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Crônicas de Tiradentes: 5. Jogos de cena – a forca e a força da autoria

A) A forca da autoria

Um plano zenital mostra uma mulher com seu bebê recém-nascido. Ela parece exausta, atônita, pode-se até mesmo questionar se não estaria morta. Um pequena morte sobreposta a uma nova vida. Momentos depois esta mulher irá afogar esta criança num riacho, observada à distância pela câmera, até sobrar apenas o lençol branco que cobria o bebê flutuando na água, como uma tela em branco encharcada de significado. Rebento, de André Morais, faz desse mote sua narrativa. Esta mulher caminha. Não se sabe para onde, nem por quê. Ela é uma tela em branco: encontra outras personagens ao longo do caminho (em geral, homens), para na casa de uma família só de mulheres, toma carona, espera num de seus encontros num cemitério e, em todos esses momentos, conta histórias, memórias, fala de si mesma, assumindo diferentes identidades – as cartelas que indicam os diferentes nomes que ela se dá a quem encontra pela estrada: Maria, Ana, Clara e “eu” -, contradizendo-se entre uma e outra, transmutando-se em papéis diversos. Mas esta personagem não é uma tela: ela é uma mulher que acabou de matar seu rebento.

É o próprio filme, então, que se encharca de significantes para mostrar essa mulher, adotando uma série de cacoetes bem reconhecíveis: fotografia contrastada, fazendo as peles ressecadas pela pobreza brilharem diante de um ambiente árido tornado bruto; as atuações entorpecidas que carregam os corpos de um peso trágico artificial; o laconismo do roteiro, intensificando este peso na medida em faz da narrativa um sofrimento a conta gotas e longo prazo; demarcadores de realismo na direção de arte, no temperamento de câmera e nos modos de encenar que trazem ao jogo de cena ficcional desta mulher um “peso do real”. Ao mesmo tempo, o filme recai num transcendentalismo retórico, como se sua inscrição na imagem desse alguma espécie de valor artístico para além de mostrar essa personagem: a água como símbolo de pureza, a cor branca como um além que purga os pecados, a chuva como recompensa divina que limpa o corpo, o fogo como o inferno queimando dentro e fora da personagem. Especialmente no segmento intitulado “eu”, os indícios dessa metafísica se entregam (e o filme junto): ela sai do inferno para encontrar o pai, uma transfiguração de Deus, cujo perdão permitirá a ela atravessar um portal rumo ao paraíso e a purificação de seus pecados. Um discurso tão ecumênico e simplório, encontra em índices tão desgastados como a água purificadora e a luz ofuscante que resulta num fade para o branco uma simbologia religiosa deslocada para o sertão nordestino com cara de arte, cheiro de arte, quiçá gosto de arte: parece arte, mas é só tristeza.

Adotando um realismo de aspecto convencional e esse transcendentalismo retórico vazio, Rebento se alinha a um tipo de autoria de profícua penetração em festivais internacionais e elogiado por muitas fileiras críticas ao redor do mundo. Um modo de manejar e articular aspectos de determinado tipo de filme para vestir essa roupagem, gesto que vai desde este filme, exibido na tenda de uma pequena cidade histórica mineira, até Moonlight, de Barry Jenkins, vencedor do principal prêmio da indústria cinematográfica estadunidense no ano passado. No meio disso, toda uma fileira de obras esquecíveis que transformaram a potência autoral em convenção, desprovida de qualquer olhar. Um “eu” esvaziado que pode assumir qualquer identidade, se bem ajambrada, como a protagonista de Rebento.

Não quero aqui simplesmente fazer um elogio da novidade por si só ou lamentar uma ideia de autoria que se ensina em laboratórios de festivais no mundo todo. Meu apontamento vai no sentido de entender o sistema das artes, a instituição-cinema e sua tendência a transformar qualquer potência que possa contestar sua estrutura em convenção. E aí está a armadilha. Num tempo como o nosso em que discutimos a democratização dos meios de produção e dos lugares simbólicos do cinema, me parece um tiro no pé a divisão entre forma e conteúdo, separando os filmes entre formalistas e políticos. A linguagem – escrita, oral, cinematográfica – está carregada de sentidos próprios de seus processos constitutivos e, no caso do cinema, o convencional é um tratamento de tábula rasa para esses processos e os diferentes lugares simbólicos a se ocuparem dela. O convencional – seja o cinema comercial, de arte, a televisão, o conteúdo de Netflix e cia – almeja transformar tudo o que é diferente na mesma coisa. O espírito do cinema autoral foi encontrar no mundo a forma justa de representá-lo, atentando para a diferença entre as coisas de modo a tornar qualquer pessoa, espaço ou situação, cinematográficos. Não haverá revolução política no cinema se ela não for também na forma. O convencional não é democracia, mas uma miragem.

Isso é sensível em Rebento: esta mulher, com seus mistérios e idiossincrasias, que acabou de matar seu filho no riacho, é filmada como uma chaleira no fogão a lenha. Ela é uma tela em branco e como tal pode ser tudo ou ser apenas uma tela em branco. Mas não é uma tela em branco: é uma mulher que acabou de afogar seu rebento. Nesse sentido, Rebento é um filme imoral. É também um mau filme. E ambas as características são indissociáveis. A inscrição dessa trajetória encharcada de sentidos, passado e experiência, através de símbolos vazios e cacoetes formais convencionais não é mero formalismo, é política.

B) A força da autoria

Lembro Mais dos Corvos começa com um rosto. Um rosto abrindo os olhos. Não uma, mas duas vezes. Um despertar e uma insônia. Uma libertação e uma prisão. É essa ambivalência que permeia o longa de estreia de Gustavo Vinagre, jogo entre personagem e câmera, atriz e diretor, passado e presente, lembrança e confissão, a invenção e realidade, ficção e documentário.

Depois de um início ameno, com impressão de espontaneidade e recorte de um cotidiano filmado como que por acaso, o filme se dedica a captar o relato de Julia Katharine, atriz e aspirante a diretora, prestes a realizar seu primeiro trabalho atrás das câmeras. Como um encontro, Vinagre cria um dispositivo que deixa clara a interação: a câmera fixa filma um proscênio onde Julia transita com liberdade, permitindo à personagem flanar por suas memórias, perder-se no relato, ocupar o espaço e usar os objetos a seu bel prazer, misturando suas lembranças com o peso da insônia e a leveza de um pileque – Julia não larga da taça de vinho, bebericando incessantemente ao longo do filme como quem quer se livrar de seu superego. Transitando na cena apenas por panorâmicas e zoom ins ou outs, há uma divisão muito clara entre o espaço de Julia e o da equipe, com Gustavo, diretor-fora-de-campo, surgindo com sua voz eventualmente. Esta demarcação tão forte entre o espaço da câmera e seu diretor-voz de um lado, e a atriz-personagem de outro é a essência desse jogo fundamental de Lembro Mais dos Corvos, sua liberdade e maldição. Um jogo de cena.

Se esta expressão traz à mente um dos mais importantes filmes do mais relevante cineasta brasileiro da última década, não é por acaso. Gustavo Vinagre arma um esquema de teatralidade para construir sua interação muito parecido com a demarcação que Eduardo Coutinho radicalizou em Jogo de Cena (2007), As Canções (2011) e Últimas Conversas (2015). O set de filmagem pontua incessantemente o caráter performático deste encontro entre cineasta e personagem, lembrando ao espectador, pelos elementos de cena, não se tratar de uma entrevista, restringindo o mundo para evitar qualquer impulso de decifração de uma verdade inerente ao retrato passageiros das personagens. Em Coutinho, não se trata de revelar um mundo autêntico para além do filme, mas trazer uma verdade do mundo para o espaço da mise-en-scène tão duradoura quanto pode ser o tempo de uma conversa. “Escrever um mundo”, o desejo fundamental da autoria cinematográfica, razão primeira para se decidir a – e como – filmar. Há a intensidade daquele momento e nada mais. E esta é uma construção.

Neste “Coutinho de uma nota só”, Lembro Mais dos Corvos inscreve esta personagem no mundo pela confissão e o relato, partindo da experiência real de Julia rememorada para construir um jogo de ficcional que emula um documentário de entrevista e o momento de um encontro, como um Moscou invertido no qual a ficção não é mais a ponte para chegar nas pessoas que encenam, mas o destino onde as memórias da vida podem levar. O dispositivo coutiniano e seu espaço de encontro é aqui o próprio jogo de cena, como se as performances de si mesmo estivessem inscritas em Julia em grau zero, pois plenamente consciente. A relação se inverte: é Julia quem interpela o cineasta Gustavo querendo saber dele o que ele quer saber ou a opinião do diretor sobre o que ela conta. Mas Gustavo recusa intervir ou ditar o caminho por onde a narrativa de Julia deve prosseguir. Apenas se entrega, como um autor que deseja se apagar, dando à sua personagem o filme, não só como tema, mas também como escrita.

É curioso pensar esse aspecto da autoria no cinema de Gustavo Vinagre sob o prisma do primeiro longa de um cineasta com uma carreira relativamente extensa – e notória no circuito de festivais – de curta-metragem (e seu único média) antes desta estreia. Quando da cobertura do Festival de Brasília de 2014, escrevi sobre a relação em La Llamada (2014) entre o protagonista do documentário e o cineasta fora de quadro, cujas intervenções nas tomadas espontâneas de cotidiano da personagem criavam um campo de tensão no filme: a figura do cineasta teimava em fazer presente, mesmo estando completamente ausente na imagem. É um traço personalista interessante dos primeiros filmes de Gustavo Vinagre, especialmente Filme Para Poeta Cego (2012), no qual o diretor se faz objeto corporificado da imaginação sado-masoquista do poeta homenageado, mas que se tornava centro do filme ao polarizar em seu corpo aquilo que era, em Glauco Mattoso, imaginação e relato – como se dissesse: “serei suporte do espírito do personagem e, por isso mesmo, tudo existirá a partir de mim”; e Nova Dubai (2014), filme-performance, um topos de mal-estar cartografado pelas intervenções sexuais de Gustavo Vinagre – aqui personagem – nos espaços pilhados, transformados e revendidos pela especulação imobiliária, cuja imagem-síntese é uma punheta batida para a cidade, resultando em gozo solitário e moribundo de fim de mundo. Em Chutes (2016), por sua vez, este personalismo se apaga completamente, caindo numa anti-escrita, um filme de convenções e estratégias decodificadas numa narrativa recusando qualquer ímpeto de tensão pessoal. Mas Os Cuidados que se tem com o Cuidado que os Outros Devem ter Consigo Mesmos (2016) e Filme-Catástrofe (2017), ambos com Julia Katharine no elenco, pontuam um desejo de coletividade da ficção voltada para as personagens, suas interações e a vontade de partilhar certos afetos conflituosos com o mundo, um autor buscando se inscrever pela ficção (e não mais pelo documentário ou a performance de si mesmo) num mundo em transformação, mesmo que o turbilhão permaneça fora de quadro (o protesto que se dá lá fora em Os Cuidados…, a ventania que atinge as personagens em Filme-Catástrofe).

As transformações desse autor no cinema de Gustavo Vinagre parecem em compasso com as reconfigurações da autoria pelas quais o cinema brasileiro mais arriscado tem passado. Ao mesmo tempo que a autoria foi rediscutida – pelas novas formas de configuração das equipes, mais coletivas, ligadas por relações afetivas da vida cotidiana levadas ao trabalho artístico -, ela manteve um espaço de reivindicação muito forte como lugar simbólico. Por um lado, a ideia de “coletivo artístico” – que prometia uma discussão mais profunda sobre o papel do autor na arte contemporânea, especialmente no cinema onde este lugar simbólico é nebuloso – perdeu força, esmaecida pela necessidade prática do sistema de financiamento do cinema em adotar um CNPJ e emular certa funcionalidade própria da organização empresarial que recolocou a figura do/a diretor/a como peça principal da engrenagem. Em outra frente, o perfil historicamente ligado ao lugar do autor no cinema brasileiro foi contestado pelos movimentos sociais identitários, lutando por expandir o alcance de novos agentes aos meios de produção da realização cinematográfica, o que gerou, paradoxalmente, um fortalecimento do lugar simbólico do autor ainda que conteste a autoridade de sua consequência artística, a autoria.

Lembro Mais dos Corvos transfigura essa dinâmica em sua estrutura: é o filme de um autor abrindo mão de sua autoria em favor da personagem, uma mulher transexual, atriz e aspirante a diretora de cinema, contando sua trajetória, suas lembranças de infância até o presente imediato quando Julia, diante da alvorada pela janela de seu apartamento, dirige a câmera, dizendo seu primeiro “ação”. No reflexo do vidro, um apagado Gustavo entrega ao mundo esta nova autora, cuja história acabamos de ter relatada. Sua história permeada por sofrimentos, abusos e opiniões fortes sobre o mundo, mas também cheia de alegria e reflexões gaiatas sobre a vida, resulta numa autoridade necessária para a nova autora. Por sua vez, a escrita esfumada de todo o filme se desvela: o esforço coutiniano de Lembro Mais dos Corvos perde sua força quando entendemos que o jogo de cena é só um aceno, uma trivialidade, dispersando toda a tensão e potência desse espaço criado entre Gustavo e Julia que a câmera tem apenas a zoom para enfrentar. A entrevista que não é entrevista vira só entrevista; o relato que talvez não seja relato vira apenas relato; o vinho não tem tanto valor, pois o superego nunca existiu e o cenário é só cenário. As restrições do cinema de Coutinho aqui apropriadas como espaço cênico são apenas isso mesmo, espaço cênico e quando este se desvela como o segredo do mistério não há mais choque entre ficção e documentário, nem desconfiança, não há tensão nem mesmo a necessidade de questionar ou decifrar os mergulhos da lente. Lembro Mais dos Corvos não é só um filme sobre e a partir de uma personagem; há uma série de mediações ali, sintomas da história de uma passada de bastão: o tema vira escrita, tomando a frente da autoria. E o autor – e sua inscrição – é apenas jogo de cena.


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