As Quatro Voltas (Le Quattro Volte), de Michelangelo Frammartino (Itália/Alemanha/Suíça, 2010)

abril 8, 2013 em Em Cartaz, Fábio Andrade

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Meta-existência
por Fábio Andrade

As Quatro Voltas, de Michelangelo Frammartino, começa como um típico filme de observação. Após alguns planos aparentemente gratuitos de uma carvoaria artesanal, passamos a acompanhar a vida de um senhor sem nome (Giuseppe Fuda) que trabalha como pastor de cabras em uma cidade montanhosa que sugere o interior da Itália. Essa observação é organizada de forma modular, constatando a rotina do pastor na passagem dos dias, usando planos específicos que se repetem e que são captados de um ponto de vista “neutro”, como se assumissem os olhos da parede de uma casa, da curva de uma estrada, de uma cômoda em um quarto. Em vez de a câmera ser colocada em função da ação específica de cada dia, os enquadramentos são mantidos impassíveis, criando uma impressão de olhar dessensibilizado, inanimado, científico – aquilo que Kiju Yoshida chamou, em seu livro sobre Yasujiro Ozu, de “o olhar do travesseiro inflável”: os humanos são vistos pelos objetos, não o contrário. Não é uma estratégia propriamente nova – vemos a base disso em um filme como O Balão Vermelho, de Albert Lamorisse, e as reveberações no cinema de Elia Suleiman ou de José Luis Guerin, em algumas passagens de Na Cidade de Sylvia. O homem leva as cabras para pastar, transita pelas vielas estreitas de seu povoado até chegar em casa, e, antes de dormir, abre um envelope feito com uma página de revista onde está guardado um punhado de poeira varrida do chão da igreja, que o homem toma misturado a água, na esperança de curar a tosse. Isso se repete por alguns dias, e a câmera de Michelangelo Frammartino se mantém “isenta”, estabelecendo uma rotina que ainda não temos certeza de porque estamos acompanhando.

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Esta breve descrição talvez fosse suficiente para que se jogasse, precipitadamente, o filme em uma gaveta já hiper-lotada do cinema contemporâneo, ainda hoje um atalho fácil em busca da pronta legitimação. A arte, porém, é espaço do extraordinário, e mesmo os melhores artistas que transformaram a rotina, o cotidiano e a banalidade em grande arte só o fizeram justamente por extraírem um caráter excepcional do que há de mais mundano. Em As Quatro Voltas, sem dúvidas um filme nada comum (embora supremamente mundano), começamos com a rotina, mas, apesar de extremamente bem filmada, ela se justifica de fato como alvo do interesse do cinema quando apresenta uma falha, uma quebra que irá perturbar a normalidade, transformando o ordinário (um velho sem nome) em extraordinário (um protagonista): após o homem fazer uma pausa no trabalho para cagar no mato, a câmera se emancipa do protagonista para mostrar, em detalhe, um envelope feito de página de revista – como aqueles onde ele guardara a poeira de igreja nos dias anteriores – caído no chão, provavelmente após escorregar do bolso de sua calça.

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O que Michelangelo Frammartino dá partida com esta cena é um pequeno estudo auto-evidente da dramaturgia no cinema. Uma vez interrompida a rotina, a máquina de dramaturgia é colocada em funcionamento, e o filme parece subir em uma esteira de supostos acasos e acontecimentos que, plenamente orquestrados, se transformam e obrigam o próprio filme a seguir o curso dos acontecimentos. As Quatro Voltas trocará a observação por uma exímia articulação de “acasos”, tecendo uma rede de causa-consequência que tem como marco central a impressionante sequência da procissão, em que os desejos arbitrários de um cão tiram o filme de sua estabilidade científica e geram uma série de acontecimentos que, rodados em plano-sequência, são orquestrados com o mesmo detalhismo milimétrico dos planos-espetáculos de Antonioni ou Angelopoulos, forçando a câmera a girar em panorâmicas para acompanhar a ação, para seguir o extraordinário que se manifesta no ordinário. Se antes tínhamos a observação como tentativa de dar a ver a coreografia essencial da vida, ela se manifesta de fato quando o cinema se liberta do dever de olhar e assume a responsabilidade de mostrar.

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As Quatro Voltas, nesse sentido, é como um documentário, mas o documentário mais escrito da história; na verdade, um documentário sobre a própria escrita cinematográfica. O tema do filme, aos poucos perceberemos, não é a vida do velho, mas sim o que faz com que este homem (ou esta cabra; ou esta árvore) seja eleito protagonista do filme. Proto – primeiro, principal – e Agon – luta, combate. O que se move, em As Quatro Voltas, é esta entidade, o “protagonismo”, capaz de reencarnar de um velho morto para uma cabra recém-nascida no ínterim de um artifício: uma tela preta que vem com a escuridão do túmulo onde somos fechado juntos ao velho, habitada pelo batimento de um coração.

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Com a tela preta, atingimos o grau zero da visão; podemos, então, retornar para o começo. Como em L’Argent, de Robert Bresson, o protagonista de As Quatro Voltas não é este ou aquele personagem, mas sim algo que passa de mão em mão (no filme de Bresson, o dinheiro), fixado em transitoriedade, como agente propulsor que transforma as vidas que encontra pelo caminho. A diferença é que a moeda, em As Quatro Voltas, é o próprio protagonismo. O que passa a ser registrado, portanto, são os efeitos desse protagonismo, dessa vida que passa “de mão em mão”, em anamorfose feito límpida pela presença da câmera e a ordenação do drama (roteiro e montagem). Cada ritual – e As Quatro Voltas não é outra coisa senão uma coleção de rituais, sejam eles deliberados ou frutos fortuitos do acaso – carrega todas as ações que lhe foram anteriores no próprio filme, a ponto de, quando a árvore é derrubada do centro da praça, nos chamar a atenção a presença de um cachorro que, embora cachorro, não mais se pareça (pelas manchas que traz no pelo) com o cachorro que libertou as cabras e “matou” o velho, mas sim com a pequena cabra na qual o velho reencarna. Cada ritual traz, em si, a impressão de todos os rituais (as cenas) que o precederam… e haverá, por acaso, noção mais precisa de o que é, de fato, um “ritual”? E há, ao mesmo tempo, definição mais precisa para “narrativa”?

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Em As Quatro Voltas, é preciso levar o cinema ao aparente paroxismo – a ausência completa de drama; o momento em que o cinema se torna igual à vida – para restaurar a possibilidade de drama, a possibilidade de cinema. Com isso, Michelangelo Frammartino toma o caminho mais distante possível para, ao fim, se aproximar, feito irmãos, de Five, de Abbas Kiarostami: toda cena recortada do mundo é regida por uma ordem dramatúrgica (ou melhor, por uma desordem que o homem interpreta de maneira seletiva como ordem – cultura, enfim) que suscita e cria protagonismos, arcos dramáticos, climas e modulações, mesmo em uma construção tão mínima quanto um pequeno galho de árvore sendo movido pelas ondas do mar. Nasce, com isso, uma impressão de sublime, pela manifestação na natureza da orquestração (por Deus ou por um diretor de cinema) de seus mínimos detalhes.

Mas toda essa orquestração, essas relações tão intimamente determinadas por causas e efeitos, incorpora um grande dado do acaso: um envelope com poeira de igreja caído de um bolso; uma cabra desgarrada; uma árvore escolhida no meio do floresta; uma chaminé em meio a tantas outras, que se destaca pelo ranger de uma parte de metal que é movida pelo vento. Mas da deliberação destes acasos, fica a certeza de que, se a chaminé foi em algum momento escolhida como “primeira”, como “principal”, é certo que a fumaça do carvão, da madeira, da cabra, do velho, da vida e da cultura terminará passando por ela. E o que é essa fumaça senão a representação do próprio “protagonismo”, dessa matéria invisível que passava de corpo em corpo ao longo de todo o filme e que pode, por fim, se espalhar e cobrir toda uma cidade cujas vielas, igrejas, altos e baixos nós conhecemos apenas por meio de um filme? E o que pode este protagonismo a não ser virar fumaça com a chegada dos créditos finais?

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