Jean-Claude Brisseau: do angelismo, do mistagogo, do demoníaco

outubro 3, 2013 em Em Vista, Luiz Soares Júnior

La Fille de Nulle Part (2012), Jean-Claude Brisseau

La Fille de Nulle Part (2012), Jean-Claude Brisseau

por Luiz Soares Júnior

A santidade é uma disciplina da coisa.
Ela engaja a experiência do abjeto”.

Holderlin, “Anotações sobre Antígona 2”.

E olhando, viram que a pedra já estava removida; pois era muito grande. Entrando no túmulo, elas viram um jovem assentado ao lado direito, vestido de branco, e ficaram surpreendidas e atemorizadas. Ele, porém, lhes disse: Não vos atemorizeis; buscais a Jesus, o Nazareno, que foi crucificado; ele ressuscitou, não está mais aqui; vede o lugar onde o tinham posto”.

Marcos, 16-4-60.

Como em vários filmes de Brisseau, La Fille de Nulle Part (2012) reconta-nos um conto de aprendizado. Mas o objeto privilegiado da pedagogia imanentista – com vistas à ascese espiritual, a uma rarefação do organismo num claustro energético onde as forças da Natura e do espírito humano, confundidas, acabam por conduzir a um panteísmo vital, onde o erotismo é uma experiência possível do sagrado – que se coloca aqui é outro: é o corpo desolado, exausto, desencantado de um velho professor, um estudioso das Escrituras Santas que faz percurso ao contrário ao dos personagens dos outros filmes que, por intercessão de um mestre mistagogo, abriam-se ao Dom, e nesta cratera que os exercícios entreabriam na matéria, confundiam-na enfim com o Cosmo. Mas este anódino e árido homem, que habita solitário um apartamento numa Paris petite-bourgeoise, só consegue extrair do Sagrado (do que é) a estrutura, o eidos (figura), o esqueleto; alguém que tem acesso a livros e experiências transcendentes cujo pneuma (o sopro inspirador do espírito divino, quer o chamemos Ruah em hebraico ou Anima em latim) há muito desapareceu dali. Ao contrário dos outros encontros privilegiados em outros filmes – nos quais um corpo desolado e um espírito desgarrado encontravam, segundo uma estrutura lapidar, causal e necessária, o mistagogo que acabaria por retroceder o falso dualismo metafísico (corpo, alma ou espírito) num Uno anterior, no qual ao corpo humano viriam se acoplar outros corpos, rastros de Natureza e inquietações de outros espíritos em um só élan) – o encontro de Brisseau (do próprio diretor que, com o intuito de encarecer ainda mais a fragilidade e desamparo – e sobretudo, a dimensão de estudo entomológico, ainda e sempre presente em seus filmes – acaba por encarnar o personagem do próprio estudioso) com sua jovem diretora espiritual inverte (e complementa) um percurso paradigmático: o Senhor do Fora de campo e do Fora de quadro – dos meios significativos e materiais de construção do filme – acaba por se tornar personagem, e ao encarnar-se – e aqui não ficaria mal citar as diversas metáforas usadas por São Bernardino de Siena para referir-se ao processo através do qual, pela Anunciação (leia-se: de fecundação da finitude pela Glória, por intermédio do Logos, da Palavra), o Infinito fez-se finito, o Grande fez-se pequeno, o Cósmico fez-se terra, o Glorioso fez-Humilde, etc – o personagem Brisseau chega para percorrer uma via-crucis de aprendizado, de transformação dialética no Outro/pelo Outro e radical transfiguração figurativa (sim, pois o corpo ensanguentado que vemos ao final é o mesmo/outro corpo da menina que nos aparece nas escadarias ao começo do filme, supurada e maculada de sangue). Uma substituição singular presentifica-se aí: figurativa, ontológica, de gênero, de status, de Poder.

La Fille de Nulle Part é um filme camerístico que se resolve na estagnação de campos e contracampos irisados por prestidigitações (algumas com caráter francamente irônico/anedótico, como o arrastar das cadeiras), aparições (a mulher de véu), mas sobretudo é um filme avaro de Natureza. Este é um outro dado decididamente novo no cinema de Brisseau, em que a Natureza é o elo diretivo e mediador de transfiguração do exercício “libertino” numa ascese cósmica. Enfim, temos os pequenos millagres e “truques” que remetem ao artesanal dos primórdios do cinema (o teatro, o chiaroscuro da pintura, como na aparição da mulher e do falcão, em De Bruit et de Fureur, de 1988, ser no circuito restrito e protegido de um status quo que nada (senão a Morte) deve alterar.

Mas, como em tantos filmes de Brisseau, mesmo neste kammerspiel dedicado à dissecação de fontes bibliográficas, iconográficas (os slides) e auto-biográficas (o fantasma da mulher morta precocemente, com quem ele acaba por identificar a moça machucada que, em uma tarde de Outono, desaba em sua porta), mesmo neste circuito restritíssimo, teoremático e geométrico – o espaço aqui é calculado com o rigor maníaco de um esquadro que miniaturiza o mundo como uma daquelas maquetes usadas para tentar reproduzir, sob condições determinadas, um fenômeno natural, a rigor incapturável e inefável, de maiores proporções – mesmo nesta tabula rasa onde é o personagem quem deve se encarregar de escrever e transcrever, como um monge anabatista, os dados da vida e da morte, o Mundo acaba por arrombar a porta – um aríete forjado de Acaso, Pulsão, Graça e Trágico. E é no interstício, dolorido e fraturado, desta penetração teratológica, que a possibilidade de um aprendizado se dá. Muitas foram as vias, irregulares os meios.

No burlesco trágico da crônica de La vie est comme ça (1978), o aprendizado se traduzia iconicamente (e quando não, numa arte de aparições e desaparições entalhadas no alto-relevo da película?); o seu fito era refletir um processo de degradação sócio-econômica, ao macerar e finalmente erodir com as chagas do martírio lumpen e da exploração capitalista o rosto de Madonina ducciana de Lisa Heredia, final e ironicamente votada a se reconciliar com o Infinito – não mais do Verbo feito carne, mas do corpo em retalhos, efígie de qualquer manchete sensacionalista: ela se suicida do quinto andar, como a anterior e a próxima o farão… A cadeia taylorista de montagem da empresa terrorista encarna-se na sequência existencial de auto-imolações que abundam no prédio onde Heredia habita… O tom finamente paródico de certas cenas – o encontro com o concierge nostálgico da Paris de “cinema d’acteur” dos anos 1930 -, certos clins d’oeil de performance para o espectador (as dancinhas no escritório; o discurso frontal e derisório da secretária; a afetação petite bourgeoise de Marie Riviere, com seus biquinhos à la Gaby Morlay e felina embocadura… ou a forma genial como o corte de um autopsista “cinéma verité” destrincha uma briga de rua casual, a que assistem pasmas as duas colegas: ao cabo de alguns segundos, o corpo sacrificado e escarneado pelo casal assassino, em seu júbilo agonístico de ragazzi de vita, pouco antes de serem também eles calcinados pelo mundo da corporação)… enfim, La vie est comme ça. como tantos Fassbinder dos 1970, é um filme pensado e raccordado como uma tese: aqui, se ensina como se ensina a ensinar “o quão demoníaco é viver”.

La vie est comme ça (1978), Jean-Claude Brisseau

La vie est comme ça (1978), Jean-Claude Brisseau

Mas, ao contrário da caduquice de que sofreram certos Fassbinder demasiado demonstrativos (cito aqui de cabeça a diatribe de Lourcelles contra Fox e seus Amigos, filme de que no entanto gosto, como de uma ociosa amostra sociológica), a “tese” determinista malvadinha de Brisseau dança, pisca e parodia ad absurdum, como se aquele fosse um laboratório parafrásico, com maiores e mais perversas ressonâncias sociais – entre o campo e a cidade; a relação incestuosa e a virgindade; entre Renoir e Fassbinder – dos conflitos familiares de seu primeiro filme, o camerístico Les Ombres (1982), em que as dificuldades econômicas e existenciais (e haveria defasagem nesta relação?) de habitar um subúrbio são infiltradas pelo charme demodé das performances da mãe, ex-atriz que resolve abandonar a família e voltar à cena (à outra cena, à res-publica da cena).

A questão da Camille de Renoir-Merimée, em La Carrosse D’or (1952) volta à cena, cena pobretona e improvisada, de Les Ombres: como conciliar o teatro ou a vida de uma forma que não trágica, reconciliada, como na boa e sub species aeternitates regra clássica?- que não redunde na esquizofrenia ou no surto psicótico? Aqui, a imagem final do garotinho de costas, contemplando a cidade de Paris ao longe, não encerra a questão; antes, a relança: é preciso retomar os dons infantis de imaginário e de perversão (fazer do brinquedo velho uma bruxa nova, como no exemplo torto que Agamben dá da necessária perversão do valor de troca no valor de uso em tempos como os nossos) para encontrar um meio de provar-se novamente nesta trágicômica lição.

Em La Fille de Nulle Part, uma “atriz” também dá as cartas, e tenta – de todas as maneiras, encarnando vários personagens -, atiçar a chama extinta do Dom neste homem desenganado em demasia pelo método cartesiano e pela ironia montaigniana, pelas ilusões perdidas de Balzac e pela diplomacia viperina do Sr. Norpois de Proust, pela sobranceria cínica de Monsieur Teste de Valéry, pelo falsamente indignado do amigo Maupassant para o amigo Renoir: “Você vê tudo cor-de-rosa!”- trop civilizé, trop desenchanté

Mais adiante, vou me deter nas personas de que este anjo Anunciador vai se travestir para uma última tentativa, uma última chance ser dada a… ou uma primeira? La Fille de Nulle Part é, como Les Ombres, um filme camerístico e um filme em que a máscara tenta salvar a persona, dar-lhe uma primeira ou última vez. Nem que esta mise en scène doméstica coincida com o desmantelamento do lar, a Morte simplesmente… tornar-se um Outro é a grande chave de leitura do mundo e de outros tantos possíveis mundos – ensinam-nos o ator, o místico, a Arte, estes bruxos.

Estes anfiteatros imaginários e estas pressões psicóticas, estas calmarias prenhes de demônios sócio-somáticos, estas asceses que começam no cú e ascendem ao Logos, intermitências e reentrâncias sobre as quais se equilibram estes primeiros filmes vão finalmente explodir no apocalipse que encerra (e recomeça…) De Bruit et de Fureur. Aqui, ao contrário dos filmes anteriores, Brisseau resolve objetivar o imaginário dos personagens – aquilo que ainda permanecia restrito à coxia do subconsciente da performance – em imagens efígicas sombrias, mercuriais; carnívoras também. Uma fada desnuda, com um falcão heráldico na espádua, é a iniciadora de uma nova experiência, um novo aprendizado, um aprendizado transcendente (e qual não, sendo o paradigmático ensinar a morrer?) para um menino desolado dos subúrbios parisienses – a ensiná-lo como escapar dali ou ser definitivamente engolfado pela imanência; a alternativa é dúbia, igualmente fascinante, igualmente divina. Aprisionado também entre outros mestres de cerimônias e de iniciação, menos inefáveis e angelicais; pelo contrário: um pai, húmus grandiloquente onde convivem a generosidade e a crapulice de um Rigoletto: o imponente Bruno Cremen; opaco, encarniçado em sobreviver, plenos pulmões, maciço, telúrico… e os outros – os outros, os quaisquer, aqueles sem filiação -, os garotos do bando, uma tradição do cinema francês aqui revitalizada com uma crueldade que em nada deve aos estudos entomológicos de Buñuel ou de Painlevé ou à amoralidade satírico-carnavalesca de Vigo: amorais ao ponto de carnívoros, bólibos de combustão demoníaca, círculos sem eixo, exilados e excentrados; a única afirmação de seu ser que lhes é possível apor ao mundo é a reativa: sacrificam a inocência que nunca lhes foi dada ser, sem o transcenduns que o sagrado um dia teve (o cachorrinho puxado pela motocicleta), a violam e despojam de sua graça e vidência, este é o Poder que lhes é dado ter… e o menino sacrificado ao final do filme representa um possível final feliz, já que é imolado em nome de valores e fervores que pelo menos servem ao Invisível, ao Feminino (Eros, Diana, Minerva). No Feminino que se esculpe na contra-luz marmórea, o “Lasciate ogni speranza voi che entrate” (“Deixai qualquer esperança, vós que entrais” – frase que Dante inscreve na porta de entrada do Inferno de sua “Divina Comédia”) que é De Bruit et de Fureur encontra um diapasão de eudaimonismo – aquele ideal de felicidade evocado por Epicuro, ao imaginar a conciliação de todas as criaturas entre si e sob a cúpula benfazeja do Cosmo. Filme surpreendente, em que o Bildungsroman, a Féerie e a crônica social contraem núpcias particularmente auráticas. ( Durgnat: “Aura para mim é a conjugação entre uma reminiscência e uma percepção”).

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De Bruit et de Fureur (1988), Jean-Claude Brisseau

Para Brisseau, crescer é um opróbrio, uma maldição – mas necessária; o seu cristianismo difuso e o seu moralismo advertem-no da necessidade da Queda. A teologia cristão concebe positivamente o pecado de Adão sob o princípio da felix culpa (da falta ou culpa bendita); sem a Queda, não nos encontraríamos reconciliados enfim sob a abóbada do Uno da Trindade, ao terceiro dia. Esta reconciliação é necessariamente dialética, como bem aprendeu Hegel; ela não nega o Mal, a doença, a Morte, mas as vence sob o signo da Negação do Negativo – a Dialética, ao integrá-las ao coração do homem (“O Reino de Deus habitará o coração do homem”), retirando-as da “sujeira” da Natureza e revestindo-a com a pátina do Espírito – em suma, da Palavra. A Morte de Cristo é uma Morte da Morte: Morte da Natureza, do Acidente, Da Finitude pecadora, em nome de um Espírito Renovado pela nova vida (significado atribuído agora à Morte).

Assim, há uma dialética a se respeitar, dialética esta que traça para os personagens a necessidade de um caminho, um conjunto de mediações, de exercícios espirituais sem os quais seria impossível esta conversão da carne lacerada e abusada na ascese gloriosa: os exercícios de yoga de Céline, orientada pela governanta; o contato com a Natureza e a frequência do amor (não necessariamente ágape) na figura do motoqueiro sensual em Un Jeu Brutal (1983), para a menina disforme e ressentida; inversa e complementarmente, é o exercício metódico do Mal (um cientista psicopata, para quem o corpo humano é o escopo de um arsenal de saberes e de poderes) que vai conduzir seu pai à redenção, numa espécie de teologia negativa a que o cinema de Bruisseau, experiência brutal da imanência -, mesmo quando nuançada ou enviesada pela andante do lirismo, o distanciamento honnête homme do humor ou a alacridade anarquista da aventura, em Les Savates du Bon Dieu (2000) – jamais se furtará.

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Un Jeu Brutal (1983), Jean-Claude Brisseau

Os exercícios, ao contrário dos de Santo Inácio de Loyola, não implicam uma expressionista exteriorização do pneuma cristão que habita a toda criatura; Brisseau, como todo grande cineasta, é um grande materialista (e o credo do professor de A l’aventure (2008), explicando Lucrécio para a jovem normalista, constitui uma espécie de programa de seu partis pris). A base de toda ascese ou transcendência é a matéria.

Isto quer dizer que a renovação e a liberação que os exercícios mediam estão mais para os colóquios dos personagens de Sade, em que a palavra deve antes de tudo se encarnar em “pirâmides” humanas e outras geometrias – seus colóquios só adquirem sentido se devidamente figurados. É de Fora que um novo eidos se forja e se prova; é açoitado pela brisa etérea dos Alpes, em Un Jeu Brutal, ou excitados pelas vastidões destas plongées demiúrgicas – que me lembram, em seu rigor a aplicar o açoite da luz de Apolo, a consciência, à Natura infiel, o esplêndido plano da Fortaleza de Surami (1984), de Paradjanov, em que ele coordena, ao mesmo tempo, o cavalgar dos hunos, a desabriga fuga dos carneiros, os Élios e as Terpsícores que povoam o ar… De fato, só consigo pensar no Godard tardio e em Brisseau como os grandes cineastas da Natureza no mundo contemporâneo – ou antes: cineastas do mundo “apesar do mundo”, pois permanecem igualmente modernistas…

Assim, é menos ou não apenas uma reflexão – coordenada e sequenciada por um Mestre – do que por uma flexão do músculo que ascende, um outro modelo de repetição – à imagem e semelhança da dança circular dos dervixes russos ou da ladainha católica… é flexionando, incansável mas metodicamente, estes músculos contraídos pela temperança, é destes olhos entrefechados pelo esforço, é destas poses enrijecidas pela auto-determinação, entre a tensão embólica do martírio e a mansidão dos anacoretas; é deste corpo já “adestrado” pela Natureza ingrata – o corpo inteiriçado, talhado no mármore do ressentimento, da menina aleijada de Un Jeu Brutal, que os exercícios, à força de repetição (o princípio é o mesmo) acabam por des-velar sob a carne opaca a visão taumatúrgica expressa pelo rabino Isaac Luria numa bela palavra acerca da iminente (como acreditava) vinda do Messias: “Quando Ele chegar, a carne verá”. É isso: o exercício em Brisseau, dos aeróbicos aos hipnóticos, busca realizar um ideal de transparência clássica, em que o corpo acabe por deslavar-se de seus acidentes e revelar o essencial (e o termo Revelação tem um sentido eminente e epifânicamente católico, é claro). Os monstros e as jeunnes filles impenitentes de Brisseau aprendem que é ativando o Nexus e o Plexus que uma experiência cinematograficamente metafísica tem unicamente condições de se realizar.

La Fille de Nulle Part, como Boda Branca (1989), inverte as posições e erige em objeto privilegiado da demonstração, epifânica e eudaimônica: o corpo do professor. Mas é um corpo sem condições nem abertura para o exercício físico; a ele, será reservado aquele exercício in extremis, a que tende e glosa toda flexão do corpo: a conquista de uma entropia fatal, que apazigue e equilibre as forças, e enfim enlace, sem suturas nem uso da Força, o homem e o Cosmo, os pastos e os olhos, o Feminino e o Masculino. O que disse entre parênteses sobre a apocalíptica tentativa de uma entropia geral (De Bruit et de Fureur), enfim, do aprendizado da Morte como o Fim supremo (aquele que coincide com o Princípio) aqui se realiza sob os auspícios de uma transparência irisada de branco, andantes e corpos e significantes à beira da exaustão, já na iminência (nos gestos mínimos, nos contracampos estenografados, nos signos esparsos e insignificantes, como uma ponta de cigarro que serve como ilustração do princípio de causalidade pervertido) da sucção pelo Nada. Eis a grande lição, a única, a que enfim acede uma obra cinematográfica que precisou realizar o Uno sob os auspícios da síntese (dialética ou não): do Eros e do Thanatos, da repetição e da Diferença taumatúrgica, da Natura indomável e do Espírito acossado…

Mas se, em Boda Branca, o final sobre a praia tinha, como na Ascese sobre a montanha de Un Jeu Brutal, a virtude de elidir os acidentes, os horrores, os desníveis (inclusive de roteiro e construção) do filme numa imagem fascinatória com poder macmahonista de síntese absoluta, de plenitude insofismável, em La Fille de Nulle Part, nenhuma transfiguração é possível (ou almejável); nenhuma crença é integralmente afirmada; o anedótico, o humorístico, o anódino entram em cena e rasuram o Sagrado, relevam o icônico ao cromo – os planos tableaux das mulheres tiradas de algum quadro pompièriste que Léon Bloy fustigaria sem fôlego… temos inclusive uma brilhante refilmagem da assustadora sequência do hospital no pop O Exorcista 3 (1990), quando a enfermeira é assassinada, num plano fixo e geral, pela faca imprevista vinda da direita… Campos e contracampos casuais e pontuais entre um homem solitário e assexuado (um intelectual viúvo, já se viu), o amigo que lhe restou, um destes “prático-inerte” (Sartre) e uma mindinette qualquer, esfaqueada e espojada nos desvãos de uma escadaria, em qualquer Paris – talvez a Paris de Nadja, do filme de Rohmer? Talvez…

Este professor, no entanto, resolve acolhê-la; eis a diferença, eis o que turva e desnivela, aquilo sem o que não seríamos destinados pelo filme à afasia, ao Lamento, ao Assombro… o que ele acolhe é uma figura crística, enodoada de sangue e de Alteridade – uma figura de mulher que finalmente lhe reaparece, Mãe, Esposa ou Madalena… e o folheio dos slides na sala de estar do professor ensimesmado na escritura de uma tese sobre o mito cristão mostra-nos bem que este anódino e este casual que se espraia por um apartamento burguês em Paris são o limiar de uma Outra – radicalmente experiência Outra: um rastro anterior se incrusta e refrata ali, reemerge aqui um istmo arquetípico de expiação e Transfiguração, uma operação arqueológica do Sagrado a que o cinema, arte particularmente apta a exéquias genealógicas, está destinado: o Job da gravura, o Cristo feminino que lhe aparece na escadaria, a Figura enlutada por um véu que se lhe afigura o Anjo da Morte… sim, ao final do cinema, seus fantasmas de “madeira e prego” permanecem presentes. Os fantasmas, o irreconciliável, duelo entre a Força e o Pneuma em Brisseau, continuam presentes, ali – mas, como todo grande artista, este domina a arte do travestismo, de fazer do Mesmo o trampolim do Outro, e sobre ele bailar…

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La Fille de Nulle Part (2012), Jean-Claude Brisseau

É necessário a Brisseau “o plano e o indiferenciado” do digital – a sua nonchalante imanência – para afirmar os direitos extraordinários – epifânicos, mortais, mágicos e divinos – da arte cinematográfica: no fondu entre a luz e a treva onde o corpo se des-vela Outro, no diapasão do dia que surge; na aparição frontal da mulher enlutada, ao fundo do corredor e à direita do plano; no faux-raccord, que nos confunde espaço-temporalmente em relação à posição dos iminentes assassinos, ao final do filme; nos jogos, entre lúdicos e anedóticos – jogos de feira e mafuá, jogos que nos recordam às origens lumpen desta arte hoje humilhada pelo star system, que a espolia e prostitui, festivais inclusive – com a mesa e a cadeira flutuantes, as estantes quebradas; na aparição dos quadros pompiéristes, pervertendo a Cultura (la Basse Culture) com a ainda mais baixa, inominavelmente baixa cultura da Publicidade, pois aquelas putas que ali soerguem um olhar sonolento para nós estão a se vender numa vitrine… Num filme em aparência transparente e camerístico – classicista, diriam todos os incautos, dos 8 aos 80 -, se velam estratégias críticas de uma ironia acerba, labirintos, fundos falsos… a demonstração parece cristalina: um velho professor passa a ser o objeto de uma operação de aprendizagem imemorial e essencial, que o velho-novo capitalismo tardio se empenha em fazer-nos esquecer (Heidegger: “Mais doente é aquele que não se sabe doente”): aprender a morrer. Ele recebe as visita de um Cristo, mas um Cristo que trafegou pelo deserto egípcio e por Alexandria, que aprendeu o grego com os atores cuja trupe, tímido e tatibitate, acompanhou ao longe, com seu pai carpinteiro, que fazia serviços nômades àquelas desenraizadas comunidades… um Cristo laico, punk, sexy, mago, um Cristo que conheceu Mitra e Nina Hagen, um Cristo fin-de-fin de siècle, um Cristo que dá uma rasteira de dialética no pobre professor, que de dialética só conhece a paulina, grego-hebraica dialética paulina… Este Cristo multiforme é a transformação, em chave monstruosamente demiúrgica, da suburbana figurante daquele primeiro filme, Les Ombres, em que o sufocamento da vida burguesa no subúrbio era rasurada e mordida pelo desbunde de cabaré que uma mãe de família, entre psicótica e Fedra, tentava levar à frente…

Este anjo da Morte (aqui, entre tantos outros anjos e demônios que a lívida menina representa) vai ensiná-lo a nobre função de morrer. Mas não de canônica forma; vai brincar com ele, como os deuses de nomes obscuros brincavam conosco; vai ir e vir – jamais estará absolutamente Presente, como o Cristo de João, anterior à Criação, Uno…vai lhe desfiar um rosário de aparições, entre eróticas, fetichistas e traquinas… vai fingir amá-lo para finalmente amá-lo, vai erotizá-lo para sugerir-lhe o incesto, e enfim repeli-lo, e tornar na figura da Mãe consoladora, daquela que velará por ele… velhos e novos jogos perversos, nos quais qualquer semideus grego era um expert. Para o professor, trata-se apenas de um Anjo da Morte, um Anjo da Reconciliação; está cansado de outras festas, outros cultos e punhetas… todos os filmes de Brisseau celebram a liturgia da impostergável vitória do Cosmo, da finitude reconciliada do homem com este – por mais insondável que o Cosmo seja, e filho da puta que o homem é – assim seja. Mas não aqui. O Cristo que o conduz pela Gólgota, que conduz este decrépito homem – a quem só restam os míseros conceitos, pois mal se dá ao trabalho de travestir-se de um galante garanhão e atualizar suas fantasias – é um Cristo compósito, perverso, metade Mitra metade Diana… é um Cristo travesti, engalanado de tantos outros jogos. As piadinhas de Pinal no Simão no Deserto (1965) não ficariam mal aqui; a aposta que revela a consanguinidade de Deus e do Diabo na história de Job não ficaria deslocada aqui…

Em um belo e instigante estudo de anamorfose figurativa, Dominique Païni identifica, em certas cenas chaves do As Damas do Bois de Boulogne ( Robert Bresson) – no encontro de Helène (a aranha negra, feita por Maria Casarès) e da mãe de Agnès, a mãe do cordeiro sacrificado – uma espécie de transposição metafórico-perversa deste contrato divino, selado pelo Anjo Gabriel e pelo “Eis-me aqui” da Virgem Maria… Assim, a aparição de Helène, encoberta por um véu, na vitrine, é a aparição que contempla o corpo da jovem dançarina Agnès; a atitude de fiel desvelamento da mãe de Agnès, segurando as flores de um vaso que cai, ajoelhando-se diante do Senhor; e, finalmente, os braços estendidos em cruz de Agnès, ao final do filme, redimida (a rigor, não o sabemos) pelo amor do casamento com Paul…

A sugestão fica aqui a título de analogia, mas serve sobretudo para sublinhar o prodígio deste pobre “teatro das matérias”, título de um filme de Biette, igualmente mascarado, que amo, chamado Cinematógrafo para lubibriar, travestir, equivocar, brincar, mascarar – tudo aquilo sem o qual não vivo, frágil verme aqui sob minha crisálida-escritura. Se o pobre Deus, lambido de chagas e sibarita de malícia, lhe aparece na última hora, é para repetir aquele cândido gesto de adeus do psicopata à filha aleijada, em Un Jeu Brutal: à direita da posição do Anjo de uma Anunciação de Fra Angelico. Naquele filme, a Morte do Pai rarefaz o espesso fumo de ressentimento e ódio que enevoava o Eros da filha, e a liberta para os cimos. E o Pai, ao se confessar na hora da Morte, dava um significado positivo à série de crimes, sacralizava-os: “Pois os inocentes herdarão o reino dos Céus”… Em Un Jeu Brutal, a filha que enfim ascende à montanha e o Pai que descende à Gólgota interior executam gestos recíprocos e complementares; a economia da redenção está selada, pois ao… mas para este cético professor, hospedeiro de uma divindade heteróclita e em tempos tão incredulamente banais… consumatum est. Não; Não haverá terceiro dia. 

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