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Adiante

A relação entre corpo e linguagem é da natureza do tato. Um corpo tateia no mundo as matérias linguísticas buscando moldar um espaço para si. O mesmo pode acontecer ao contrário: a linguagem, também, toca nossos corpos delimitando, nele, determinadas formas. Essas formas distintas, vez ou outra, acabam por se esbarrar gerando uma fricção entre uma obra que envelhece com enorme rapidez, sem nunca assumir sua validade – a muito expirada –, insistindo em forjar a roupagem do novo (mas, justamente, um conceito de “novo” filiado a gênese ocidental como mitos e tragédias gregas) e outras que gritam, tocam tambores, cospem na lente da câmera, friccionam os limites do tempo e da linguagem fazendo com que os corpos acomodados na plateia se movam – de uma forma, qualquer, como, simplesmente, lidar com o incômodo que fica ressoando nos corpos. Momentos como na abertura, como os afetos criados a partir de filmes como Vaga Carne, Noir Blue, Negrum3, Ilha e Vermelha, que levam o tema “Corpos Adiante” ao extremo do furor, principalmente, devido ao contraste entre essas obras, que ardem pela urgência dos tempos presentes e futuros, com outras mais apegados a formas mais rígidas. Como é o caso da disparidade entre as sessões da terça-feira (22 de janeiro), ao assistirmos Trágicas, de Aída Marques, um filme egocêntrico, que busca todo o rebuscamento e pompa linguística, cobrindo-se de enquadramentos agressivos, cortes enaltecendo a trágica grega em comparação a realidades de “tragédias” – sérios problemas com essa palavra –, de mulheres que vivenciaram a ditadura militar, mulheres negras periféricas que perderam seus filhos devido a violência policial e mulheres que sofreram agressões e abusos domésticos. E, após a asfixiante experiência, do filme mencionado anteriormente, surge Tremor Iê, de Elena Meirelles e Lívia de Paiva, com todo seu frescor ao conceber a linguagem enquanto um corpo jovem e flexível, esbanjando vigor e vivacidade, transformando-se em um respiro vital.

Tremor Iê é um filme solitário, ao mesmo tempo que coletivo. Sua ficção passa-se em um tempo distópico – que na verdade acontece agora – quando instaura-se um golpe político (familiar não?), que controla, detém e violenta. Um governo onde já não mais existe a polícia militar mas “soldados de bem”, armados, quase inumanos e embranquecidos da cabeça aos pés. Perante a essa realidade Janaína encontra suas companheiras, para conversar, acarinhar-lhes os cabelos, unirem-se, relembrar o que passaram e, dessa forma, reencontrar suas outras companheiras detidas, comer, dormir… coisas a princípio simples, se não fossem justamente nesses momentos em que estabelecem-se, quase como um ritual, uma espécie de cura e auto-cuidado essencial para se reerguer. De fato, a premissa do filme é simples: mulheres amando-se e unindo-se para retraçar forças, para que assim torne-se possível invadirem o estreito da muralha, o concreto das instituições, roubar-lhes os fósseis e fantasmas e jogar pedras nos soldados de bem que, de bom grado, vigiam a escuridão para que dela nada possa surgir. E a ficção, realmente, caminha para isso, quando elas se unem, para roubar os restos mortais do Marechal Castelo Branco (ex-ditador, o primeiro durante a Ditadura Militar no Brasil) do Palácio da Abolição (como, também, disse Carol Almeida no debate sobre o filme: os nomes já dizem tudo).

O filme constitui-se a partir de uma estrutura flutuante (sem, no entanto, tornar-se de natureza fraca ou leviana) que bamboleia entre a luz e a escuridão, entre a memória, o sonho e o pesadelo, entre a melancolia e a jovialidade, entre os espaços abstratos “invisíveis” e a densidade das estruturas “concretas”. Como acontece, por exemplo, com o som do canto e a batida do tambor, que de tanta vibração entranha-se em nossos ouvidos balançando, ativando e abalando todas as estruturas físicas. Ou como na longa sequência da conversa de duas amigas, que relembram seu passado recente, nas manifestações de 2013, em frente à fogueira. A luz dourada e vermelha do fogo reflete em seus rostos. Seus olhos completamente mergulhados nas chamas e nas lembranças. Suas vozes soltam as palavras como-se o passado estivesse ali, novamente, a erguer-se. A luz não é fixa, titubeando entre diferentes intensidades luminosas e a escuridão (que também não é constante e determinante). E diante dessa situação, a câmera escuta. Fica ali, junto, não teme a duração do plano-sequência. Estar ali faz-se muito mais importante. Escuta a primeira fala, por inteiro. Somente então, abandona aquela imagem e segue para a companheira ao lado. A câmera permite se perder e adentrar as expressões que vagam longe, ao reconectarem-se com a euforia, medo, violência e força vividas no momento anterior – que parece ser tão distante quanto recente. Algo simples (e tão potente) quanto escutar, esse é o gesto do filme, que transforma-se também em uma forma de resistir. A partir disso, Tremor Iê parece escancarar que, para o surgimento de uma política adiante, é necessário, também, ritmo, tempo e escolhas que busquem filiar-se a estruturas não-normativas, não-fálicas, não-colonizadas e não-dominadas, uma questão, inclusive, levantada pela crítica Carol Almeida durante o bate-papo sobre o filme, na manhã seguinte, a partir do questionamento: “Como criar com um imaginário dominado?”. E o filme busca essa resposta a partir da criação de uma outra noção de tempo, onde existe espaço para o ócio e o repouso, pois é ali que torna-se possível o surgimento de uma dinâmica do cuidado e dos afetos, como ocorre nas diversas cenas em que as mulheres passam seu tempo deitadas no quintal de casa em silêncio ou compartilhando recordações. Ou ainda na forma em que os corpos habitam os espaços: onde há mais natureza, eles parecem sumir, se fundem às sombras das árvores, ao escuro da mata, a luz do quintal. Já nos espaços urbanos noturnos – sempre à noite, sempre com as ruas desertas – seus corpos impõem presença, um gesto de muita transgressão, pois uma rua deserta à noite representa a impossibilidade da ocupação de um corpo feminino, pois este ali está sempre ameaçado. E as personagens do filme ao invés de aceitar essa imposição patriarcal de risco, afrontam-no ocupando as ruas, andando de bicicleta com suas companheiras, levando uma a outra em casa, e jogando pedras nos símbolos de controle governamental. Para além disso, Tremor Iê recria o peso do discurso (e sua lógica tão fálica): as personagens passam a maior parte do tempo em silêncio. Quando não o silêncio, somente existe espaço para o diálogo, para a escuta, para ação ou então para o canto – pelo qual elas invocam suas forças. Acompanhado disso, o filme também ousa em algumas escolhas estéticas como o uso de uma fotografia oscilante, inconstante e extremamente contrastada a todo momento, criando cenas de quase abstração em meio à narrativa.

Tremor Iê pode ainda não ser um caminho, mas, com certeza é um apontamento e um primeiro passo. Um filme que perde-se em seu desejo, mas, independentemente disso, serve como um vagalume – sobrevivente – iluminando a escuridão fascista do momento atual. Uma luz que, conscientemente ou não, é símbolo de resistência e que busca continuar sobrevivendo e iluminando, ao menos, a possibilidade de outro(s) caminho(s), mesmo que a poluição visual seja tão forte a ponto de ofuscar o brilho desses corpos, eles continuam ali, vivos. Uma política que não anula o outro, uma política onde no encontro que se faz o ápice da revolução, uma outra política onde o grito é canto que estremece as bases das estruturas normativas. Uma política antirracista, feminista e lgbt+, filiada a forças que partem de corpos, existências e olhares dedicados, não a prepotência e a utopia genocida do “novo”, mas sim, no gesto do adiante. Um movimento ativo no mundo que busca transformar o passo em expansão, ao invés de querer sustentar estacas brancas de mármore, que existem sob o delírio da segurança, ameaçando, golpeando e matando (literalmente) quem recusa dispor seus ombros sob o peso que esmaga outros corpos (somente determinados corpos, vale dizer). Uma política, um cinema e uma série de gestos que mesmo aparentando serem pequenos estão ali, sobrevivendo e, por isso, resistindo.


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