O filme Obsessão (2004), dirigido por J. Gaspar, faz parte do selo pornográfico Brasileirinhas. Na capa do filme está a atriz Chloe Jones, “a número 1 dos EUA”, nos braços de Alexandre Frota, ator pornô e hoje deputado federal pelo PSL. Ainda no cartaz de divulgação Chloe surge vestida com um top verde-amarelo e com a bandeira brasileira amarrada ao quadril. Não, Chloe não chegaria a entoar o canto “sou brasileiro, com muito orgulho” e suponho que nem faria coro às nossas torcidas futebolísticas. Obsessão, na sua propaganda, gaba-se de ter sequências de sexo anal e “cinco cenas sem camisinha”. Haja pílula anticoncepcional, Viagra e analgésicos para mais uma obra a estimular a indústria farmacopornografia alastrada pelo globo e o seu ciclo masturbatório hiperconectado.
A imagem da capa acena, de forma promissora, para alguns índices históricos que gritam de tão atuais. Fiquei intrigado com esse encontro de sexo, pornografia e transa entre um brasileiro, forte, moreno, tido como um dos símbolos sexuais da televisão nos anos noventa, e uma famosa atriz pornô norte-americana. Vislumbrei, de forma anacrônica, como sua simples capa já anunciaria os atuais chamegos entre a pornografia, no seu viés estético, e a política, na sua recente onda conservadora. Remeti, primeiramente, ao escândalo midiático que envolveria a atriz pornô Stormy Daniels e o atual presidente norte-americano, no qual a atriz descreve o tamanho da genitália e o tempo de performance sexual do hoje político mais poderoso do planeta. Por alguns instantes, cheguei a contrastar essas declarações (e suas bizarras imagens possíveis) com outro famoso escândalo que envolvia Bill e Hillary, o casal Clinton, com o sexo oral de Monica Lewinski nos salões da Casa Branca. O que era um desaforo na época atualmente soa mais como um melodrama ruim diante da vergonha de um puritano casal presidencial. Se há, aliás, algo que diferencia um melodrama de uma peça pornográfica é a forma como lidam com o abjeto, o obsceno, além, claro, da distinção de certo requinte narrativo diante da franqueza e dos plots tão diretos dos filmes pornôs.
Tudo bem, nos afastamos um pouco do pudor de outrora. Chega-se, por um breve instante, a confabular uma sequência entre Frota e outros políticos daqui ou mesmo da terra do Tio Sam. Alguém, suponho, num instante de êxtase ainda diria “God Bless America” ou “Deus acima de Todos” e, pronto, teríamos mais uma bela cena a escapar pelos zaps, seus grupos e outras redes sociais. São, sim, sequências ruins e grotescas, mas é um pouco desse imaginário político-pornográfico, tão presente em nosso cotidiano, que percorreremos nestas linhas.
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A perda da distância. A indignação infantil diante das fronteiras do eu com o outro. Sobretudo a perda da distância, nos diz Byung-Chul, é o primeiro índice de uma estética política genuinamente pornográfica. Paro. Respiro. Retenho a ideia num tempo que lhe é caro. Lembro de algumas cenas que me chegaram pelas novas mídias e de filmes brasileiros mais recentes, nos seus dizeres irascíveis contra, contrários ciosos, da supressão de qualquer contraditório, de qualquer diferença.
Lembro, primeiramente, de algumas cenas que vazam por whatsapp. Ainda durante a campanha presidencial para o governo de São Paulo, surge uma sequência do candidato vitorioso numa orgia com cinco mulheres nuas. A filmagem ocorreu num celular próximo o suficiente para diluir uma distância, mas não o necessário, talvez, para causar espanto ou vergonha. Ainda hoje há a polêmica para saber se quem estava na cena era realmente o candidato ou se aquilo fora uma manipulação. O fato é que desconheço na história que entrelaça mídias e campanhas eleitorais a chegada de um vídeo tão abertamente pornográfico que visa, de um modo ou de outro, influenciar as percepções dos cidadãos-espectadores – e os votos dos eleitores.
Mais recentemente a conta oficial do Twitter do hoje presidente Jair Messias Bolsonaro compartilhou uma cena explicitamente pornográfica. Era carnaval. Ele (ou quem gerencia a sua conta) escolheu, a dedo, uma cena de interação homopornográfica, na qual um indivíduo coloca seu dedo no ânus e, em seguida, abaixa-se para receber o que se chama de um “golden shower”. Uma cena, diga-se, que também flerta com pulsões sadomasoquistas. Chama a atenção a forma como essa sequência realmente vazou e foi muito bem utilizada, diga-se, para ganhar as manchetes de jornais brasileiros e ainda escorrer mundo afora. Curiosamente, este é um dos poucos tweets realmente apagados de Jair Bolsonaro. Como se nessa postagem ele hesitasse um bocadinho em trazer para o centro da cena política o que ainda é considerado como obsceno.
No cinema, a verve pornográfica da extrema direita requer uma atenta genealogia. Talvez ela tenha um início possível no Tropa de Elite (2007) e Tropa de Elite 2 (2010), ambos de José Padilha, e ganhe um significado específico num filme como Jardim das Aflições (2017), de Josias Teófilo, que acaba sendo um prenúncio da influência de linguagem, formas e ideias de Olavo de Carvalho no atual governo. Analisaremos, contudo, apenas dois desses filmes. Intervenção: Amor Não Quer Dizer Grande Coisa, de Rubens Rewald, Tales Ab’Sáber e Gustavo Aranda é o primeiro filme brasileiro, ainda que de forma oblíqua, que me vem à mente. Lançada em 2017, a obra compila uma plêiade de diversos arquivos nos quais pessoas as mais diversas falam de frente para a câmera, como se estivessem na live de uma rede social qualquer ou diante de um quarto de vidro de uma modelo que tiraria a roupa e atenderia às fantasias de um cliente-espectador conectado em banda larga. Falam sem vergonha, de forma desbocada, uma penca de impropérios antimarxistas, anti-esquerdistas, anti um vermelho qualquer. Em seguida, eles passam a elogiar os militares. Com argumentos mirabolantes, comprovam que houve um exagero, justamente de esquerdistas, na revisão história do golpe (ou da “revolução”?) militar de 1964. Ainda insatisfeitos, esse coro de cidadãos antes somente descontentes, começa a pedir e defender uma nova intervenção militar em solo brasileiro. Mais do que seu discurso, é o seu tom enfaticamente direto que transforma essas imagens num ato de afronta, de guerrilha, mas que também gera, de alguma forma, um borrão entre a distância e a proximidade. Um borrão, diga-se, genuinamente pornográfico.
Não é apenas o tom e o conteúdo dos discursos que salta à vista nessas falas que anteciparam o novo espírito e a nova onda conservadora da nossa época. É sobretudo a forma, audiovisual, inclusive, como esse discurso se articula. É um modo direto, que dispensa intermediários, que busca uma interlocução tão solipsista quanto desesperada. São falas e gestos audiovisuais afoitos por uma experiência de apagamento e aniquilação. Mas também são filmagens caseiras, cotidianas, despreocupadas com o cenário que aparecerá ao fundo. Essa prática P2p, do testemunho e da declaração direta para a câmera, que interpela o espectador como se estivesse numa sala de vidro, nu, pronto para clicar-consumir um momento privê, transformou o homem sem qualidades moderno no indivíduo acentuadamente pornográfico da nossa atualidade.
Uma obra como O Doutrinador (2018), de Gustavo Bonafé, é de fato eloquente como transita entre uma sede de justiceiro e uma linguagem de violência abertamente pornográfica. Com um plot realmente simples, narra-se a história de Miguel (Kiko Pissolato), que é um policial cansado da falência da justiça diante de políticos corruptos. Apesar de fazer o seu trabalho de maneira eficiente, quando chega, por exemplo, a prender Sandro Correa, o governador do Estado do Rio de Janeiro, interpretado por Eduardo Moscovis, Miguel vê que a rede de corrupção, suborno e tráfico de influência permanece intocada quando os políticos que participam de esquemas criminosos encontram-se entre as grades.
O ponto de virada, contudo, surge quando a sua filha, num dia de jogo do Brasil na Copa do Mundo de 2014, é vítima de uma bala perdida. Pior: ele chega num hospital público e não consegue que ela seja atendida e salva. Nessa hora emerge uma imagem que pouco-a-pouco torna-se icônica dentro do imaginário conservador e de extrema direita: uma camisa da seleção brasileira, vestida pela filha, manchada por um sangue, bem vermelho, o qual passa a desenhar um rastro próximo ao mapa do Brasil…. É diante desse fato que Miguel resolve transformar-se no “Doutrinador”; um sujeito vestido com uma máscara de gás, pronto para a guerra, cuja missão é espancar barbaramente até a morte cada um dos políticos e dos juízes envolvidos nas tramoias de corrupção.
Com o auxílio de Nina (Tainá Medina) uma jovem hacker, Miguel passa a rastrear todos os políticos envolvidos, tal como se fosse um agente da Lava-Jato mas que dispensa o papel tradicional da justiça. O Doutrinador oscila entre um personagem heroico e com um desespero vão. Alude para o anseio fascista de realizar justiça com as próprias mãos e acena para um colapso suicida de todas as instituições que, mal ou bem, ainda persistem em ser os pilares institucionais da claudicante democracia brasileiro. O Doutrinador é um dos filmes que melhor traduz o imaginário de um niilismo político, tolo, suicida e desesperado, que ronda as inquietações de uma parcela à direita dos eleitores.
Mas não são só filmes que disseminam esses acenos. Também recupero flashes de trechos que pulularam no zap, na recente profissionalização das gravações amadoras que tão bem marcaram a eleição presidencial. O que vemos senão imagens que acenam por essa dissolução da distância? Imagens que apregoam um fim da mediação, um contato direto, um peer to peer político, nos tweets que geram fake news diante de uma (falsa) retórica da aproximação, minuciosamente planejada pela rede de perfis vindas dos big datas. Em cena: um pretenso líder a falar de casa para a Avenida Paulista, com as roupas no varal como plano de fundo. Ou com os travesseiros empilhados atrás dele, ainda na cama, que, orgulhoso, dispara a evocar sua perseguição militar e juvenil contra Carlos Lamarca. No seu esvair-se, a distância ainda agoniza diante do seu último suspiro, como se pedisse uma brecha, um fôlego possível para que houvesse um horizonte de reinvenção da política diante da sua nova face pornográfica, adornada pelo mais recôndito e complexo cinismo que já tomamos conhecimento.
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No cinema, a estética pornográfica não é homogênea, uniforme e possui variações dentro de um gênero que, paulatinamente, consolida-se como um dos mais presentes e pulsantes dentro do imaginário contemporâneo. Um cineasta como Bruce LaBruce realiza filmes pornográficos e homoeróticos, ou mesmo um pornoterrorismo queer, com a finalidade de discutir temas e questões caras a imigrações, aspectos políticos que tendem a ser polêmicos, profundos, perturbadores, mas que também reforçam um imaginário queer e sua sensível atualização. Erika Lusta persiste em ter uma equipe de técnicos majoritariamente femininos por trás das câmera que buscam um cuidado, uma certa delicadeza na forma de atender as atrizes e a filmá-las. Linda Williams, nesse viés, é uma das primeiras teóricas a compreender a linguagem dos filmes pornográficos a partir de vetores potentes e disruptivos.
Uma obra recente como As Filhas do Fogo (2018), de Albertina Carri, nos mostra os prazeres – utópicos – de uma sexualidade de um mundo sem homens, uma espécie de comunidade viajante a buscar um aquecimento sensual e sexual em meio às paisagens da Terra del Fuego. São mulheres masturbando-se à vontade, entre si, prescindindo de um olhar masculino. Na notável sequência final, desfilam bandejas com vibradores de várias cores e tamanhos. Como se fossem objetos de consumo que dispensassem o falo masculino. Formas leves e intensas de vislumbrar um prazer do feminino que aparta ditames heteronormativos.
Como todo gênero fílmico, a pornografia esmera-se em ser polimorfa. Não é, contudo, essa a versatilidade que vem sendo deflagrada na cena política conservadora e mundial dos últimos anos. Ao contrário, remete-se, aqui, nestas linhas, e na atual cena política, a uma pornografia que visa reinstalar, no seu afã tradicional, valores heteronormativos que, para seus adeptos, estavam sendo colocados em risco. São para esses valores que o ciclo de cidadãos-masturbadores contemporâneos vem buscando um novo afã de gozo e ejaculação. Não se busca formas de co-pertencimento de uma diferença de prazeres, de uma plêiade de corpos inclassificáveis, de dizeres novos e improváveis. Saímos de uma cidadania baseada sobretudo no consumo de propagandas televisivas para entrarmos num modo de voto masturbatório e narcisista, no qual o prazer político passa pela objetificação e aniquilação das diferenças. O prazer do gozo, nesses casos, reivindica a humilhação dos diferentes, a submissão das diferenças, o que é o oposto de uma política centrada na adversidade de ideias e princípios. O contraste entre esses dois modos de pornografias – o hegemônico e o que busca uma invenção dos prazeres nos corpos (e uma outra imersão dos corpos em redes de prazeres) – será permeado por questões éticas; questões que por muito tempo ainda reivindicarão respostas políticas da nossa e das próximas gerações.
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Um líder carismático diante das massas. Sem mediações. Sem subterfúgios, num contato audiovisual entre a aura do político e sua emanação diante do público. Num ensaio seminal, Walter Benjamin torna claro como o que ele chamava de “meios de reprodutibilidade técnica” tornavam-se um instrumento caro de fanatismo, à época, de cunho fascista. É preciso certa cautela para transpormos os tempos de Benjamin aos nossos dias. É necessário outra dose de prudência para não forçar teor político às mídias, que tendem, primeiramente, a técnicas de conexão para em seguida obter feições conservadoras ou progressistas. Toda a logística dos big data, do rastreamento de perfis de eleitores e consumidores das redes sociais e do uso das fakes news obteve, nos últimos anos, pulsões e resultados neoconservadores. No caso brasileiro, esse novo leviatã ganhou bizarras feições teocráticas, milicianas, militantes, militares. Fala-se em manipulação, hoje, a partir da forma como certos poderes hegemônicos lidam com esses dados tão íntimos e preciosos, como outrora falava-se de controle das massas, na formação de opiniões. Os políticos atualmente possuem mais adesões nos seus tweets e lives do que na participação de um debate na televisão, o qual acabam por dispensar. Não estamos mais no corroer de uma esfera pública, como dizia Jürgen Habermas no tempo da preponderância do modelo do broadcasting, mas numa forma de interação política totalmente narcísica, onde o espelho do próprio desejo surge como o espanto do novo. O que há de pornográfico nessa disrupção? O que há de cínico nessa nova forma de retórica e persuasão política? Como a linguagem audiovisual corrobora, adocica e apimenta o fervor desse cinismo pornográfico?
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Pier Paolo Pasolini foi um dos primeiros a juntar as pontas do fascismo com a pornografia. Em Salò ou 120 Dias de Sodoma (1975), é o insuportável que ganha a cena, o protagonismo, o alvo das câmeras. Mais, Pasolini flagra o intolerável. As orgias, no entanto, são comandadas por oficiais do exército, generais, capitães, soldados e homens comuns, cidadãos, civis, por assim dizer, que aludem a adeptos dos camisas negras. Radical, o empreendimento de Pasolini realça certos prazeres sexuais – e literalmente sadomasoquistas – que seriam característicos dos porões de tortura de regimes autoritários. Há a necessidade de dominação, de crescentes humilhações, de imposição de padrões já hegemônicos, mas que exploram o corpo dos dominados ao paroxismo – de forma a submetê-los totalmente a valores e padrões politicamente predominantes.
A pornografia é também uma técnica de supressão física e simbólica da diferença. Uma técnica de aniquilação de qualquer subjetividade que seja minimamente desviante. É nesse sentido – de uma igualdade forçadamente homogênea – que a pornografia, na brilhante visão de Pasolini, revelaria-se como uma prática totalmente coligada ao fascismo. Não ao fascismo histórico – no seu acontecimento europeu anterior à guerra – mas aos seus laivos políticos inoculados pelos diversos regimes autoritários que o século XX (e o nosso) passaram a abrigar. Não há, nesse viés, tortura que não seja pornográfica. Tampouco haveria autoritarismo que abdicasse de alguma forma de tortura, seja ela física ou simbólica.
O que chama a atenção na nova onda conservadora não é tanto um retorno ao radicalismo dos discursos, mas o uso dessa estética dos porões, cara aos pincéis de Sade e Pasolini, para o proscênio dos acontecimentos políticos. Ou, como, de forma descarada e hipócrita, passam a elogiar o pavor de Brilhante Ustra e suas torturas que, felizmente, entraram para a história sem nenhum frame, foto, ou imagem. A estética pornográfica é um modo de visualização, uma forma de abordagem audiovisual marcada pelo hiperclose, pela fissura da diferença, pelo falso amadorismo, pela performance que se diz natural. Ela pretende tornar visível o que antes eram desvarios obscenos – é uma estranha forma contemporânea que a direita passou a vestir para “sair do armário”.
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Observa-se, contudo, um movimento um tanto diferente nos discursos, trejeitos e na linguagem pornográfica mais contemporânea tal como manuseada pela extrema direita. Há uma lenta passagem de uma “transcendência secular”, como Susan Sontag destaca a estética do fascismo, para uma transcendência propriamente “teocrática”, ou militar teocrática, a qual é atravessada pela linguagem pornográfica. Como se a pornografia permitisse o fetiche, político e lúdico, de colocar tudo no seu “devido lugar”; ou seja, os dominantes como as únicas autoridades possíveis e os dominados como submissos. Esse reordenamento conservador e de extrema direita seria, de forma bastante curiosa, acompanhado por rezas, preces, orações, sermões e a pregação de valores abertamente cristãos.
Não se trata apenas da cooptação política cristã e evangélica de um Estado que, ao menos teoricamente, se afirma laico. A cooptação, ali, ocorre no âmbito estético e foi um filme como Divino Amor (2019), de Gabriel Mascaro, quem melhor soube retratar essa atmosfera sensível, visual e sonora, pela qual a transcendência fascista-evangélica ocorre entre canções de culto à bíblia, à monogamia, ao apaziguamento das tentações da carne. Embora o filme de Mascaro esteja distante de uma estética pornográfica ele possui o valor de ressaltar como mesmo um ethos evangélico é permeado por anseios sexuais, transcendentes, que não se furtam de atos perversos para a manutenção de seus controles sobre os corpos que tanto oram quanto transam.
De certa forma, é do pau de Deus, do pênis do Messias, que esse filme acaba por falar. Como se a transa com o próprio Deus fosse o gozo supremo, o gozo almejado por todos os fiéis, e que no filme transformam-se em fiéis-cidadãos. Poucas poetas como Hilda Hilst flertaram tão diretamente com essa loucura que envolve a (im)possível transa com Deus e uma transcendência estética. Nos seus Poemas Malditos, Gozosos e Devotos, Hilda entoa o seguinte canto: “Atada a múltiplas cordas / Vou caminhando tuas costas / Palmas feridas, vou contornando / Pontas de gelo, luzes de espinho / E degredo, tuas omoplatas // Busco tua boca de veios / Adentro-me nas emboscadas / Vazia te busco os meios. / Te fechas, teia de sombras / Meu Deus, te guardas”. Nesse e em outros versos, e mesmo na sua tetralogia da obscenidade, Hilda faz do corpo um elemento poético e fronteiriço, o qual permite vislumbrar aquilo que estaria justamente fora do campo de visão. Quando no corpo do verso e no verso do corpo o obsceno revela-se como divino.
Bastante influenciado por essa verve pornográfica-teológica de Hilda Hilst, o filme A Rosa Azul de Novalis (2018), de Gustavo Vinagre e Rodrigo Carneiro, flagra Marcelo Diorio, o personagem principal, a dizer que “Deus é o meu cu”. A transcendência aqui revela-se como a justa antípoda perversa das pulsões predominantes. Como se fosse uma insolência, uma revolta, para, por meio da pornografia, subverter os padrões heteronormativos. A diferença não é de um mero órgão sexual e erótico, mas o filme de Vinagre e Carneiro acaba por exercer um importante contraponto, já que no polo da extrema direita insiste-se em conjugar uma transcendência bastante diferente. Uma transcendência também pornográfica, mas com o imaginário de um pau divino, que a todos ordena, conclama e suscita prazeres indizíveis, tal como um bizarro Leviatã, esse Deus mortal, a ordeiramente conduzir seu rebanho de um estado de natureza, da guerra de todos contra todos, para uma civilização essencialmente pornográfica.
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Aparentemente, pornografia e cinismo soam como fenômenos totalmente contrários, antitéticos e inconciliáveis. Tudo que se vê na pornografia é direto, explícito, franco, grotesco. Não há sombras, charmes, desejos subentendidos e nem a preocupação em se obter frestas para a imaginação. O cinismo, por outro lado, é marcado pela dissimulação. Puro jogo, constante máscara, um dizer que alude a outra intenção, sempre camuflada, abscôndita, cercada de mentiras vis por todos os lados. À pornografia caberia tudo aquilo que é obsceno e explícito. Ao cinismo, haveria ainda, diante de certa ética, fulgores eróticos a permeá-lo numa aura clássica, nostálgica, ideal. Mas e se o cinismo perdesse todos os pudores possíveis e imagináveis?
Num olhar mais atento, contudo, perceberemos como há uma certa política do gozo que aproxima pornografia e cinismo bem mais do que supúnhamos. Refiro-me, primeiramente, ao gozo dos atores pornográficos, à sua deliberada dissimulação. E dos atores, friso, num plural importante. Ao ator homem cabe simular uma ereção verdadeira, bombada no sangue a ritmo de Viagra. À atriz, por outro lado, espera-se o emular dos gestos e dos sons caros a um orgasmo impossível. Como se o gozo fosse o ápice não do ato sexual, em si, o qual é desprovido de verdade, de desejo e tesão, mas da sua atuação. É uma performance duplicada, no qual o gozo estético ocorre diante da boa performance, da boa dissimulação do gozo sexual. Os corpos pornográficos precisam afastar-se dos seus desejos mais caros para tocar o desejo dos espectadores – é nessa ampla dissimulação que ocorre uma ponte entre os atores e o seu público. Primeiramente teatral – e, portanto, de fato audiovisual, o cinismo ali revela-se como uma linguagem de conexão de pulsões corporais. É preciso dissimular o tremor dos corpos, o seu fervor, o seu torpor, repetir os mesmos dizeres de um amplo repertório e imaginário pornográfico para que o cínico gozo da cena transforme-se num espetáculo do gozo.
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Como, no entanto, esse ethos pornográfico combina-se a uma nova retórica político-audiovisual? Poderíamos, é claro, evocar aqui as teias mais obscuras que envolvem o método da chamada Cambridge Analytica, e a venda de gostos, preferências, as palavras-chaves que circundam as bolhas inerentes das redes sociais desse novo enxame humano. Que há uma forma de manipulação, já não há dúvida. Mas como esse incipiente manejo de indução por ações sociais impele a uma ética e estética essencialmente pornográfica – isso, ao menos por enquanto, ainda soa mais como uma hipótese e um enigma ainda insondável.
Há, no âmago das pulsões pornográficas e audiovisuais que circulam pela internet, mais movimentos característicos da Cambridge Analytica do que seu supõe. O que vem ocorrendo é justamente uma peculiar forma de captura e – por que não? – do hackeamento de um imaginário, de um desejo, essencialmente individual e social, que se descortina de forma ímpar e aponta para uma pletora de (perigosos) caminhos possíveis. A força reveladora desses perfis pornográficos está na forma como ele pode moldar um mundo unicamente pautado pelos desejos, como se descortinasse o paraíso dum princípio do prazer sem fronteiras, barreiras e limites. Esse mundo, contudo, é a simulação de uma sincera dissimulação, e aponta para outros desdobramentos políticos, sensoriais, materiais e econômicos. De forma pornográfica, hoje, nunca fomos tão submissos aos nossos desejos, os quais acabam habilmente manipulados por algoritmos invisíveis.
E se a inteligência artificial começasse a tomar gosto pela dissimulação? Constata-se, primeiramente, que o próprio exercício mental do “teste de Turing” aponta para um desdobramento claramente mimético; ou seja, ele acena para uma imitação dos feitos humanos e, na dobra com o pós-humano, imita nossos feitos, nossos imaginários, ora aprimorando-os ora nos espelhando nele. Ápice, auge e cume do empreendimento mimético que tanto caracteriza a artes e a filosofia ocidentais, a inteligência artificial também inverte a sua problemática. E se a criatura passasse a mentir? Se aprendesse e reproduzisse não apenas as virtudes humanas, mas também as suas mazelas?
Que o cinismo seja uma tônica da política moderna não é uma novidade. Peter Sloterdijk foi um dos filósofos mais dedicados à análise da política como uma razão cínica. Extremamente atual, o seu diagnóstico, no entanto, revela-se mais coadunado a instituições clássicas da modernidade – como o clero, os militares, a mídia “tradicional” e mesmo a política que possui a atuação (e a mínima preservação) de uma “esfera pública” como uma das suas preocupações singularizadoras. Na era das novas mídias, é justamente a esfera pública que desfalece, que se desmancha no ar. Não por acaso, a pornografia rouba o púlpito. Por isso, o obsceno – como, etimologicamente, aquilo que estaria fora da cena – toma de assalto o palco das ações políticas. Quando o obsceno naturaliza-se, banaliza-se, perde a distância da diferença e da alteridade, parece que voltamos às sequências de Saló ou Os 120 Dias de Sodoma; ou seja, quando a cena pública abarca o palco de perversões e supressões das vozes dissonantes o que temos é a emergência de um modo pornográfico, o qual dissimula-se como apenas franco para, de forma retórica e afetivamente persuasiva, escamotear outras intenções, que tendem a ser vis, que se inclinam a quedar escamoteadas, à penumbra das perturbações pornográficas.
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No dia 08 de março de 2019, no Brasil, um sujeito vestido de Presidente decide fazer um pronunciamento sobre o número de (somente duas) mulheres ministras, num ministério que é composto por outros vinte homens. Com um sorriso sarcástico, Jair Bolsonaro diz que cada ministra equivale a dez homens. A cena, na sua linguagem audiovisual, também chama a atenção pelo fato dessas duas mulheres citadas estarem sentadas ao seu lado. Caladas, obedientes, conformadas, respeitando a hierarquia e a ouvir uma piada de mau gosto. A sequência é eloquente na sua paradoxal pornografia, ora transparente, ora escamoteada. O cinismo escorre pelo canto da boca de Bolsonaro. Ele se sente à vontade para fazer essa esdrúxula conta matemática e, mesmo que em algum momento ouça as duas mulheres naquele dia, soa tranquilo, seguro, ao colocar os sujeitos e corpos no seu “devido lugar”. Ele simula sua ereção, sua dominação, seu masoquismo político. Elas, sádicas, talvez vestissem a (in)cômoda máscara de um (im)possível gozo.
Essa sequência, é necessário lembrar, ocorreu num dia que seria para celebrar, de diversas formas, o protagonismo político das mulheres. Ela, contudo, revela-se de um evidente cinismo pornográfico. A pornografia, ali, não é um adjetivo, mas um modo de comunicação, desprovido de qualquer pudor. Mais do que isso, ela traduz uma linguagem de cena que, paulatinamente, transforma-se em dominante e de tão presente torna-se quase imperceptível. Uma linguagem que se ameaça escatológica para se fiar num código pornográfico, cuja gramática sensível e audiovisual já é bem dominada, consumida e conhecida. Uma linguagem que não dá brechas para esclarecimentos, retóricas, contradições, debates e mesmo a convivência com uma esfera pública. A pornografia esmera-se em ser um verbo de mão única. Ela dispensa compaixões. Ao contrário, ela se refestela de prazeres ao olhar a dor do outro, ao re-encenar uma submissão de sujeitos tidos, pelos atores masculinos em cena, como naturalmente subalternos. Enquanto qualquer oposição não encontrar furos nessa linguagem continuaremos tal como estamos, mero espectadores passíveis, infantis e espantados diante de um espetáculo para adultos que julgamos abjeto, mas que pouco-a-pouco torna-se tão banal quanto natural.
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