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Afetos “in natura”

Os primeiros planos do filme espanhol O Que Arde (título em galego) mostram as árvores de uma floresta por ângulos e iluminações quase sobrenaturais, acompanhados de uma trilha sonora que aumenta a estranheza até o momento em que as árvores começam a ganhar movimento de forma ainda mais inexplicável – leva um tempo de contemplação até o filme revelar os tratores que estão derrubando uma série de árvores, numa ação de limpeza de terreno. Já no filme brasileiro Sem Seu Sangue, os primeiros planos mostram um noturno oceano remexido por ondas no qual uma figura humana penetra enquanto uma voz off fala das razões próprias do coração, que desafiam a lógica. São começos significativos para dois filmes em que, por vias estéticas diferentes, os diretores (o espanhol Oliver Laxe e a brasileira Alice Furtado) inserem seus personagens em relação direta com um entorno marcado de forma decisiva pela abundância da natureza, enquanto vivenciam momentos opostos da vida: no primeiro, a velhice; no segundo, a descoberta (e perda) de um primeiro amor. Em ambos, o ser humano parece retornar à sua condição de animal sujeito não apenas aos seus sentimentos e instintos básicos mas, inclusive, à relação com os outros animais e o meio ambiente todo que os cerca.

O Que Arde escolhe como caminho algo que os dois filmes anteriores de Laxe (Todos Vós Sodes Capitáns (2010) e Mimosas (2016), ambos também exibidos em Cannes) já deixava antever como o modus operandi do diretor: uma imersão muito próxima a atores não profissionais, os quais aos poucos vão dando as tintas ficcionais de uma exploração de ambientes naturais extremamente marcantes. Aqui, se trata de acompanhar o momento em que Amador, um homem que entra nos seus anos de velhice, volta para a casa isolada no campo que divide com a mãe (ela sim, em idade muito avançada) após ser liberado de dois anos na prisão pelo crime de piromania, que havia causado um imenso incêndio na região em que vivem (e intuímos então que as árvores derrubadas da primeira cena são uma medida de precaução da abertura de clareiras para não haver propagação de outros fogos enormes). Acompanhamos com uma filmagem muito atenta o cotidiano do relacionamento daqueles dois seres, dos quais conseguimos extrair aos poucos uma dinâmica silenciosa que nos faz inferir muito do que nunca será dito sobre essa relação. Ao mesmo tempo, vemos a maneira como lidam com seus animais, especialmente um pequeno grupo de vacas de que cuidam, e como Amador tenta se reintegrar na vida do pequeno vilarejo próximo, onde todos parecem trata-lo com muita reticência dados os acontecimentos que o levaram à cadeia.

Trata-se de um filme que transita pela enorme quietude dos pequenos momentos na troca entre pessoas, e entre as mesmas e a natureza, nos impondo não apenas um tempo de existência naquele espaço, como ainda uma série de códigos quase secretos que regem essas vidas – além de uma percepção do peso que Amador sente pela frustração dessa vida pequena que se aproxima do capítulo final sem ter uma outra interlocução que não com a mãe. Não é nada desprezível a maneira como Laxe e sua câmera (e sons, num desenho sempre extremamente cuidadoso) ao mesmo tempo que parecem se integrar ao espaço vão construindo uma narrativa que, não sem alguma surpresa e enorme fascínio, se dirige rumo a um capítulo final onde a exuberância da natureza (e de sua destruição) transformam o filme num espetáculo visual absurdo para, ao final, refletir sobre a maneira como carregamos nossas experiências (e especialmente nossos erros) pelo resto das nossas vidas.

Se o filme de Alice Furtado está no espectro contrário da vida humana (as descobertas da adolescência), não é tão distinta a maneira como ela busca encontrar com sua câmera (e, de novo, desenho sonoro) as maneiras de capturar sensorialmente a maneira como as experiências vividas são marcadas nos corpos e nas psiquês. De novo, a escolha da natureza como lugar onde se passam cenas decisivas como, por exemplo, a da primeira transa do casal principal não parece nada aleatória – ainda mais quando o filme evolui para o seu segundo movimento, em que a família da protagonista decide sair da cidade e ir para uma casa em Paraty onde o filme se permite explorar de forma ainda mais radical espaços como o das matas, do mar, da praia. Nas várias ferramentas que o filme busca utilizar para criar uma adesão do espectador para a percepção subjetiva e doentia (no sentido mesmo de doença, conforme o título em inglês Sick Sick Sick indica), a relação com a natureza é uma das mais importantes.

Isso se radicaliza no momento em que, a partir de elementos externos como programas vistos na TV, uma pesquisa acerca da magia praticada em comunidades haitianas ou ainda a visita a um artista estrangeiro que mora isolado na localidade, o filme vai externando cada vez mais os estados de alma da personagem, embarcando num abraço gradual mas incontornável de aspectos próximos ao sobrenatural. Se parece verdade que nem sempre essa parte final encontra o encadeamento mais forte entre esses elementos bastante fascinantes, e perdemos aqui e ali um pouco do contato com a experiência mais física da personagem que atravessa o primeiro movimento até o acontecimento fatal que altera a dinâmica do filme. No entanto, a maneira como ela busca incorporar elementos díspares de forma absolutamente cinematográfica para tentar irmanar sentimentos de personagem e espectador conseguem manter o tempo todo uma curiosidade ativa.

É justamente o que nem sempre acontece em Frankie, novo filme do americano Ira Sachs e o primeiro a ser exibido em competição em Cannes. Assim como nos dois filmes anteriores, um espaço de natureza (e arquitetura) exuberante será decisivo para o filme, que se passa todo em um dia na cidade de Sintra, nas montanhas portuguesas. Trata-se de uma pequena peça de câmara, de exploração dos vários dilemas amorosos e afetivos de vários personagens que transitam ao redor da atriz Frankie (Isabelle Huppert) que descobriu que provavelmente não tem mais muito tempo de vida pela frente. Assim como em Sem Seu Sangue, portanto, o espectro da morte paira por todo o filme – ainda que aqui seja a morte como certeza futura próxima e não como acontecimento fatal passado.

Sachs tem como interesse principal criar uma fauna humana que permite explorar quase todo o espectro das relações amorosas, da despedida entre parceiros de longo tempo às crises matrimoniais de casamentos longos ou recém “pedidos” até mesmo chegando no primeiro beijo de uma adolescente. Esse desejo de “tudo mostrar” é ao mesmo tempo o que o filme tem de mais interessante (passando de uma cena para outra), mas também o que dá a ele um sentimento bastante derivativo, uma vez que nenhuma das histórias parece realmente explorar campos inesperados frente a tudo que já vimos de cada uma dessas fases das relações na história do cinema. Sachs sem dúvida estudou muito dos filmes “de férias” de Éric Rohmer, e busca reproduzir em algum grau aquele ambiente de lento mergulho na profundidade do humano pela observação dos pequenos momentos e da construção de diálogos cotidianos que desvelam muito da alma. Mas tudo o que ele consegue é comprovar como a arte de Rohmer é quase impossível de replicar. Seu filme fica na superfície, como uma visita de um dia a uma linda locação. Consegue, sim, eventuais momentos luminosos de seus atores, ou pequenas ideias dramáticas fortes – mas, no geral, soa como um passeio sem maior dedicação por esse campo profícuo mas tão delicado.


Eduardo Valente é cineasta, crítico e curador de cinema. Dirigiu quatro filmes, foi editor das revistas de crítica Contracampo (1998-2005) e Cinética (2006-2011). Entre 2011 e 2016 trabalhou como Assessor Internacional da ANCINE. Fundador da Semana dos Realizadores (2009), foi programador para vários festivais do Brasil. Atualmente é parte da equipe de curadoria do Olhar de Cinema e delegado para o Brasil do Festival de Berlim.


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