Seria meio automático associar imediatamente Sofia Coppola ter apresentado seu novo longa em Cannes ao fato de que, nesse mesmo ano, o Festival exibiu um filme cheio de energia, todo ele encenado em torno de uma personagem feminina jovem (interpretado por uma atriz desconhecida, deixando uma marca fortíssima na tela), que se sente perdida e um tanto desamparada num mundo em que tudo parece tornar mais difícil a sua simples trajetória em passar para aquilo que é considerado como uma “produtiva idade adulta” – trabalho, relações amorosas estáveis, quiçá até a maternidade, se assim for desejado. No entanto esse filme não estava na Competição, como o de Coppola, e sim na mostra paralela Un Certain Regard, sendo dirigido pela estreante francesa Léonor Serraille – parte de uma equipe quase totalmente feminina na sua criação (além da diretora, a fotógrafa, a montadora, a técnica de som, a compositora, a produtora, todas são mulheres).
Assim como em muitos dos filmes de Coppola, a construção da protagonista de Jeune Femme, Paula (Laetitia Dosch), que é sem dúvida toda a razão de ser do filme, se dá muito mais pelo jogo físico e de personalidade da sua atriz do que através da sua disposição na trama ou alguma exposição sobre seu passado ou sobre sua herança prévia. Da mesma forma, essa sensação constante de que o filme todo está conectado à próxima ação que ela resolver tomar, num sentimento firme de que essa ação será vivida com toda energia e força do seu ser. É impressionante uma espécie de autêntica “desfaçatez” (no melhor sentido do termo) com a qual Paula segue sempre em frente, não importando o quanto precise bater com a cabeça na parede – literalmente, inclusive –, se reinventando quase que a cada conversa ou encontro, pronta para tudo até conseguir achar um caminho onde consiga finalmente se sentir mais confortável.
Desde o princípio, somos apresentados a Paula como uma força agressiva (em gestos e em palavras), como alguém que não está mais disposta a não reagir para conseguir impor sua presença no mundo. Nesse sentido, é fascinante acompanhar como a diretora e a atriz principal conseguem transformar essa agressão (que afeta inclusive o espectador) num sentimento de engajamento e entendimento da sua busca. Claro que uma lembrança imediata é Gena Rowlands, e sua “mulher sob a influência” – ainda que aqui a personagem esteja em outro momento da vida, ainda longe de ser uma mãe de família. A capacidade da atriz principal de parecer numa cena uma femme fatale e na seguinte uma criança desprotegida é um atributo essencial na criação desse sentimento de proximidade e entendimento que o espectador tem enquanto sua personagem segue a sua linha reta, sem parar para refletir nem por um segundo, resolvendo os problemas na medida em que aparecem (“agora é agora”, diz ela num certo momento). É uma mistura fascinante de ingenuidade e coragem absoluta que nos cativam, e que torna um prazer tão vivo passar uma hora e meia em companhia de Paula, partilhando com ela da dificuldade que é estar no mundo e conseguir se impor – ou, minimamente, descobrir o que se quer buscar e o que se quer deixar para trás.
Em mais de um sentido, é bastante fácil imaginar que, para Serraille, filmes como As Virgens Suicidas (1999), Encontros e Desencontros (2003), Maria Antonieta (2006) e Um Lugar Qualquer (2010) sejam referências fundamentais, ainda que seu estilo formal se diferencie um tanto do de Sofia Coppola. Até por isso, há uma grande ironia que esse filme tenha sido exibido no mesmo ano em que o novo filme de Sofia Coppola passa uma impressão exatamente contrária no que tange à sua capacidade de nos engajar com suas personagens. Nessa sua versão para The Beguiled (adaptação de um livro – mas acima de tudo, no imaginário cinematográfico, revisita ao universo do filme dirigido por Don Siegel, com Clint Eastwood e Geraldine Page, em 1971), o que mais chama a atenção é justamente a forma distante com que o filme se coloca frente ao que filma.
Que fique claro que essa distância não é apenas, nem principalmente, uma questão de forma, embora haja sim uma postura bem diferente da câmera aqui em relação à maior parte dos filmes anteriores da diretora (e até porque mudanças e explorações novas são muito bem vindas). O que sobressai no impedimento dessa proximidade do espectador com as personagens do filme é mesmo a maneira como elas são apresentadas, construídas e desenvolvidas. No relativamente pequeno grupo de personagens femininas, por exemplo (temos a professora interpretada por Nicole Kidman e cinco de suas alunas, de diferentes idades), as personalidades diferentes são estabelecidas por características bastante simplórias. Desde a primeira vez que as vemos, o jogo feito com as atrizes nunca permite que cheguemos a conhecer de verdade nenhuma delas para além dessa primeira leitura. Se sempre houve um espaço muito poderoso nos filmes de Coppola para o não-dito e para o subentendido, em The Beguiled a trama parece transitar exatamente pelas bordas disso: por um lado, tudo está muito claro no jogo que se estabelece entre o forasteiro e as mulheres que o acolhem; e, por outro, as motivações individuais das ações das personagens passam ao largo, não porque não sejam verossímeis, mas porque não temos o sentimento de estarmos ao lado de nenhuma delas.
A impressão que temos é que Coppola assistiu o filme anterior (admitidamente, essa foi a maneira como tomou contato com o material) e sentiu que havia ali um substrato que podia oferecer muito ao seu cinema e vice-versa. Realmente, na teoria seria um encontro bastante frutífero. No entanto, no momento de passar para a realização, de fato, ela não parece ter achado a maneira de tornar esse material totalmente seu. Isso parece ter a ver, por um lado, com um certo peso de contexto externo aos personagens (a Guerra Civil cujo ruído das bombas cerca a personagem), que talvez seja mais próximo a ela, por exemplo, do que aquele da iminência da Revolução Francesa (que em nada a impediu de tornar completamente sua a personagem de Maria Antonieta – no limite do desrespeito histórico, com toda a liberdade que isso trouxe). Por outro, e talvez mais decisivamente, parece que Coppola se preocupa aqui de maneira sistemática em “narrar sua história”, aquele tipo de coisa que o cinema clássico americano (origem de alguém como Siegel) sempre deu como garantido, e que muitas vezes cineastas contemporâneos, especialmente na verdade “de autor”, têm dificuldade de naturalizar na sua prática. Seja como for, The Beguiled é um filme que chega na tela sem energia, sem urgência, sem empatia – tudo aquilo que não imaginávamos possível num filme de Sofia Coppola.
Eduardo Valente é cineasta, crítico e curador de cinema, formado em cinema pela UFF, com mestrado na USP. Dirigiu três curtas e um longa-metragem, todos exibidos em distintas mostras do Festival de Cannes, entre outros. Foi editor das revistas de crítica Contracampo (1998-2005) e Cinética (2006-2011). Fundador da Semana dos Realizadores (2009), fez curadoria para vários festivais do Brasil. Entre 2011 e 2016 trabalhou como Assessor Internacional da ANCINE. Atualmente é curador do Festival de Brasília e delegado para o Brasil do Festival de Berlim.
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