Entrevista com Nicole Brenez

fevereiro 10, 2014 em Em Campo, Entrevistas, Raul Arthuso, Victor Guimarães

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Cada filme é um laboratório” – Entrevista com Nicole Brenez
por Raul Arthuso e Victor Guimarães

Pelo menos desde 1997, quando as cartas que posteriormente comporiam o primeiro capítulo de Movie Mutations (livro editado por Jonathan Rosenbaum e Adrian Martin e publicado pelo BFI em 2003) apareceram na importante revista francesa Trafic, Nicole Brenez tem sido reconhecida como uma das vozes mais influentes da cinefilia contemporânea. Na carta de Brenez (que formava parte de um grupo de cinéfilos “filhos dos anos 1960”, que incluía também Martin, Kent Jones e Alexander Horwath), já era possível delinear alguns traços de sua marcante personalidade crítica: a rejeição aos grandes postulados teóricos que vem acompanhada de um “empirismo dos princípios”, cristalizada na afirmação de que devemos “colocar sempre confiança no filme, assumindo sempre que um filme pode pensar tão bem quanto um texto teórico”; a vocação arqueológica que se manifesta em uma busca incessante de filmes condenados à lata de lixo da historiografia tradicional, que faz de seu trabalho como historiadora um dos mais notáveis de nosso tempo; o gosto inveterado pelo bombardeio (ou pelo alargamento) dos cânones usuais (tanto em termos de filmes quanto de ferramentas analíticas), que faz tanto de suas listas de final de ano como de suas propostas de abordagem crítica (como no texto que publicamos nesta edição) um manancial sempre vibrante de descobertas.

Mas se em 1997 – um ano antes da publicação de seu obrigatório De la figure en general et du corps en particulier (Ed. De Boeck, 1998), infelizmente ainda não traduzido para o português – Nicole Brenez era uma sorte de enfant terrible da cinefilia mundial, hoje sua voz soa forte e imponente (e, na mesma medida, sempre curiosa e em constante movimento), como foi possível presenciar durante o 15º Festival Internacional de Curtas de Belo Horizonte, evento que nos permitiu a realização desta entrevista e a cujos responsáveis agradecemos imensamente, na figura da coordenadora de programação Ana Siqueira. Plenamente consciente de seus lugares de responsabilidade – seja como professora da Universidade Paris 3 (Sorbonne Nouvelle), como programadora das sessões de vanguarda da Cinemateca Francesa, como um dos nomes mais requisitados por revistas como La Furia Umana e Lumière ou como curadora convidada de mostras em instituições tão diversas quanto os Anthology Film Archives, a Tate Modern, o Filmmuseum de Viena e a Cinemateca Portuguesa –, Nicole sabe que a história do cinema está sempre a ser reescrita (e reconhece sua capacidade de influenciar esse processo), ao mesmo tempo em que é absolutamente sincera em sua empolgação diante de um novo filme (como o curta Aquele Cara, de Dellani Lima, visto em Belo Horizonte).

Nicole Brenez é uma historiadora incansável em sua fascinante heterodoxia, uma curadora brilhante (como demonstra seu programa “Uma história livre do cinema”, exibido no FestCurtas BH), uma teórica com um pensamento em estado de permanente ebulição. Ao mesmo tempo, é alguém de extrema generosidade (capaz de conversar animadamente conosco durante mais de duas horas em um domingo de manhã, após ter oferecido dois cursos durante o festival, ou de responder e-mails com uma inacreditável agilidade, mesmo envolta em tantas tarefas) e de uma sinceridade contagiante (o testemunho de sua emoção diante da simples menção de They Live ou Battle Royale é uma das lembranças mais duradouras da entrevista). Aos visitantes da Cinética, desejamos que a experiência da leitura seja tão fascinante quanto foi nosso encontro com Nicole. 

Cinética – Ainda na introdução de seu livro De la figure en general et du corps en particulier (Ed. De Boeck, 1998), você traz uma citação de Deleuze que diz: “experimente, não interprete jamais” (experimentez, n’interprétez jamais). E você a toma como uma “fórmula irrevogável” (une formule irrévocable). Você mantém essa atitude diante dos filmes? Em termos mais gerais, o que poderia nos dizer a respeito de seu pensamento sobre a abordagem crítica de um filme hoje?

Nicole Brenez – Sim, a fórmula de Deleuze foi algo como um motto, para dizer que nós devemos sempre inventar maneiras de experimentar e analisar um filme. Eu tentei elaborar uma metodologia que viesse dos filmes, mas desde que De la figure… foi publicado, em 1998, eu acho que há uma porção fabulosa do próprio cinema que foi – cada vez mais – se devotando à análise fílmica. Claro que isso sempre existiu: em 1923, Marcel L’Herbier, Jean Epstein e outros fizeram conferências sobre cinema, e L’Herbier fez uma montagem entre as seqüências de seus próprios filmes, constituindo uma análise sobre montagem e espaço. É uma história muito longa, mas hoje os estudos no cinema, pelo cinema, para o cinema, estão definitivamente florescendo. Eu acho que alguém que não quer estudar cinema em uma universidade pode apenas se dedicar a ver o que está acontecendo no cinema experimental. Para mim, a bíblia visual desse campo é, claro, Tom, Tom the Piper’s Son (1969), de Ken Jacobs, mas desde então o próprio Ken fez um monte de obras-primas, Harun Farocki fez alguns de seus mais belos ensaios – Imagens do Mundo e Inscrições da Guerra (1988), Intervalo (2007) – e assim por diante. Poderíamos escrever um livro só sobre esse campo de atividades cinematográficas. Deste ponto de vista, eu diria que as iniciativas reais tomadas por esses autores e filmes não foram sintetizados até agora. Até mesmo as principais tendências, propostas, idéias levantadas por esse corpus não foram realmente compendiadas. Há um enorme trabalho à nossa frente.

Tom, Tom the Piper's Son, Ken Jacobs

Tom, Tom the Piper’s Son (1969), Ken Jacobs

Quando trouxe essa citação, você estava reagindo a alguma abordagem analítica que não aprovava? Qual era a sua motivação para pensar em formas experimentais de analisar filmes?

Sim , claro. Em primeiro lugar, há as disciplinas que usam o cinema apenas como um material, como a História, a Sociologia. Há maneiras muito superficiais de levar os filmes em consideração nesses campos. Normalmente, as análises só vêem a superfície, ou as “histórias”. A maioria delas está pensando em filmes como sintomas , mas nunca chegam à doença, se posso dizer isso. Essa abordagem é muito interessante, mas não é específica e não é profunda o suficiente. Há também as metodologias que estão a trabalhar nos próprios estudos de cinema: semiologia, psicanálise, narratologia, etc. Para mim, todos estes métodos são interessantes e válidos, mas de alguma forma eles também não chegam ao coração daquilo que é um filme. Qualquer tentativa de ir ao cerne de um filme – à sua proposta visual e acústica – é importante e necessária, mas é muito, muito rara. No campo metodológico específico da análise fílmica – não estou falando de teoria ou de história –, eu não vejo muitos bons trabalhos. Na França, ao menos. Talvez existam muitas coisas no exterior. Na França, agora, a parte mais interessante e viva dos estudos de cinema está dedicada às concepções do cinema, a uma história das idéias sobre cinema. Os filmes estão muito longe – são os textos que estão em jogo –, mas isso é muito, muito interessante.

Um tema muito comum no Brasil diz respeito ao caráter do crítico. Harold Bloom, em alguns de seus escritos, fala sobre uma tendência dos estudos culturais de “invadirem” o crítico, e ele desaprova essa postura. Como você pensa essa tendência nos estudos de cinema? Como pensar essas outras disciplinas que se aproximam dos filmes? E você considera possível ou válido praticar uma crítica puramente formalista, como nos Cahiers amarelos?

Uma coisa que é muito apaixonante no cinema é que qualquer discurso é legítimo. Porque é uma arte acessível, porque ele é feito para ser popular… Eu sempre me lembrarei que um dos mais belos discursos que já ouvi sobre o cinema foi feito por um cozinheiro grego em Aix-en-Provence. Ele notou que eu estava lendo um livro sobre cinema em seu restaurante e começou a falar comigo, e eu fiquei extasiada. Era entusiasmante, preciso. Aquele foi um momento formador para mim. Qualquer um pode dizer algo verdadeiro, interessante, esclarecedor sobre cinema. O cinema é tão rico, tão generoso, e isso é incrível. Então… Por que não usar ginástica para estudar cinema? Ciência? Nós nunca lemos os discursos técnicos sobre cinema, por exemplo, mas eles são muito ricos e precisos.

Mas, provavelmente, o problema mais específico que me toca atualmente é sobre a análise formal. Eu não tenho certeza de que os Cahiers amarelos eram estritamente formalistas. Eles eram mais generalistas e também moralistas (no bom sentido, de Merleau-Ponty ou Bazin). O trabalho que eles fizeram a respeito de como ver e como explicar os valores que estão trabalhando em um filme foi absolutamente crucial. Mas formalista, no verdadeiro sentido desse adjetivo – o termo russo, como em Chklovski ou Balász –, está agora, de certa forma, integrado na introdução dos estudos cinematográficos: é quando você aprende a estudar parâmetro por parâmetro, componente por componente. Mas isso é como um médico que aprende anatomia, mas não aprende a trazer um corpo novamente à vida. Quando você faz apenas isso, quando você é formalista no sentido didático do termo – não no sentido inventivo do formalismo na década de 1920, é claro – você está apenas dissecando. Você está apenas transformando o filme em um cadáver. Mas o que é interessante perguntar é: como um filme respira? Como é que ele está vivo? Para mim, temos sempre que inventar uma análise ad hoc para cada filme. Se levamos a sério a análise formalista, cada filme ou cada corpus de trabalho requer uma análise singular. Isso foi sempre uma intuição, mas, progressivamente, descobri que a mais bela realização de tal princípio está em – bem, sempre ele, mas… – Walter Benjamin. Quando ele analisa , por exemplo, a obra de Baudelaire, tudo é invenção. Ele toma um texto e, em seguida, submete-o a múltiplas perguntas – filosóficas, sociológicas, iconográficas etc. Não é que você pode ler Benjamin e, em seguida, aplicá-lo, é claro que não, mas eu diria que esse é um modelo estrutural. Você não pode reproduzi-lo, mas pode reproduzir o princípio: cada filme é um laboratório, se você quiser ser fiel a ele. Você não é obrigado a isso. Você pode lançar um olhar superficial, há muitas coisas para fazer. Mas a maneira mais bonita de ser formalista é ser benjaminiana.

Para mim, o próximo passo na minha maneira de pensar sobre metodologia e análise fílmica seria tentar propor algo um pouco sistemático sobre como analisar os pressupostos de um filme (les présupposés). Como um filme postula o que é uma coisa? Não só a forma como trata, por exemplo, um animal, ou uma mulher, ou um jardim, ou qualquer motivo, mas o que postula? Não é o que está no filme, mas o que um filme tem que pensar para existir? Eu não tenho certeza se estou sendo clara, mas o pressuposto é o que você está pensando, levando em conta antes de fazer alguma coisa. De alguma maneira, é o lugar da ideologia. Tudo o que não se está dizendo explicitamente, mas o que se pensa, o que se acredita, antes de considerar um fenômeno. Cada filme, seja radical ou, é claro, ideológico, tem seus pressupostos: as coisas que ele não diz, mas que estão trabalhadas no filme. Por exemplo: o que um filme pressupõe para representar uma mulher? Mas também uma guerra. O que você pressupõe sobre o que é uma guerra para representar uma guerra? Esse é um enorme campo de pensamento. E é exatamente aí onde se baseia toda a evidência, toda a obviedade, e não existe qualquer obviedade no mundo. Tudo é uma construção. Mas esse tipo de análise é algo que você não pode fazer se não tiver feito antes uma profunda e verdadeira análise formal e estrutural do que está realmente no filme e do que o filme trata. Só uma análise profunda pode decidir isso.

Em uma de suas cartas publicadas em Movie Mutations, você elabora algumas reflexões sobre métodos comparativos. A certa altura, você diz que “a melhor ferramenta para analisar um filme é outro filme”. Como você faz isso na prática? Como encontra o ponto de comparação entre os filmes?

É muito empírico. Como especialistas neste campo, temos todos os pontos de referência. Sabemos a história oficial. É como ter o mapa, mas não o país. Quando você está trabalhando com um grupo preciso de filmes, sabe imediatamente o contexto histórico, o contexto cinematográfico, o contexto político, mas quando faz uma comparação, o que é realmente eloqüente e significativo são as diferenças entre as imagens. Pode-se fazer comparações entre filmes da mesma época, do mesmo autor, mas o que é mais importante para mim é quando se faz uma comparação entre os valores ou o tratamento dos motivos – a figuração – inventados por um filme, e que poderiam se dar em tempos, nações, contextos culturais muito diferentes. E, como na montagem godardiana, quanto mais distantes parecem ser os filmes a serem comparados, mais esclarecedora pode ser a comparação. É possível tentar fazer experimentos para comparar filmes que, em um primeiro olhar, não têm absolutamente nenhuma relação. Em um pequeno livro chamado Traitement du lumpenproletariat par le cinéma d’avant-garde, eu faço uma tipologia das maneiras inventadas pela história do cinema de vanguarda para representar o lumpemproletariado. Apanhei filmes de diferentes contextos, autores, formas, propostas visuais – dos filmes alegóricos de Hans Richter até documentários naturalistas feitos em vídeo –, aparentemente muito diferentes, para tentar ver a lógica, o tratamento desse tipo de motivo. O lumpemproletariado, em Marx, tem um sentido muito negativo – era a população pobre que traiu a classe proletária, que você pode ver em A Greve, de Eisenstein – mas até mesmo filmes marxistas têm diferentes concepções sobre o assunto. O problema é: o que você pode fazer, visualmente, sobre o lumpemproletariado, quando isso não é um julgamento? Como uma representação do lumpemproletariado se opõe a outra? Esse é um elemento muito específico, mas você pode fazer comparações tomando qualquer outro.

A Greve (1925), Sergei Eisenstein

A Greve (1925), Sergei Eisenstein

Em 1970, Godard escreveu um manifesto em torno da questão “Que fazer?” (“Que faire?”). Quarenta anos depois, qual é o horizonte de ação para o cinema político e militante?

Bem, essa é uma questão para todas as horas, todos os dias. Que fazer da minha vida? O que posso fazer para eliminar alguma injustiça em algum lugar? Todos os dias eu me pergunto: por que eu não sou uma médica ou uma enfermeira? Por que eu não estou tentando curar pessoas em vez de tentar corrigir a história das imagens? É mais fácil corrigir a história das imagens, de certa forma.

Mas é uma necessidade absoluta reativar tal pergunta. O povo – não só o povo, no sentido político, mas qualquer pessoa – nunca teve tantas ferramentas para se defender. Não em termos de AK-47, mas em termos de representação. Hoje, acho que a principal tarefa de um historiador do cinema, talvez a mais emocionante e exigente, é tentar ver o que está realmente acontecendo na internet em termos de cinema político (e, claro, nas ruas, mas isso já era uma questão para a década de 1970 e até 2000). Nós todos sabemos sobre as imagens da Primavera Árabe, mas não conhecemos as formas estilísticas pelas quais o povo se expressa. É óbvio para todos que a principal manifestação política dessas imagens é o cinema direto (você está em um evento, documenta-o, e coloca-o online), mas há muitas mais. Na Tunísia, por exemplo, uma das maneiras mais eficientes de desafiar o poder e a censura era escrever canções e, em seguida, fazer clipes, e depois colocá-los online. Alguns rappers foram presos por causa disso, e essa era uma fagulha para os protestos e confrontos. Os clipes, por serem tão acessíveis, são talvez a parte mais eficiente do cinema político hoje. E eu tenho certeza que existem muitas novas formas de expressão. Como historiadores e curadores, temos a obrigação de nadar nesse oceano e encontrar essas novas formas em todos os lugares. Isso exige uma grande quantidade de tempo, mas podemos fazer coletivamente. 99,9 % da análise fílmica é dedicada a filmes do circuito comercial. Talvez possamos dedicar, uma única vez que seja, algum tempo e energia para filmes que não são “culturalmente legitimados”, mas que estão surgindo do próprio povo. E mesmo que leve um ano para encontrar uma única obra-prima – um filme totalmente novo, fabuloso, inesperado –, eu acho que é o suficiente. Eu tenho certeza que existem tesouros cinematográficos que aparecem na internet todos os dias, em todos os lugares.

Como um historiador do cinema pode fazer essa arqueologia de tesouros do cinema, considerando que há mais imagens do que pessoas capazes de vê-las?

Esse é o problema, mas essa também é a responsabilidade. É por essa razão que Henri Langlois costumava dizer que “temos que preservar tudo”. Mesmo que não vejamos sempre, porque não temos tempo suficiente, mesmo que seja pura porcaria. De certa forma, isso era fácil de fazer com os filmes em película. Jean Mitry podia escrever uma história do cinema sozinho, mas hoje todos os historiadores vivos, juntos, não poderiam escrever essa história contemporânea. O volume da produção torna impossível escrever qualquer história global, e não temos mais esse horizonte. Mas é por isso que é ainda mais necessário fazê-lo.

Temos que ver filmes totalmente fora dos circuitos habituais – fora da indústria, é claro, mas também fora dos festivais, dos circuitos experimentais e subterrâneos. Há um novo setor das imagens, o Quarto Setor, talvez imagens que não pretendem ser vistas, ou que são feitas para serem vistas apenas por seus próprios autores, e é uma necessidade ver o que está acontecendo aí. E mesmo se houver apenas alguns pequenos vislumbres e fragmentos dessa história, é mais interessante considerar este novo setor do que fazer uma análise de um filme conhecido, que já tenha sido comentado antes. E nós não podemos analisar essas imagens – por exemplo, as imagens das revoluções árabes – com as referências ocidentais habituais. Assim como há “os suspeitos habituais” (the usual suspects), há também “a análise habitual”. É preciso entender que essas pessoas têm seus próprios filósofos, seus pensadores políticos. Ainda assim, mesmo que haja alguns problemas metodológicos, temos que pensar sobre essas imagens. E estamos sempre pensando a relação entre cinema, história coletiva e atualidade, mas também há muitas novas iniciativas em termos de filmes intimistas, poéticos, é claro. Suponho – talvez seja apenas um présupposé – que a maioria desses filmes é feita de acordo com os modelos industriais – narrativas, formas de apresentação advindas da televisão –, mas tenho certeza de que também há muitos, muitos artistas livres. Não artistas no sentido de profissão ou status, mas pessoas de livre pensamento, que estão produzindo invenções formais extraordinárias. Para mim a resposta a Que faire? é considerar esse setor.

Em seu seminário na UFMG durante o FestCurtas BH*, você falou sobre o cinema político, mas incluiu neste campo algumas experiências que não são usualmente consideradas como cinema – como Indymedia ou Democracy Now. O que pensa sobre as fronteiras entre o cinema e as outras formas da imagem-movimento hoje?

Eu acho que não há fronteiras. É a mesma história. Tudo isso é a história da gravação e da transmissão. A primeira tecnologia de gravação foi a gravação de som, e o cinema é parte dessa história muito mais ampla da gravação. Claro que há limites estéticos, diferentes formatos, mas é a mesma história da humanidade sempre a fazer um retrato de si mesma, dos homens a fazer esse retrato e transmiti-lo uns aos outros, ou a si mesmos. É a mesma história, com diferentes tipos de ferramentas.

O discurso sobre a morte do cinema existe desde que o cinema foi inventado. Sabemos que Lumière disse que “esta invenção não tem futuro” – o cinematógrafo foi feito para durar apenas alguns anos –, mas quando a televisão surgiu, na década de 1950, Rossellini também disse que o cinema estava morto. E todo mundo repete desde então. O cinema deveria estar morto há muito tempo.

Mas, para mim, parte da energia fabulosa de Jean-Luc Godard é que ele tentou incorporar ao cinema todas as outras tecnologias. O vídeo, quando ele fez Numéro 2 (1975), o digital, quando fez Filme Socialismo (2010). De certa forma, ele tenta “exportar” o cinema para todas as outras ferramentas, para que o cinema não seja determinado por nenhuma tecnologia específica. O cinema está sempre em qualquer outro lugar. Por outro lado, é como se o cinema fosse a matriz de todas as outras actividades fílmicas. Isso é lindo. Aquele que mais falou sobre a morte do cinema, de uma forma muito melancólica, é aquele mais salvou o cinema, de modo que ele possa estar vivo para sempre.

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Numéro 2 (1975), Jean-Luc Godard

Eu uso o termos “artes fílmicas” (arts filmiques) para dizer que estou falando de cinema, no sentido tradicional, mas também de vídeo e digital. São artes fílmicas. Portanto, não há limite. Existem artistas e autores e pessoas que dedicaram toda a sua energia e trabalho para inventar cruzamentos entre as ferramentas e os dispositivos, e há pessoas do outro lado do painel, como guardiões do templo, que são defensores estritos da integridade de uma ferramenta, como Peter Kubelka ou Béla Tarr. E no meio disso há todas as posições artísticas. Para mim as pessoas mais responsáveis nessa discussão são os artistas ou as pessoas que estão inventando suas próprias ferramentas, como artesãos, para que não sejam totalmente dependentes da indústria.

Essa é a verdadeira questão e uma das respostas para a pergunta “que fazer?”, porque, mesmo quando se fala de internet, nós apenas experimentamos o que a indústria e a tecnologia nos dão. Quer dizer, “ok, existem essas ferramentas, vamos usá-las!”. Então, eu acho que um passo importante é entender a questão histórica criada pela indústria e dar um passo à frente: ser desobediente em relação à tecnologia e tentar ser autônomo. No mundo todo as pessoas tentam usar todos os equipamentos, como o super-8, e fazê-los funcionar para sempre. Há o exemplo maravilhoso dos amantes da música que ressuscitaram o vinil: todo mundo condenava o vinil e algumas pessoas disseram “não, nós precisamos do vinil, é um suporte especial, nada pode substituí-lo”. O que é mais importante para mim é também pensar fora dessa maldição da indústria. De certa forma, é muito humilhante ser dependente da última tecnologia, do que o mercado permite você usar. Talvez porque, basicamente, eu trabalho no campo da literatura; então, eu domino tudo que preciso para fazê-lo, só preciso de caneta e papel. Mas, para muitos cineastas, financeiramente em primeiro lugar, é ontologicamente difícil ser tão subordinado à indústria. E uma das mais frequentes objeções da mídia oficial em relação ao contra-cinema, à contra-informação e ao cinema político radical, para não mostrar seus filmes é que a qualidade técnica é muito baixa. Então, existe uma batalha pelas ferramentas, sempre. Quero dizer, toda ferramenta é política. Você tem de estar no controle das ferramentas, como Godard: ele tem uma nova ferramenta e aprende a usá-la. Uma das energias do trabalho de Godard é sempre adquirir a última ferramenta tecnológica, usá-la e, então, jogá-la fora. Mas ele gosta de ser o primeiro a experimentá-la.

E, claro, a outra posição política é realmente ser o mais autônomo possível com suas ferramentas a ponto de construí-las. Por exemplo, na França há um artista que eu gosto muito, Jacques Perconte, um professor de informática e artista, que inventa muitos problemas de lógica para fazer um novo tipo de degradação de imagens – e subversões de todo tipo – dos computadores. E há, como sempre na história do cinema, pessoas capazes de construir suas próprias câmeras e esse é um gesto crucial. Eu chamo de “desobediência técnica”. Porque, de certa forma, a técnica é muito opressiva e um fator primordial de desigualdade no mundo.

Gostaríamos de conversar sobre o conceito de vanguarda. Como ele nos serve hoje?

Bem, eu fiz uma pequena história desse termo “vanguarda”. Evidentemente, é um termo militar: “vanguarda” pressupõe um exército por trás. Mas também sabemos que existem vanguardas sem nenhum exército, por exemplo as guerrilhas e, claro, os artistas. Então, para mim é importante manter esse termo dentro do nosso campo de pensamento porque, depois de 1989 e a queda do muro de Berlim, era para as vanguardas terem acabado. Quer dizer, todas as vanguardas aparentemente morreram. Para muitos dos meus colegas na França, a vanguarda acabou nos anos 1920. Quando você diz “vanguarda” na França, é principalmente a década de 1920. Mas para mim, de certa forma, é o modo mais reacionário e conservador de pensar o que é a vanguarda, porque não existe apenas o modelo militar, há muitas formas de estar à frente de seu tempo, ser livre para suas próprias determinações em termos de ideologia, identidade e tudo mais.

O que pode ser criticado, também, no termo “vanguarda” é seu modo ofensivo de pensar o cinema. Quer dizer, há um inimigo e é preciso derrotá-lo. E, claro, há muitas formas construtivas de ser vanguardista. Jonas Mekas era muito polêmico em relação a Hollywood, mas existem também muitas pessoas inventando formas, estilos e gestos que não se pensam como antagonistas de nada. São pessoas bastante afirmativas e isso é muito importante. Há o puro princípio do prazer: uma grande parte do cinema experimental é uma expressão da libido. Existem muitos autores fazendo filmes sobre suas fantasias sexuais. De certa forma, todo o cinema é sobre isso, especialmente o cinema industrial. Por exemplo, existem fantasias e representações sexuais que são tão tabus que o filme não pode ser visto. Nós pensamos que a História é a história do mundo ocidental e essa é uma história de liberação com cada vez menos tabus, mas não é verdade. No mundo, há cada vez mais tabus e cada vez mais marketing sobre fantasias. Evidentemente eu não quero defender isso, mas, por exemplo, nos anos 1970 foram feitos alguns belos e livres filmes sobre amor por crianças, porque nos anos 1970 houve uma espécie de explosão de liberação sexual. Mas esses filmes não podem ser exibidos hoje, mesmo sendo muito belos, experimentais e sérios sobre o tema. Seria um crime exibi-los hoje. Não há relações sexuais neles, mas só a expressão verbal e visual do amor por uma criança é totalmente reprimida. Então, todo esse campo da expressão libidinal sempre foi uma motivação forte para o que era então chamado vanguarda ou filme experimental. Mas foram feitos apenas para uma pessoa expressar seus desejos. Evidentemente, os casos mais gloriosos e famosos são Jean Genet e Jack Smith. Na França, alguns cineastas mais radicais estão fazendo filmes sobre suas fantasias sexuais, mas são tão peculiares e, talvez, violentos para outros que não podem ser exibidos. E nessa motivação não há nada que os faça pensar de si mesmos como vanguarda, mas acabam caindo na experimentação e vanguarda por causa do contexto moral e legal.

Então, vanguarda é um termo bastante histórico e que segue em movimento, ou seja, que tem muitas significações ao longo da história. A questão é não reduzirmos essa palavra a um modelo ou período dominante. As duas principais reduções da vanguarda são a militar – mais precisamente, vanguarda leninista, significando ser estruturada e ter o jeito certo de pensar – e a idéia militar de um exército atrás de nós. E, claro, esse tipo de vanguarda foi importante, mas um pouco desastrosa, porque foi autoritária. A segunda redução é a vanguarda puramente formalista dos anos 1920, principalmente aquela que explorou a especificidade e as propriedades da substância fílmica, o cinema puro. São dois momentos e significações muito importantes, mas há outros.

Nós temos que expandir o ponto de vista sobre como a vanguarda foi e pode ser organizada. E é por isso, também, que eu trabalho muito com filmes de guerrilha, porque o conceito de vanguarda não é o mesmo para uma parte das guerrilhas. Por exemplo, há um maravilhoso filme sobre El Salvador em 1981, La decisión de vencer do Colectivo Cero a la izquierda, no qual se pode ver uma vila inteira, uma comunidade inteira, uma região inteira organizando-se para combater o fascismo e a repressão. É quase biológico, como um corpo com uma tática, organizando-se e repartindo as funções. Então, há pessoas carregando armas, alguns fazendo pão, mas todos são guerreiros. Não há uma “vanguarda” e um “exército por trás”; todos são vanguarda. Porque tão importante quanto atirar é comer. O filme é muito exemplar de como organizar um front e pensar de forma não-hierárquica.

Para mim, um dos melhores exemplos de pensamento sobre a vanguarda é o famoso Manifesto do Terceiro Cinema, de Solanas e Getino, porque uma das coisas que eles dizem é que todos os envolvidos na produção de um filme têm de saber fazer tudo, todos devem saber como ser fotógrafo, montador, técnico de som, diretor, produtor, projecionista. Naquela época, eram habilidades diferentes, agora são todas as mesmas, qualquer um pode ser autônomo fazendo filmes. Mas, contudo, permanece uma forma bastante exemplar de organização não-hierárquica e multifunções para pensar, ser criativo, eficiente e inovador. Um dos meus lemas, mesmo não sendo uma boa referência porque ele foi um terrível ditador, é a frase de Mao, que foi muito usada pelos maoístas nos anos 1970: “seja autônomo”. Não dependa de ninguém se você quiser ser um bom guerreiro. Ne compter que ses propres forces. Conte apenas com a própria força. Isso não quer dizer que você tem de ser solitário e ficar isolado, mas quando em um conflito, num conflito simbólico, você tem de ser autônomo, não depender de mais nenhum guerreiro. Então, todos podem ser vanguardistas para si mesmos, saber como se defender. Esse modelo é efetivo hoje no campo do cinema e da vida prática.

Você falou em vanguarda e em não reduzi-la, e lembramos da teoria da vanguarda de Peter Burger. Ele escreveu sobre o gesto de Duchamp de destruir a “instituição-arte” de dentro do museu e do mercado. Então, quais as possibilidades de destruir a “instituição-cinema” de dentro da indústria?

É uma boa pergunta porque isso também é uma tática de guerrilha muito bem conhecida: é a sabotagem. Subversão. Talvez um dos mais importantes livros para mim seja Cinema as subversive art. Claro que para Amos Vogel era uma subversão da sociedade em geral, cinema dentro da sociedade como uma subversão dela. Mas também na indústria como um campo particular. Bem, há três fenômenos de relação entre vanguarda e indústria.

A primeira é aquela em que somos levados a pensar que a indústria é o grau mais alto da perfeição técnica. E isso não é verdade. Existem muitos técnicos na história do cinema que se sentiram reprimidos porque um produtor ou algum tipo de autoridade os impediram de usar as ferramentas de forma tão bela quanto desejavam. Então, a indústria não é o supra-sumo da perfeição e na indústria e fora dela existem autores de todo tipo, técnicos ou cineastas que estão usando as ferramentas de forma mais brilhante que na indústria. Então, a indústria como referência é um puro mito. É apenas uma referência comum.

Em segundo lugar, há todas as pessoas que estão dentro da indústria tentando subvertê-la, e é como o sequestro de um avião, tendo que desconstruir a indústria, sequestrá-la e fazer filmes críticos extraordinários. Para mim, isso é ainda mais brilhante e importante do que simplesmente fazer um filme. Sequestrar a indústria requer muitos talentos, como em Starship Troopers (Tropas Estelares, 1997) de Paul Verhoeven, para mim um dos exemplos mais extraordinários e que precisa ser analisado mais e mais, não apenas o filme mas todo o processo e também a recepção, que foi muito engraçada porque os críticos não entenderam nem um pouco o que havia acontecido.

Tropas Estelares (1997), Paul Verhoeven

Tropas Estelares (1997), Paul Verhoeven

Também há exemplos à margem da indústria, que em um certo sentido fazem parte do dia-a-dia da indústria. Existem vários domínios críticos e inovadores, como por exemplo os filmes de ficção científica, que frequentemente são bastante críticos, e também os filmes-B, nos quais trabalhavam muitos dos comunistas de Hollywood, e muitos dos roteiros eram críticos, humanísticos e pró-proletariado.

E também, é claro, existem os autores que são independentes mas que estão usando os códigos do filme de gênero para fazer panfletos absolutamente maravilhosos, como John Carpenter quando fez They Live (Eles Vivem, 1988), e Battle Royale (2000), de Kinji Fukasaku, que é uma obra-prima. Para mim é a versão japonesa do “Que Faire?”. Você é um adolescente japonês que vai entrar numa sociedade fascista e capitalista… o que você faria? Claro que há essa alegoria, os adolescentes que vão para uma ilha e têm que matar uns aos outros para ser o vencedor, e cada um inventa uma solução para sobreviver. E é exatamente o “Que faire?”. Há adolescentes que assistem ao filme e o curtem como um videogame, mas você também pode entender que, quando for hora de entrar para a sociedade, eles vão seguir o exemplo dos que matam uns aos outros, ou dos que cometem suicídio, ou dos que analisam a logística da repressão e tentam piratear o sistema de comunicação que é o modelo dominante para adolescentes politizados, que é o modelo Anonymous, que, num certo sentido, foi programado por Battle Royale. Então é um filme muito importante pra mim na história da representação. Esse tipo de subversão da indústria para mim é absolutamente brilhante, crucial, porque o cinema é feito para ser popular, principalmente entre os adolescentes. Então quando um filme é crítico, engraçado, bem estruturado e eficiente, o que mais se pode esperar? É fabuloso. Então, quando eu descubro filmes assim, quando os vejo chegando às telas do mundo, como Battle Royale em 2000 ou They Live nos anos 1980… uau! Eu me sinto tão bem! O cinema deveria ser assim todos os dias, é pra isso que foi feito. Eu até me emociono de falar a respeito, é como uma felicidade, é como o mundo deveria ser. Eu sou muito grata a John Carpenter, Kinji Fukasaku, Paul Verhoeven e tantos outros por fazerem filmes tão belos e extraordinários.

Battle Royale (2000), Kinji Fukasaku

Battle Royale (2000), Kinji Fukasaku

E um dos casos mais estranhos da história do cinema é George Lucas. Porque ele fez uma obra-prima absoluta, THX 1138, que é um dos filmes mais maravilhosos e radicais de todos os tempos; o filme mais visionário, crítico, plasticamente e formalmente perfeito de todos os tempos. E então, ele também foi aquele que matou toda a criatividade dos anos 1970 fazendo Star Wars e outros filmes péssimos. Me pergunto como ele lida com sua própria consciência, sendo a melhor e pior coisa que já aconteceu em Hollywood. Evidentemente, THX 1138 foi feito de forma independente, com a energia criada por Coppola para inventar maneiras economicamente independentes de criar filmes. De qualquer forma, é bastante estranho: como você pode fazer Star Wars depois de fazer aquilo? E existem, claro, muitos links entre os filmes, é realmente o mesmo autor, não apenas esquizofrenia. THX 1138 não foi feito por um outro homem. Esse é frequentemente o caso na indústria: alguém que assina os filmes é o autor, mas o autor de verdade é o roteirista, ou o ator, ou outra pessoa. Eu tenho um colega maravilhoso dos EUA, Louis-George Schwartz, que é completamente contra a política dos autores no cinema, e diz que cada vez que falamos sobre o autor de um filme, temos que mencionar todos os créditos. Todos são o autor. É difícil, mas é uma ideia bonita. Em THX 1138 e Star Wars, é óbvio que Lucas é o autor. Não conheço outro caso tão estranho… alguém que fez o que pode ser considerado o melhor, mais radical e belo dentro da indústria, e então mata toda a maravilhosa energia criativa dos anos 1960 e 1970 com seu maldito Star Wars. É muito interessante.

THX 1138 (1971), George Lucas

THX 1138 (1971), George Lucas

Mas ainda há uma história a ser traçada das obras-primas de espírito crítico feitas dentro da indústria. Claro que há a história, por exemplo, do filme-B como pólo crítico dentro da indústria, e também há um grande livro na França escrito por dois dos cineastas mais anarquistas da França e da Bélgica, Jean-Pierre Bouyxou e Roland Lethem, que fizeram filmes deslumbrantes, experimentais, radicais e, na maior parte do tempo, hilários. Eles escreveram um livro, La science fiction au cinéma, no qual apontam todas as dimensões críticas da ficção científica, e analisam e criticam os filmes de ficção científica mais interessantes e críticos. Mas eu não conheço nenhuma recapitulação ou antologia sintética, internacional, de todos os gêneros e épocas, sobre filmes de espírito crítico feitos dentro da indústria. Essa seria uma história, talvez um dicionário, muito interessante de ser feito.

A terceira maneira é que também devemos pensar na indústria como algo muito material. E sempre há segredos e atividades clandestinas acontecendo na indústria. Há muitas pessoas, por exemplo durante a noite ou durante dias de folga, que estão usando as ferramentas da indústria – financeiras, tecnológicas ou de comunicação – para fazer seus próprios filmes. Eles são como parasitas. E assim a indústria é muito importante para pessoas que não têm dinheiro. Por exemplo, existe um cineasta experimental, Morgan Fisher, um editor na indústria, que recuperou imagens de found footage e fez seu próprio maravilhoso filme sobre o lixo da indústria. Também é uma tática de guerrilha, porque a maior parte das guerrilhas não tem dinheiro nem armas, e então a técnica é recuperar as armas do inimigo.

Durante sua estadia em BH para o FestCurtas, Nicole Brenez também ofereceu um curso junto ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da UFMG e ao Grupo de Pesquisa Poéticas da Experiência, intitulado “Sobre as formas do engajamento cinematográfico”. 

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