, dos filmes que outros colegas, amigos, e cidadãos ousaram realizar. Uma força de contraposição diante de regimes ditadoriais e cotidianos opressivos que remete às obras de Elia Suleiman e Jafar Panahi. Em Agüero, a história é genuinamente solidária – e imediata. É uma história dos cidadãos que quedaram na praça, que não fugiram, que não se curvaram ao medo, não desistiram da política e enfrentaram a hostilidade do cotidiano de uma ditadura. No seio da sua pergunta sobre o específico cinematográfico, exala uma contra-mola que resiste; e essa mola vibra num afã cristalino, cinematograficamente, sem sequer trazer para si o epíteto de filme político. Agüero canta o mundo que o rodeia, por ínfimo que seja: é dessa aldeia mínima que ele, ao meio da sua poética sussurrada, decola rumo a outros mundos.


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