Nova Dubai, de Gustavo Vinagre (Brasil, 2014)

janeiro 25, 2015 em Cinema brasileiro, Em Vista, Pablo Gonçalo

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Uma certa poética da perversidade
por Pablo Gonçalo            

No mosaico de distintas combinações que é Nova Dubai, há uma curta sequência de entrevista que chama a atenção de maneira especial. “Pai” está sem camisa: é mais velho, possui cabelos grisalhos, longos, e fala com um sotaque de imigrante latino-americano. Ao fundo, vemos duas samambaias suspensas na parede e uma televisão, fora do quadro, na qual ele deveria assistir algum programa. Pai nos conta porque mudou-se para o Brasil, num instante de fuga, alívio e certa felicidade. Ainda adolescente ele foi vítima de um estupro coletivo, num quarto de fundos, onde o som da marcenaria abafava os seus gritos por socorro. Um estupro – diga-se, e repita-se o óbvio – entre machos (já que esta seria uma prática intrinsicamente máscula), eivado por uma violência tácita, camuflada, e quase cotidiana. “Pai”, no entanto, não é uma mera vítima. Na mesma entrevista, ele confessa que as cenas de estupro que via no cinema – a imagem do ato – lhe eram extremamente excitantes e resultaram nas suas primeiras ereções e masturbações diante de uma tela.

O estupro, ei-lo, paradoxal e sedutor; oscilando, como imagem e dramaturgia, entre a repulsa e o fascínio, a violência e os dilaceramentos afectivos, prenhes de pulsões sadomasoquistas. Além de enigmática, a sequência de confissão frente ao estupro de “Pai” é reveladora da sutil, rebuscada e provocadora teia que Gustavo Vinagre acaba por coser. Não é por acaso que o personagem chama-se “Pai”. Não é por acaso que o próprio ator-diretor-personagem-performer precisa, deliberadamente, sodomizar o “Pai” que está diante da câmera, como se, em cena, pudesse sublimar – e mesmo perverter – uma tácita e potente estrutura patriarcal. Ao entremear o estupro entre as suas sequências mais potentes, o filme opta por se equilibrar, perigosamente, entre os mais evidentes e os mais perigosos dilemas éticos que envolvem esse ato. Mais do que filmá-lo (no sentido ficcional), para além de representá-lo, mais do que abraçar uma confissão, e de jogar com ela, o filme, ele mesmo, anseia por praticar um estupro cinematográfico entre os personagens, diante das câmeras. Um estupro duplo, um estupro do duplo cinematográfico. De um lado, não há piedade, interna e diegeticamente, entre a violência do ato sexual, sobretudo na sequência final, e a forma como o estupro é, mesmo que ficcionalmente, vivido pelo diretor – como uma vontade e um prazer absurdo que o próprio estupor engendraria; por outro lado, e frente a um ethos heteronormativo, Nova Dubai gera uma visibilidade extrema, pornográfica, por vivenciar, como performance, aquilo que não nos é permitido ver, mas tão somente representar, denunciar e, paradoxalmente, vingar. É por essas ambivalências do estupro e do olhar que o filme constrói sobre ele que conseguimos captar a aposta numa certa poética da perversidade que Nova Dubai é exímio em instaurar.

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Nessa linha, é necessário realizar uma pergunta preliminar: o que, afinal, seria um estupro? O que realmente significa o estupro – fílmico, mas não só – nesta sociedade que convive com códigos morais tão espúrios – justamente, aqui, nesse país, onde a “civilização”, como diria Gilberto Freyre, foi acompanhada por uma ampla “sifilização”, a qual teria o surgimento dos mulatos como um índice visível, mas uma prática constante, cotidiana e silente, de estupro, que emergiria como um sintoma velado desse acontecimento “nacional” (sic). No cinema, o estupro obriga o espectador a flertar com o insuportável. Suas sequências não são apenas um ápice de violência – simbólica, corpórea, sexual – mas também oscilam, no cerne da sua encenação, entre aquilo que é cenicamente suportável e as sequências – ou imagens, potentes, imaginárias – que precisam ser omitidas e sugeridas.

Não há estupro fílmico que não esbarre com o problema do obsceno, daquilo que deve ser colocado para “fora de cena”. Tampouco há estupro que não enfrente o dilema da carga de violência –  sua dosagem sobre o quanto é suportável mostrar – sobre o quê deverá migrar para a encenação e para as telas. Tomemos, por exemplo, uma das cenas de estupro coletivo de um filme como Baixio das Bestas (2007), de Claudio Assis. Ali, o estupro, e todo o universo do filme, visa mostrar – e mesmo, apontar e denunciar – um contexto patriarcal e típico de um interior nordestino. Contudo, toda a áurea ficcional e representativa – como o cenário, a atuação, e os posicionamentos de câmera – parecem mais próximos de uma estética naturalista, tão literária como cinematográfica, na qual a denúncia do estupro acaba por eximir ou aliviar a carga do seu convívio cotidiano. Mais: o estupro seria não apenas conduzido por homens, mas visto por machos – num sentido de um prazer narrativo-visual caro ao código hetero, que denunciam a violência feminina. Há algo de “má consciência”, para pegar uma expressão velha de um cinema que já se mostra envelhecido – nas opções estéticas e políticas que levam à representação do obsceno; há algo de um olhar genuinamente masculino, entre o horror e o fascínio, na forma como a encenação do estupro toma corpo em Baixio das Bestas.

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O contraste com o filme de Claudio Assis não é casual, já que, em Nova Dubai, percebe-se duas distinções precisas e que nos apontam para outro paradigma estético. Primeiro porque o olhar de Gustavo Vinagre é deliberadamente queer, o que gera uma cisão completa frente às pulsões heteronormativas presentes na sequência de Assis. Uma cisão, diga-se, não apenas necessária do ponto de vista político, mas fundamental para um cinema aberto e múltiplo, que se permita, de fato, conviver, inclusive ontologicamente, com olhar díspares. Em segundo lugar, Gustavo Vinagre não representa, não ficcionaliza (ao menos no sentido clássico), mas ele mesmo atua, ele mesmo performa, é ele próprio o diretor e estuprador, sobretudo da forte sequência final, que é contracenada com Caetano Gotardo. É claro que na tênue teia ficcional do filme, o estupro, ali, ganha um teor de sodomizar, mais uma vez, o empreendedor fálico e patriarcal dos investimentos em Nova Dubai. Ainda assim, o diretor não está imune – não se coloca nem acima e nem abaixo do fato, mas precisamente na cena, nela, performando o estupro, vivenciando-o em ato. Não se trata de uma mera denúncia, no polo da “má consciência”, já que Vinagre não quer lavar as mãos, mas, ao contrário, está presente e ele mesmo pretende sujar a cena e infestá-la moralmente com a sua presença. Assim, como performer de um estupro, é ele mesmo quem desperta uma autopoiesis, essencialmente controversa e ambivalente. Como se, diante do estupro e dos paradoxos de encená-lo, não houvesse salvação alguma.

O terceiro ponto característico de Nova Dubai é a maneira como ele aciona um franco imaginário pornográfico. Seja queer ou hetero, pouco importa, o imaginário pornográfico – e cibernético – permeia o filme como um todo, nas cenas em que o casal vê e busca no computador, nos aplicativos de celulares para encontrar um parceiro rápido, e mesmo na forma como o sexo é filmado, que embora não seja totalmente pornográfica, ativa códigos visuais que se aproximam de uma certa tendência pornográfica. Vale, aqui, lembrar de Susan Sontag, que dizia estar a pornografia menos no acontecimento sexual em si do que no olhar de quem a vê, como uma encontro com um desejo recalcado. Por que então considerar Nova Dubai como um filme pornográfico? De forma realmente astuta, o filme utiliza-se de códigos pornográficos para filmar cenas de sexo homossexual. Aqui, a cisão causada por essa dicotomia entre pornografia e sexualidade é novamente dúbia e ambígua. De um lado, pretende-se gerar visibilidade onde, no sexo homo, há guetos e uma certa tendência heteronormativa em “preferir não ver”. Há, de outro lado, um próprio debate sobre a imagem e sua circulação diante de locais públicos. Não é mero acaso que o protagonista seja “claustrofóbico” e só consiga de fato gozar quando transa em público. A imagem da transa ali, numa cena qualquer e genuína, pretende ser fluida, tomar as ruas, ser vista mesmo que assim não o seja tácita e moralmente permitido.

No entanto, é precisamente pela forma como apela aos códigos pornográficos que Nova Dubai gera sua poética da perversidade. Afinal, o que seria uma perversidade senão um desarranjo, uma depravação e uma desnaturalização de códigos. O curioso é que, “tradicionalmente”, a perversão está sempre associada a um ato moral; mas e se ela fosse menos semântica e mais gestual, se fosse mais neutra e cínica? Não poderia, também, a perversão emergir como um método potente para gerar novos afetos e universos sensíveis? Nesse sentido, a perversão pode ser um saudável ato de provocação e suspensão poética. É justamente por ser esse gesto de reversão pornográfica que a obra de Gustavo Vinagre instala uma ardilosa perversão, na qual a própria performance do estupro visa dialogar e gerar um olhar perverso, latente – interno e imaginário – que lance de volta, ao olhar, tal como num bumerangue, aquilo que ele moralmente não suportaria enxergar.

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Numa extensão dessa provocação, a perversão pornográfica alcança as ruas. Há, no argumento do filme, uma pergunta latente e potente: não seria a especulação imobiliária também um fator de pornografia? Não digo apenas no sentido de uma ocupação feia, mas pela maneira como o espaço transforma-se e sobretudo pela forma como ele é esteticamente apropriado. A pornografia imobiliária seria de uma extrema visibilidade perante a qual nós, cidadãos blasés, começamos a conceber como normal e praticamente invisível. Aqui, entramos no outro lado da frase de Sontag, já que haveriam fatos pornográficos, no sentido de um excesso de visibilidade, que passamos, como que por um ato de defesa sensível, a ignorar. Por isso, a transa no meio da rua, o esperma numa passarela pública, o sexo nas obras, com os peões, o estupro numa cobertura de um prédio em construção, vendido na planta – e, por fim, o ato de jogar lanças vãs num terreno baldio, belo e abandonado, que um dia será pervertido por prédios insossos, bregas e caríssimos. A perversão está em reverter uma verdadeira perversão imobiliária – que é o que se faz hoje em nosso espaço público. Mais do que meramente pornográfica, deveríamos, de fato, encarar tal especulação como insuportável. Mas não o fazemos. Ao contrário: convivemos, da mesma forma que os personagens do filme parecem se acostumar com certas violações insuportáveis e, por meio delas, aprendem a descobrir alguma forma, mínima e ínfima, que seja, de prazer. A extrema visibilidade do sexo no filme é tênue e gera um sofisticado contraponto frente a agressiva pornografia que são aqueles prédio em construção. É nesse contraponto, nessa complexa e inteligente harmonia, que destacamos a principal força do filme.

Nova Dubai é uma obra que precisa ser vista e debatida de maneira franca, aberta. Trata-se de um filme raro que impele o espectador a enfrentar os códigos morais que suporta e a ver os que considera insuportáveis. Precisa, pois, ser visto, justamente para sair do gueto de um filme gay ou da classificação restritiva de uma etiqueta queer. Justamente porque reivindica uma visibilidade pública, o filme necessita desse enfrentamento, cara a cara, olho a olho, de um público amplo, irrestrito, que vaie ou aplauda, pouco importa. Por isso, pela polêmica que hoje pode propiciar – e pelos vícios torpes dos nossos circuitos cinematográficos – Nova Dubai é um filme que nasce póstumo: fora dos guetos da cinefilia e da restrita etiqueta queer, não há espaço para que o filme seja de fato visto. Surge póstumo pois nasce num berço social que quer considerá-lo morto, até mesmo em seu formato (trata-se de um média-metragem, duração que encontra maior dificuldade de escoamento mesmo no circuito de festivais). Curiosamente, essa negação gerará, nos seus desenlaces históricos, a sobrevivência do filme para os olhares vindouros, quando, quem sabe, sequer essa poética da perversão será necessária para reverter um olhar equivocadamente pervertido. Nesse aspecto, o filme, paradoxalmente, celebra uma alegria e uma leveza, uma libertinagem extremamente salutar, uma ironia e um humor que abre alas para um devir instigante.

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