cannes-dia-7-cabecalho

Não vai ficar tudo bem

De várias maneiras, um sentimento bastante difuso, mas onipresente, de que “as coisas não vão bem” atravessa a seleção desse ano em Cannes, como não poderia deixar de ser frente ao mundo em que vivemos hoje. No entanto, nos últimos dias, três filmes se colocaram de maneira bem mais frontal com relação a esse sentimento genérico e encontraram formas diferentes de traçar um panorama bastante duro desse contexto mundial – certamente não por acaso todos os três de alguma maneira incorporando elementos de um certo cinema fantástico ou de gênero, entendendo que possivelmente o realismo não dê conta de registrar o que é muito mais um sentimento do que uma descrição.

Na competição, quem apresentou sua visão dura sobre as relações humanas e de classe no mundo atual foi o coreano Bong Joon-ho, que sempre teve não só um interesse muito radical por uma ampla ideia do que pode ser o cinema de gênero como também um hábito de compor suas ficções insanas seja a partir do conflito direto entre as classes, seja por uma necessidade bastante precisa de localizar os espaços que cada um ocupa nesse tabuleiro social. Em seu novo Parasite, Bong vai jogar com os códigos de gênero de maneira muito menos direta, aumentando as tintas do seu humor bastante peculiar e seu sentido do drama, sem deixar de lado a violência inerente à gestão das diferenças sociais. O que chama a atenção aqui, particularmente no começo, é uma descrição muito precisa e detalhada de um contexto social-geográfico onde se inserem as personagens – com um cuidado especial para aspectos da arquitetura dos domicílios, mas também das cidades.

De fato, trata-se de um filme que encontra diálogo profícuo, ainda que por caminhos bem diferentes em termos de estrutura, com o segundo filme de Jordan Peele, Nós. Em ambos vemos o desnudamento das estruturas familiares tradicionais a partir de processos de espelhamento que colocam em risco as mais básicas noções confortáveis não só desses laços (pais/filhos, casamento, etc), mas principalmente do tecido social como um todo. Se ambos os filmes demonstram da parte dos diretores um cuidado muito grande com a ideia de composição de quadro (aí entendido não só a partir dos enquadramentos, mas inclusive da estruturação dos espaços onde circulam os personagens), o gosto de Bong pelo ridículo, pelo patético, pelo sujo vai a lugares diferentes da visão mais cínica e alegórica de Peele. Bong é, por assim dizer, ao mesmo tempo mais direto (como na imagem da filha sentada numa privada que periga explodir com o esgoto em meio a uma tempestade) e mais empático, no sentido de buscar criar um ambiente genérico de pessoas se comportando muito mal simplesmente por não enxergarem sentido no papel que  lhes foi determinado viver.

Nos dois casos, talvez o mais interessante seja a maneira como o filme vai reconfigurando a ideia de protagonista/antagonista, pedindo do espectador que saia frequentemente de qualquer lugar de conforto. São, em suma, dois cineastas que tomam o risco de, trabalhando sob orçamentos consideráveis e muitas expectativas comerciais de seus financiadores, realizar obras não apenas idiossincráticas de uma visão artística e de mundo no sentido bem amplo, mas inclusive de fazer filmes que afrontam de maneira muito direta a tranquilidade do que é o bom gosto, mesmo no campo do cinema de gênero. Dois filmes, em última instância, que impõem um avanço nas fronteiras da maneira como esse cinema “comercial de autor” pode ser usado para criar e expor um mal-estar bem mais amplo.

Trata-se de algo bem distinto dos dilemas e dos impulsos criadores de alguém como Lav Diaz, cineasta filipino que radicaliza desde sempre a ideia de produção independente, fazendo sempre suas obras sem qualquer apoio financeiro mais substancial e com equipes mínimas (ele mesmo sempre assume pelo menos quatro ou cinco funções) – e que também por isso sente-se plenamente à vontade não apenas de impor suas durações bastante incomuns de tempo de filme como sua visão ao mesmo tempo épica e bastante naturalista de capturar o mundo.

Bem entendido que o naturalismo no cinema de Lav Diaz tem menos a ver com a construção das narrativas em si (esse novo filme, Ang Hupa, por exemplo, é um filme de ficção científica distópica que se passa em 2036), e mais com a maneira como posiciona seus atores e ambientes e sua câmera frente a eles. Assim, tudo que Diaz precisa para criar esse universo futuro é uma ideia bastante simples (uma catástrofe ambiente faz com que o sol não mais se levante, e assim o filme se passa todo à noite e frequentemente sob chuvas torrenciais) e duas ou três interferências de criação (aqui, principalmente, o uso dos drones como personagens e os cartazes do presidente filipino fictício espalhados pela cidade). Todo o resto que constrói o sentimento e a existência física desse futuro se dá no campo do jogo das atuações ou da forma como a câmera captura, pelo uso do tempo mas também da movimentação em cena, um mal-estar que se radicaliza mais e mais ao longo da duração – e, como de hábito, a ideia de penetrar e passar um tempo largo nesse “universo Lav Diaz” é essencial para que passemos, aos poucos, a acreditar de maneira quase física nas regras desse mundo.

Mundo que aqui, é importante dizer, é de maneira muito direta e pouco disfarçada uma extrapolação das Filipinas sob Duterte (a qual, conforme vemos, tem bem mais do que uma distante semelhança com o Brasil atual). Se toda ficção científica, em especial as distópicas, tendem a ser retratos distorcidos do presente, o que constrói Lav Diaz aqui é, muito mais, um espelho preciso do que enxerga como o caminho natural de continuação do que já existe nas Filipinas hoje. Nesse sentido, o filme tem um sentimento muito duro e seco de desesperança, ainda que claramente encaminhe seu final para, se certamente não uma redenção, pelo menos não um retrato apocalíptico. Mas independente de qualquer desfecho, o que fica conosco depois do mergulho de 4 horas e meia nesse mundo é o gosto amargo de uma onipresente violência e opressão, melhor resumida no que diz uma das personagens: “Eu só queria acordar e descobrir que isso tudo foi um pesadelo – mas não é”.

Caminho bem distinto para lidar com esse mal-estar contemporâneo é o escolhido pelo filme tunisiano Tlamess, na mesma Quinzena dos Realizadores em que foi exibido o filme de Diaz. De fato, pode-se falar em “caminhos” até, porque uma das coisas mais interessantes é a maneira como o filme reinventa sua narrativa duas ou três vezes, num trajeto que vai de uma composição de ficção mais clássica rumo cada vez mais ao abstrato e, mesmo, ao frontalmente alegórico. É como se o diretor Ala Eddine Slim afirmasse que esse sentimento do mal-estar e da dificuldade de relação contemporânea entre os seres não coubesse mais nos códigos do realismo – e que só através de gestos extremos (e aqui há um em especial que propõe uma espécie de comunicação não verbal como possível contato) o cinema possa se aproximar de encontrar uma expressão adequada do mesmo.

Nesse seu trajeto, o filme dialoga com uma série de cineastas essenciais do cinema contemporâneo (alguns de maneira bastante direta, como Stanley Kubrick ou Bela Tárr, passando por Elia Suleiman ou Claire Denis) como quem, na busca por sua própria voz, assume que chega depois de uma série de tentativas diferentes de nos colocar de frente com os dilemas da existência via linguagem do cinema. Nem sempre se pode dizer que suas apostas, algumas bastante arriscadas, realmente se concretizem da maneira mais completa na tela no que se refere principalmente ao entrecho dramático. Mas, inegavelmente, o filme captura de maneira bem forte nossa atenção pela inquietude constante em atingir esses lugares. Num ambiente de filmes cada vez mais formatados, Tlamless tem sua força garantida pelos riscos que toma em não escolher um só caminho confortável – espelhando assim os gestos de Bong ou Lav Diaz, em que o cineasta não pode, frente a um mundo em convulsão, deixar de se desafiar ou, principalmente, desafiar o espectador.


Eduardo Valente é cineasta, crítico e curador de cinema. Dirigiu quatro filmes, foi editor das revistas de crítica Contracampo (1998-2005) e Cinética (2006-2011). Entre 2011 e 2016 trabalhou como Assessor Internacional da ANCINE. Fundador da Semana dos Realizadores (2009), foi programador para vários festivais do Brasil. Atualmente é parte da equipe de curadoria do Olhar de Cinema e delegado para o Brasil do Festival de Berlim.


Leia também: