El Viento Sabe que Vuelvo a Casa, de José Luis Torres Leiva (Chile, 2016)
setembro 1, 2016 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Pablo Gonçalo
* Cobertura do 5o Olhar de Cinema
Manchas e desmanches de uma ilha remota
por Pablo Gonçalo
“Homem não há
com poder sobre o vento
para frear o vento”.
Eclesiastes
Interna, dia. Estamos num carro. Espera-se numa fila que conduzirá a um ferry boat. De lá, segue-se rumo a um pequeno arquipélago do sul do Chile para abarcar na ilha de Meulin. O andar da fileira é lento, lentíssimo, e vê-se apenas as imagens do retrovisor, do motorista, que calha de ser Ignácio Agüero, diretor de cinema, e, à frente, ele, o mar, sem cabelos para se agarrar. Meio ao acaso, meio previsível, uma garota passa ao lado do carro de Ignácio. Ele oferece-lhe uma carona. Ela entra. Eles conversam. O filme, por assim dizer, começa. Ou já havia começado. Ou ainda estaria por começar. Quem saberia?
As cenas iniciais da obra de José Luis Torres Leiva são realmente sintomáticas dos paradoxos e do dispositivo que ele pretende disparar. De forma arguta, Ignácio Agüero aparece como um duplo. Um diretor que é personagem e um personagem que é diretor. Esta figura do duplo não é, em si, novidade alguma; pelo contrário, já são constantemente presentes na ampla seara do filme-ensaio que, de forma evidente, tenta coligar uma extensão entre o narrador e o personagem. Vinculam-se, ambos, seja pela voz ou pela atuação, mas compartilham de uma mesma rede de afetos. O fato mais interessante do duplo no caso de El Viento Sabe que Vuelvo a Casa é que a narração salienta, sutilmente, mais as discordâncias do que as convergências entre o diretor-personagem e o diretor oculto, ausente ao quadro, mas títere completo da obra. A cada ato, a cada busca do diretor pelo seu documentário improvável, a câmera parece desautorizá-lo, atua para desmanchá-lo, e são entre esses ruídos, entre essas minúsculas cacofonias, que alguns instantes potentes revelam-se.
Trata-se, assim, de um duplo intervalar, cheio de contradições, de um filme que se mostra diante daquilo que o diretor Ignácio recusa-se a ver, a olhar ou mesmo a observar. São nesses instantes de veemente recusa que o filme ocorre. Ou melhor, que ele, sorrateiro, afirma-se. Uma boa pista dessa arquitetura está na sinopse do filme, que é difundida pelo catálogo. Afirma-se ali que um diretor busca pelos paradeiros de uma história entre Juan e Maria, que, em 1981, desaparecem sem deixar vestígios e nenhuma explicação. Durante as últimas três décadas ninguém ouvir falar deles e nem mesmo a mãe de Juan, na mais impregnante entrevista do filme, saberia do paradeiro do filho. Ela ainda espera e aguarda um regresso. Explora-se, assim, uma história tão trágica quanto misteriosa. Mas que, curiosamente, exibe tênues fios de interesse por parte dos habitantes Meulin. Na maioria das vezes que Ignácio pergunta sobre a história, esse plot tão frágil quanto fascinante, os moradores dizem desconhecer. Lacônicos, eles afirmam que nunca ouviram semelhante narrativa. Até onde essa história seria um mero delírio do diretor? Não haveria um enforcement ficcional ao dia a dia da ilha? É essa potente desconfiança frente à própria história disparada que o irônico intervalo do duplo acaba por suscitar. É nesse hiato que encontramos a principal força do filme de José Luis Torres Leiva.
Por isso, inclusive, surgem tantos castings. Mais do que inserir o espectador no processo fabril de busca pelo arranjo sensório do filme por vir, os castings compartilham preciosos instantes, cheios de espaços confusos para a projeção do espectador. A câmera instala-se numa sala de aula, dentro de uma pequena escola da ilha, onde os alunos, vestindo uniformes com gravatas, são convidados para fazer declarações frente ao filme que ocorrerá. No entanto, surgem segundos um tanto estranhos. Ignácio pergunta sobre a história que investiga. Novamente, emerge o hiato, o intervalo. Vemos dúvidas, hesitações, longos silêncios, delicadas negações por parte dos personagens diante da engrenagem ficcional que Ignácio esforça-se para tornar coerente e verídica.
Todo o arranjo do filme, por meio da péssima dinâmica de entrevista do diretor, que é assim deliberadamente mostrada, visa criar manchas, instantes torpes no discurso da clássica encenação documental. Isso ocorre, por exemplo, quando Ignácio constata que havia um tácito tabu do casamento entre os cholos e os mestiços, com traços mais europeus. Esse tabu, contudo, não aparece de forma tensa nas entrevistas. Ao contrário, os personagens criam suas artimanhas com certa tranquilidade. Casam-se. Fogem. Riem dessa regra. Talvez esse tabu surja mais coerente nos conceitos do diretor do que no cotidiano dos habitantes de Meulin.
Em meio a esse dispositivo, acompanha-se uma pletora de filmes simultâneos que, de forma especulativa, vibram num complexo contraponto. Há o filme possível, que faz parte da pesquisa de Ignácio. Há o filme fugidio, que está no quadro, mas não cabe na arquitetura narrativa. Há o filme-frustração, que não ocorre, marca do renitente fracasso do diretor. Esse fracasso do ensaio, ou mesmo o ensaio desse fracasso, já foi, por exemplo, habilmente sedimentado por Eduardo Coutinho em Moscou (2009). No entanto, José Luis Torres Leiva está mais próximo de Jogo de cena (2007). Traça, contudo, um vetor distinto: ao invés de retratar verdadeiras mentiras, o diretor chileno filma falsos anseios de veracidade. Falsos, claro, no sentido ficcional. Assim, na corda bamba, ele equilibra-se, no jogo entre seus duplos, entre um mentiroso verdadeiro e um falso mentiroso.
El Viento Sabe que Vuelvo a Casa, portanto, não nos mostra a “mosca na parede”, mas, de forma inusitada, foca em certas manchas “filmocêntricas” que não desgrudam da lente da câmera. Por isso, o vento como uma força de desmanche que preenche a paisagem, um vetor de anulação, caótico. Ao, simultaneamente, manchar e desmanchar a figura que realiza a mediação das entrevistas, o filme convida a uma dispersão e a um salutar descontrole. Esses são os pequenos e mais vibrantes momentos do filme que vão, inclusive, contra seu próprio título. Afinal, não seria o vento aquilo que realmente não se freia? O que, de fato, saberia o vento? Talvez meros murmúrios que não cabem no instante de nenhuma fala. O vento, por supuesto, nada revela.
+ CINÉTICA