Niilismo em construção: dois filmes de Leo Pyrata

outubro 3, 2013 em Cinema brasileiro, Em Pauta, Fábio Andrade

por Fábio Andrade

Cuauhtémoc (english subs) from leo pyrata on Vimeo.

Cuauhtémoc (2012), de Leo Pyrata, começa com uma coleção de imagens aparentemente aleatórias, captadas em baixíssima definição (câmera de celular ou webcam?) e com um framerate tão baixo que quase não parecem imagens em movimento (parecem fotos animadas… mas o cinema não é exatamente isso?). Na banda sonora, captada também com alto rigor de infidelidade sonora (as legendas em inglês, também infiéis, fazem-se necessárias), escutamos o que parece ser uma roda de amigos, ou uma conversa de bar. Falam em um novo ideal de precariedade no cinema, contraposto àquele de Rogério Sganzerla: a questão agora é tomar as armas do inimigo e, com um milésimo dos recursos financeiros, chegar a resultados parecidos. “A gente vai fazer um filme agora que é para parecer filmão. Cinema de Hollywood. Cinemascope do Judd Apatow”.

As imagens que vemos, porém, em nada remetem ao Cinemascope do Judd Apatow. A câmera muito treme e pouco mostra, adotando protocolos flutuantes que passam a impressão de imagens auto-geradas, auto-produzidas, sem finalidade ou vontade de autoria. Enquanto a banda sonora fala sobre fresnéis e orçamentos da Quanta, o tiquetaque dos dedos em um teclado ou mouse de computador modula as imagens: um prédio muda de cor; imagens oscilam entre a fixidez e o movimento, tornando imprecisa a instância de registro do próprio filme; rostos se transformam em manchas solares. “Se eu for fazer um filme igual o Sem Essa Aranha, eu tô mentindo”, diz a voz dominante da conversa. Um “movimento de câmera” (é possível falar em movimento e em câmera em Cuauhtémoc?) fecha, de maneira aparentemente aleatória, em um rodapé roxo de um estabelecimento qualquer, transformando um canto de parede (ou será uma porta?) em uma composição quase abstrata. Mas tudo dura pouco, frações de segundo. É possível falar em composição em Cuauhtémoc?

“O meu vizinho filma com uma Cybershot um filme 30.000 vezes melhor do que o meu, que estudei cinema. Sabe por que? Porque ele é um escroto com uma câmera. Ele é um boçal de doze anos que filma qualquer porra, e ele só tem a porra do pau duro dele pra fazer um filme. (…) Peguei vivência. Vivência é quase AIDS. Pegou, morreu”.

Vivência é quase AIDS. Pegou, morreu. Mas como despistar os atalhos da vivência? Ou, melhor, como extrair, então, a potência dessa morte?

Nesta primeira parte, Cuauhtémoc pode aparentar um filme aleatório, um atestado voluntário de anti-vivência, um manifesto de art brut, mas não a art brut dos criadores voluntários, e sim a dos que a conceituaram como tal. “Macaco com câmera”, diz uma das vozes – e, embora não fique explícito dentro do filme, quem reconhece ali a voz de Leo Pyrata como esse interlocutor, e não como o “protagonista” falador (é possível falar em protagonismo em Cuauhtémoc?), pode engolir mais esta pista falsa em um filme todo feito de pistas falsas – e nenhuma delas é mais falsa do que a que indica que há pistas, e de que essas pistas são falsas. Até que o fluxo de pensamento disparado pela aparente aleatoriedade buscada por aquela conjugação de imagens e sons é interrompido bruscamente, e algo maravilhoso acontece: o filme que vemos (mas não o que ouvimos, a princípio) é invadido por uma tela preta.

A tela preta tem sentido mais do que determinado no cinema – devidamente repisado e desgastado pelo cinema contemporâneo – e um sentido que cairia bem ao aparente niilismo de Cuauhtémoc: espécie de tábula rasa, de marco zero que transforma a narrativa em círculo, que reconecta o fim ao princípio… ao mesmo tempo, o pré-fílmico e o pós-fílmico – ou seja: tudo, menos o filme. Mas há uma diferença na tela preta de Cuauhtémoc: ela é polvilhada por píxels brancos, que brilham e fervilham feito estrelas, como se algo estivesse em movimento dentro desse “nada”, esperando para tomar forma ou para ser moldado pelo toque do Gênio (Generare; gerar). Volta-se à matéria primordial do cinema para, de dentro, construí-la novamente; a linguagem cinematográfica – a convenção nascida da repetição, diria Luc Moullet – é implodida, mas o regozijo não vem com os destroços, e sim com a possibilidade de começar de novo, de corrigir os rumos, de estabelecer novas bases para novos tempos. O niilismo como estágio de um traçado circular, não como fim de uma reta teleológica. Talvez a melhor maneira de se assistir a Cuauhtémoc seja voltando ao começo quando se chega ao final.

Após a tela negra, as vozes são soterradas pelos violinos de uma peça extraordinária chamada “Tango Batuque”, composição do brasileiro Luciano Gallet que comenta essa implosão e esse recomeço com uma “brasilidade” que não faz esforço algum para se mostrar como tal. A tela negra é invadida por uma explosão de luzes e cores que vemos o cursor do mouse desenhar na tela do filme. Brakhage, Fantasia ou Paintbrush? Tanto faz, e aí está a verdadeira política do gesto artístico de Leo Pyrata: restaurar a beleza por vias insuspeitas, tecendo um complexo ensaio cinematográfico pela desconexão primeira dos fios da cultura (baixa ou alta, tanto faz).

Não é, portanto, negar a vivência – da conversa que abre ao filme aos ecos de Brakhage e Godard, passando pela drone music e a relação forçada com a saturação do thrash metal da abertura com a leveza das cordas de Gallet, fica muito claro que há uma elaboração extremamente complexa sendo feita – mas justamente aproveitar as potências dessa morte, desse suicídio que implica em um renascimento. Dessa fricção entre uma pós-linguagem e uma pré-linguagem, Pyrata constrói pequenos feitos artísticos sem muitos paralelos no cinema brasileiro contemporâneo. Quantos filmes brasileiros recentes são, ao mesmo tempo, tão feios e belos quanto Cuauhtémoc? Do choque voluntário de uma nova feiúra com uma beleza ancestral (ou de uma nova beleza com um feiúra ancestral), erige-se o novo, de novo. Diz a sinopse do curta que Cuahtémoc foi o último imperador Azteca, marcado na história pela obstinação com que tentou (e fracassou) resistir aos esforços da invasão hispânica. Em Cuauhtémoc, a implosão e a reconfiguração da língua é um ato de resistência.

Élégie à Rimbaud from leo pyrata on Vimeo.

De certa forma, esse mesmo sentimento já aparecia em Élégie à Rimbaud, de 2010, e se torna ainda mais forte quando os filmes são vistos em conjunto. O filme começa como um aparente registro feito por Pyrata de Rimbaud, seu cachorro, no quintal de uma casa. Pyrata registra tudo com uma câmera imprecisa, bastante tremida, enquanto fala sobre o cachorro em voz off simultânea. O cachorro – com cara de vira-latas, olhos tristes e andar claramente debilitado – por vezes se aproxima, por outras se afasta da câmera. “O nome dele é Rimbaud. Não sei se eu fiz bem de batizar ele assim. Ultimamente ele tá sofrendo, né?”. Rimbaud não está morto; Rimbaud está morrendo.

A câmera segue Rimbaud pelo quintal. “Cadê a bolinha?”. As tentativas de aproximação, por mais carinhosa que seja a motivação, parecem violentar a intimidade do cachorro. Todos sabem que os cães se escondem para morrer sozinhos. Pyrata pega uma pinha – o brinquedo favorito do cachorro, ele diz – e Rimbaud imediatamente muda de comportamento. O cão, até aquele momento tão cabisbaixo, ergue as orelhas, salta, tenta abocanhar a câmera. Rimbaud está morrendo, mas Rimbaud está vivo.

O registro segue, na caminhada desinteressada pelo quintal. Até que… Novamente, como em Cuauhtémoc, a banalidade cotidiana é invadida, com a força da intervenção do artista, pelo Maravilhamento, pela epifania que irrompe na indiferença de uma tarde de sol: Rimbaud late e, de seus latidos, surge um poema: “Elle est retrovée. Quoi? – L’Eternité. C’est la mer allée. Avec le soleil”. O Extraordinário, no cinema de Leo Pyrata, surge justamente do que é mais banal, e é por esse jogo de equivalências que surpreende o automatismo cotidiano que algo de novo, de inaugural (mesmo que seja de retorno), se manifesta: Rimbaud, o gênio que promoveu o encontro da juventude física humana com a sabedoria plena da maturidade na idade canina (aos quinze anos de idade ele já era um poeta maduro e reconhecido), se transforma, em fato consumado como um milagre de Dreyer, em um cão.

O poema que Rimbaud late, ladra, uiva para os céus é a manifestação dessa nova linguagem, desse deslocamento de esferas que permite novos sentidos. Não estamos muito distantes do cinema de Apichatpong Weerasethakul, com a diferença de que a beleza aqui já aparece desvencilhada de qualquer pressuposto plástico ou estético… seria, o latido de Rimbaud, a manifestação “pura” da Beleza em si?

Essa representação se dá justamente no gesto que violenta a linguagem: Rimbaud não só late um poema – e como é bela essa imagem de poemas latidos! – mas sua história de vida é também narrada pelas legendas infiéis, sempre infiéis, que acompanham a fala em francês na parte final do filme e contam, sem distinção, de rottweillers, vira-latas, cantos e delírios apócrifos. Ao divorciar significado e significante, novas combinações são feitas possíveis e, a partir dessas combinações, desses casamentos entre erros tão errados quanto os que renderam cicatrizes a Rimbaud (o cão, mas provavelmente também o poeta, como todos os poetas), uma nova língua – entre o cão e o homem; entre a naturalidade prosáica e a construção deliberada; entre o fim e o princípio, o In Memoriam e as boas vindas do nascimento – se presentifica. Neste grande filme curto, Rimbauds pemanecem vivos.

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