Entrevista com Lav Diaz

maio 5, 2014 em Em Campo, Entrevistas, Filipe Furtado

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O tempo é uma grande luta – uma conversa com Lav Diaz
por Filipe Furtado

Um dos grandes destaques da última Mostra Internacional de Cinema de São Paulo foi a retrospectiva do cineasta filipino Lav Diaz, a mais completa de seu cinema realizada até hoje e uma grande oportunidade para conferir como o cinema de Diaz é muito mais do que o fait divers da longa duração de seus filmes. Já refletimos à época sobre seu último longa Norte, o Fim da História (2013), mas, durante a Mostra, também tivemos a oportunidade de uma longa conversa com o cineasta filipino sobre história, memória e a função do cinema em mediá-las.

Cinética: Como você escolhe as locações dos seus filmes? Porque há algo muito forte nas paisagens deles. Penso por exemplo em Morte na Terra de Encantos (2007), é a opção de filmar em um lugar que devastado.

Lav Diaz: Eu sempre começo pelas locações. Isso toma um tempo, claro, mas eu preciso encontrar os lugares e senti-los, ver se posso trabalhar em torno deles e contar algumas das suas histórias. No caso de Morte na Terra de Encantos, havia a devastação causada pela grande tempestade e o super tufão, o mais forte em 50 anos no meu país. Isso praticamente ditou a locação. Eu precisava ir lá porque eu filmei dois filmes neste lugar chamado Badam e eu conhecia as pessoas que foram enterradas vivas naquela vila, todas aquelas famílias… eu as conhecia, então fui para lá. Encantos é um filme difícil de assistir, para mim. Lembro-me das pessoas, porque eu vivi ali por um ano antes do acontecido. Eu conhecia as pessoas que morreram ali. Essencialmente, são as locações que ditam o tipo de cinema que faço.

Morte na Terra de Encantos (2009), Lav Diaz

Morte na Terra de Encantos (2007), Lav Diaz

Uma das razões pelas quais eu quis te perguntar isso é que, nos seus filmes, sempre tenho a sensação de que, quando a câmera começa a filmar, algo de grande já aconteceu ali. É uma sensação presente em filmes como Encantos ou Norte.

No caso de Norte, a ideia era de filmar algo sobre este personagem raskolnikoviano que me foi dada por um amigo. Mas, quando comecei a procurar por locações no Norte das Filipinas, me veio o desejo de integrar a questão do nascimento do fascismo no meu país, porque o norte foi onde Ferdinand Marcos cresceu. Achei que seria uma boa perspectiva para o filme. Meu filme anterior, Florentina Hubaldo CTE (2012), também era basicamente sobre o fascismo.

Então foi a paisagem do norte que te deu a ideia da alegoria sobre Marcos?

Sim, o filme cresceu a partir dali. Você vê as locações e ideias começam a se desenvolver e personagens ganham vida. É um processo muito orgânico e, ao mesmo tempo, há este sentimento de conexão com o lugar que se filma e que se torna transcendente, em termos de criar uma história.

Algo que noto é que, no atual cinema filipino que me interessa (seus filmes, os de Raya Martin e de John Torres), há sempre uma questão de história e uma crise de representação neles. Você acha esta uma questão necessária para o cinema filipino hoje?

É impossível escapar disso. É sempre sobre cultura. Você não pode escapar da história, das lutas do povo que você decidiu representar. Meu cinema é todo sobre a cultura filipina e tudo que pertence a ela, logo não posso escapar da nossa história. Não posso fugir das lutas do povo e dos atributos inerentes à cultura pinoy que foi colonizada pelos ocidentais, espanhóis e americanos. Não dá para se desvencilhar disso.

Falando na sua relação com a história e com a história do cinema filipino, em Evolução de uma Família Filipina (2004) você usa Lino Brocka como personagem.

A narrativa de Evolução de uma Família Filipina é estruturada em torno de um período negro da nossa história, os dezessete anos de lei marcial sob a ditadura de Marcos, e Lino Brocka foi uma voz tão forte durante esta luta, para nos emancipar. Ele não foi só um cineasta, ele foi um herói para aquela geração, um revolucionário que se posicionou contra a ditadura. Ele lutou por nós, lutou pelo país, e nos deu uma voz. Foi uma homenagem a ele, uma saudação que fiz ao seu heroísmo não só como artista, mas também como voz cultural.

Evolução de uma Família Filipina (2009), Lav Diaz

Evolução de uma Família Filipina (2004), Lav Diaz

Você levou dez anos para filmar Evolução. Como um processo como este funciona? Pergunto porque, em um período longo como este, é claro que você muda, as Filipinas mudam e até o processo cinematográfico muda.

O que acontece é que o cinema é como a memória. O cinema contém a nossa memória. Então estes dez anos que se passaram são como dez anos de memórias gravadas, dez anos de eventos gravados. Então, no momento em que eu estava assistindo a todo aquele material imenso e vasto que rodamos em 16mm que é Evolução, eu sou tomado pela historia e pelas memórias… ele faz com que a realidade sobre o passado que você trabalhou e o ato de realizá-lo se transformem nesta experiência ao mesmo tempo muito real e surreal. E o material é sobre uma memória, um tempo e um espaço que agora já não existem mais. Ele tem esta dinâmica e é também dialético, porque, ao assisti-lo, você se entusiasma com ele outra vez. Você volta atrás e o confronta, todas as lutas, e não só as suas lutas… as lutas do cinema, as lutas do seu país, as lutas da humanidade.

Como você teve a ideia de mostrar a radionovela de Evolução enquanto a equipe a gravava?

Eu cresci naquela cultura. Eu cresci no meio da floresta em Mindanao e o chamado entretenimento cultural era o rádio. Era um hábito diário e só nos fins de semana íamos ao cinema. Aquela cultura é parte integral da nossa história também, aquelas novelas. Quando eu a integrei ao filme, foi como gravar uma memória novamente. Então eu queria mostrar os personagens imersos na realidade do drama através do som e depois ir até a fonte. Você está imerso na dramaturgia do rádio e então, subitamente, estamos dentro dele, e as pessoas estão atuando nele… eu queria registrar isso também. É uma questão dialética, um questionamento sobre como algo é feito e qual seu efeito. Estas conexões se tornam possíveis porque, quando observamos o drama e como ele é realizado, os artistas têm só uma sala vazia como esta, onde estamos conversando agora, e os microfones. A fisicalidade e a corporeidade são criadas por eles… eles criam as emoções. Então, de repente estamos de volta na floresta, na frente do aparelho, e as pessoas estão envolvidas naquele universo emocional. É a imensidão do tempo e espaço.

Você me mencionou outro dia que, em O Século do Nascimento (2011), você começou a trabalhar a partir da imagem das duas pessoas se encontrando na tempestade. Como este processo criativo geralmente funciona?

No caso de O Século do Nascimento, de fato comecei pelo final. Quando a ideia surge, é algo bastante súbito. Eu estava esperando por um café, era bem cedo de manhã, e estava chovendo, e estas duas pessoas tomavam café e falavam desta tempestade que chegaria no dia seguinte… e de repente eu tive a ideia desta mulher do campo, grávida, caminhando pela tempestade, e também deste artista caminhando pelo outro lado… e eu pensei: “preciso rodar esta cena”. Então, liguei para os dois atores, Perry Dizon e Hazel Orencio, e disse “vocês precisam rodar isto comigo”, e eles dizem “espere, nós vamos ao coração da tempestade?”; “sim, nós vamos filmar esta cena”. Então fomos até lá e eu coloquei a câmera no meio da tempestade e ficamos esperando e, antes de ela chegar, expliquei a eles o que queria. “Hazel, você é uma mulher louca, está andando a esmo. Você foi estuprada e terminou engravidada por este homem bêbado. E Perry, você é um artista que está perdido, tentando se recuperar, caminhando pela chuva, e você vê esta mulher louca. E nós vamos fazer um ritual, algo bem Rei Lear, e do nada haverá um renascimento”. E nós fizemos isto. Eu acho que filmei duas tomadas. Então, após rodarmos a cena, nós alugamos uma casa e comecei a trabalhar a história de trás para frente. Aí pude incorporar Woman of the Wind, que era um filme não finalizado.

Século do Nascimento (2004), Lav Diaz

O Século do Nascimento (2011), Lav Diaz

Isto é algo sobre o que também estava curioso: por que você resolveu conectá-lo a O Século do Nascimento?

Eu estava pensando: qual poderia ser o maldito problema do artista? Oh, ele não consegue terminar o filme! Então comecei a trabalhar todas as noites e achei mais maneiras de trazer aquele material para dentro do filme. Então retornei ao material de Woman of the Wind e encontrei aquele espaço vazio para criar o estúdio onde ele tenta finalizar o filme.

E você também trouxe a atriz de Woman of the Wind, Angel Aquino, para conversar com o cineasta…

Aquela conversa realmente aconteceu entre mim e a atriz.

Então foi a mesma cena?

Nós reencenamos tudo.

E ela aprovou tudo isso? Pelo que soube, ela abandonou o filme.

Sim. Ela é uma grande estrela de TV, e eu liguei para ela e disse “Angel, estou terminando o filme, mas o filme não é mais sobre você atuando, então precisamos reencenar nossas brigas durante o filme”. E ela disse “o que?”; e eu disse “é assim que vamos fazer”, e para ela estava tudo certo. Nós reencenamos tudo e foi engraçado. É claro que tirei alguns momentos mais desagradáveis… nós não queríamos reencenar os momentos em que xingamos um ao outro… é um pouco mais limpo no filme do que na vida real. Foi um pouco surreal reencenar tudo que passamos, mas acho que esse recurso permite uma compreensão maior de o que acontece.

Então você se identifica com o cineasta Homer?

Sim, ele é compósito de mim e de alguns artistas que conheço. Isto é algo que acredito, que entre artistas, ou mesmo escritores como você, nós temos alguns bloqueios… então é uma soma de nós, sobre a maneira como podemos ter dificuldades de terminar algumas coisas e duvidar se devemos continuar, até que você retorna e pensa “há algo aqui, talvez eu deva continuar trabalhando nisso”. Mesmo neste filme, houve momentos em que pensei em abandoná-lo… isso se torna um ciclo vicioso e às vezes você diz “talvez eu deva parar”. Mas toda vez que eu assistia ao material era como se um espírito me trouxesse de volta: “olhem há algo aqui e você precisa finalizá-lo”. Você retorna para uma situação com a qual você ainda se conecta emocionalmente.

Falando em cineastas, o cineasta de Batang West Side (2002) é o mesmo que faz o documentário sobre Brocka em Evolução. Como você chegou a ele?

Começou em Batang. Ele é um espirito que chegou até mim. De novo, o cinema adquire o papel da memória, das memórias gravadas. Eu tendo a acreditar que o cinema tem uma função de manter nossa memória, ou de inventar nossa memória… de reencenar tudo, porque as pessoas esquecem. Após certo ponto, nossas memórias se tornam seletivas, até não sabermos o que é verdade. Mas o cinema permanece. Nós ainda temos Charlie Chaplin, para sempre. A imagem do vagabundo é imortalizada por causa do cinema.

Batang West Side (2001), Lav Diaz

Batang West Side (2002), Lav Diaz

Como você lida com o desejo de contar histórias? Porque fala-se sempre de como seus filmes são longos, mas o que permanece comigo é o quanto eles são carregados de eventos. Tantas coisas acontecem em cada um deles.

É uma mistura de coisas, mas em geral é um processo romanesco. Um ângulo que eu cultivo é que meu tipo de cinema é como um romance, então sou livre para fazer de tudo, por isso persigo o que me aparece. Mas ele é também como poesia, então tento contextualizar minha visão de mundo. E parte da função dele é também dissecar nossa cultura, nossa perspectiva, natureza e espaço, que são coisas muito próximas de nós, ao contrário de tempo, que é um conceito ocidental. E juntar tudo isso – o romance, a poesia febril – e seguir a música, como você segue as notas, até onde elas te levarem, traz uma visão de tantas coisas, e de como nós filipinos percebemos o espaço como algo que governa nossas vidas. É por isso que cheguei a um ponto em que meu desejo é compor um quadro que incluísse tudo isso. Nós criamos uma grande tela, de forma que, apesar de ter um personagem central, ainda seja possível ver todo o quadro em perspectiva. É este tipo de principio, algo que pode ser chamado de uma filosofia de cinema.

Isto é interessante, porque existe uma qualidade literária nos seus filmes. Por exemplo, em Norte, nós seguimos cada personagem em longos blocos, em vez de cortar entre eles.

Sim, isso é bem consciente. É bem literário, como capítulos, como demarcações em que você segue personagens por períodos das suas vidas. Eu quero personagens que sejam bem preenchidos… passado certo ponto, não quero deixar nada de fora. É claro que, no cinema, quanto mais coisas você incluir, mais misteriosas elas se tornam… a complexidade da arte e dos personagens cria tal mistério. Este espaço cria questões.

Algo que gosto nos seus filmes é o quão carregado eles são de pequenos detalhes, como na cena em Batang em que o avô conta sobre como os americanos faziam ele se ajoelhar no arroz toda vez que falava tagalog. Você faz muita pesquisa?

Isto vem de ler muito história, que é uma das minhas paixões. E de ler literatura, o que é a mesma coisa. Tento pesquisar sobre o passado, sempre. Criar está sempre ligado a confrontar o passado. Eu leio muita história e muita história oral do nosso povo. Quando vou a pequenas cidades nas Filipinas, é imperativo conversar com os mais velhos, porque eles têm esta história oral que é completamente diferente da história escrita. Então podemos misturá-las. Eles falam do passado e têm perspectivas e experiências diferentes. É uma metodologia de folclore e de recuperação do passado. Então mantenho este impulso de conversar com os velhos nos barrios e nas vilas. O espirito do passado segue com estas pessoas. Então tomamos café pela manhã e falamos sobre o passado no período japonês, no período americano, no período da revolução e eles têm olhares diferentes sobre cada um deles. E você tem que ouvir, você realmente tem que ouvir. E estas coisas se revelam úteis quando estamos criando, porque você pode sempre integrar aquela história que você ouviu, você pode assimilá-las ao grande quadro. Elas adicionam contexto aos personagens.

Você falou que tempo é um conceito ocidental e eu gostaria que você elaborasse mais sobre isto.

Você tem o sol subindo pela manhã, o anoitecer… nós temos as tempestades, as muitas estações e os diferentes períodos do ano. O ocidental impõe a sua perspectiva sobre as áreas do mundo que coloniza, e assim as coisas mudam. E você tem estas diferentes partes do dia, você come três vezes por dia, todas essas coisas. Mas tempo é um conceito da totalidade da humanidade. Sua grande luta, porque estamos lutando contra o tempo, estamos lutando contra a morte. Isto é o que André Bazin disse: “morte é a vitória do tempo”. Cinema pode lutar contra isso. Você pode registrar isso e a humanidade não vai morrer porque será gravada como cinema. Bazin tem sempre razão. André Bazin, para mim, é o maior dos cineastas, mesmo que nunca tenha dirigido um filme. Ele foi um grande professor para mim. Quando eu o li, pensei, “meu deus, aqui está um verdadeiro mestre do cinema”. Ele criou todo este universo de cinema como uma questão estética. Todo desenvolvimento de tecnologia é um novo passo na direção de compreender as origens do cinema. E Bazin tem razão, porque ainda não entendemos o cinema e usamos estas novas ferramentas para tentar entender a natureza do cinema e entender a existência. Porque todo novo desenvolvimento da humanidade é um novo passo para compreender o homem e nós ainda não entendemos as origens do homem. E o cinema ainda é novo, tem pouco mais de 100 anos, e ainda há muito a ser feito por ele. Mas com certeza o cinema guarda as grandes histórias sobre a memória.

Falando sobre o ocidente, uma das questões recorrentes no seu cinema é a da diáspora filipina.

É uma parte da nossa história, por causa da pobreza. Então, nós filipinos, e também outras partes do sudeste da Ásia, nós saímos, para poder sobreviver. É um fenômeno cultural. Existem cerca de 9 milhões de filipinos trabalhando no exterior hoje. E podemos ver camadas nisso, pois esse processo cria um “progresso” econômico que é muito superficial. Só no ano passado as Filipinas receberam 17 bilhões de dólares de trabalhadores no exterior. Então há 17 bilhões de dólares vindos de fora e o país sobrevive por conta disso. Ele não sobrevive por causa do governo, porque o governo não é nada, o sistema não é nada. O que os mantêm vivos é este dinheiro que vem de fora. Mas, ao mesmo tempo, este é um progresso bem superficial e ele cria um deslocamento entre as famílias. Nós agora temos uma geração de filipinos que cresceu sem pai ou mãe e isto pode ser perigoso, porque eles não têm uma sustentação, uma base moral. A humanidade começa sempre com uma unidade familiar. Então temos agora esta nova geração e é algo perigoso, uma nova cultura, pois eles têm tudo, financeiramente, mas ao mesmo tempo sua fundação é deslocada. Fabian, meu personagem central em Norte, é um intelectual, um ideólogo, mas sua ideologia é algo muito, muito perigoso, pois ela cria este deslocamento e é disfuncional. Então temos este boom econômico que é muito perigoso. Quando a bolha estourar, será algo muito problemático.

Isto é algo que eu queria te perguntar, pois você acabou de fazer um filme sobre uma figura como Fabian, que traz à mente Ferdinando Marcos. Você sente que precisa fazer isso porque teme que a história possa se repetir?

Definitivamente ela repete a si mesma. Durante nossa revolução de 1890, o pai da revolução filipina, Andrés Bonifácio, foi assassinado por um rival e este rival é agora considerado um herói. Seu nome era Emilio Aguinaldo, ele destruiu a história, e seus parentes e apoiadores ajudaram a escrever esta nova história revisionista, e ele agora é visto também como um herói nacional. Ninguém diz que o verdadeiro herói nacional foi assassinado por este cara que agora é também tido como um herói nacional. Isso acontece novamente durante os anos Marcos, pois ele destruiu tudo que era filipino, e agora, por conta do movimento revisionista, está sendo transformado em um herói. Muita gente acredita nisso. Então as coisas se repetem, num circulo vicioso. É um fascismo em muitas cores. Os jovens políticos são muito messiânicos, e quando você os lê percebe que muitos são fascistas, que falam de novas plataformas e novas perspectivas para defender como as coisas eram melhores sob Marcos.

Isto é algo muito forte sobre Norte, porque é um filme sobre linguagem, sobre como Fabian usa seu intelecto para justificar seu ódio pelo mundo. E seus filmes têm muitos demagogos, como os traficantes de Batang West Side, que agem como se o que fizessem fosse algo heróico. O que o atrai em demagogos desta maneira?

Eles existem e permitem um grande estudo sobre o que acontece nas instituições. Como em Batang West Side, existe a diáspora – eu vivi na diáspora em New Jersey e eu andei com muitos filipinos e falei com eles. Demagogos são muito presentes entre os filipinos, porque eles acreditam que suas opiniões podem salvar o país. Em Batang West Side, o personagem de Juan Mijares é um homem real que conheci num dos bares de filipinos. Numa noite, eu estava sentado no bar e um deles disse “eu matei muitos ativistas antes nas Filipinas, eu era um espião, um agente de Marcos, e eu penetrei os estudantes ativistas, eu fingi ser um estudante e eu matei muitos deles, os brilhantes, eu matei eles”. Então ele estava lá contando histórias muito gráficas e estava muito bêbado. “E eles acreditam que se livraram de Marcos, mas não puderam me achar. Eu vim para cá e eu mudei meu rosto e eu tenho uma nova identidade agora”. E eu ali, “Jesus, este cara!”. E é verdade, muitos destes caras saíram e conseguiram construir novas vidas.

Então aquela confissão do fim do filme é algo que você ouviu.

Mas eu a inverti. Ele se torna este sujeito espiritual, confessando ao país.

Isto é algo que me parece importante, voltando à questão narrativa, porque seus filmes partem sempre de uma história simples. Batang é um mistério policial, como Norte parte de uma variação de Crime e Castigo. Mas eles normalmente vão em direção inesperadas.

Eu tenho que seguir os caminhos que se abrem. Como em Batang West Side, primeiro há uma investigação sobre um assassinato, mas depois ela se torna uma investigação sobre uma cultura, a psique do filipino se torna uma visão maior que a fisicalidade de alguém ser morto. Isto vira algo muito dialético, para que se investigar toda uma cultura. Qual o nosso problema agora? “Quem nos matou?” toma o lugar de “quem matou Hanzel?”. Quem matou a psique filipina? Eu gosto de seguir caminhos como este, eu não gosto de só manipular o espectador e manter em funcionamento os aspectos de um thriller. O mesmo é verdade sobre Fabian, pois ele começa com a ideia de Raskólnikov e depois se torna um composto de Marcos e Raskólnikov. Ele não vai buscar redenção em certo momento, mas tentar impor sua visão – que é algo muito próximo de Marcos.

Como você e Sid Lucero trabalharam em torno de Fabian? Há tanto um motivo claro para se entender o porquê de prestarem atenção nele como de perceber o quão repelente ele soa, e a linguagem corporal dele segue se transformando enquanto ele se afunda.

Sid Lucero é um ator muito inteligente. Ele começou comigo em Heremias (Book One: The Legend of the Lizard Princess), em 2005, então quando pedi a ele para se juntar a mim em Norte, oito anos haviam se passado, e ele se tornou esta pessoa madura, que já conhecia o meu processo. Então, para Norte não foi muito trabalhoso, porque ele simplesmente entrou no personagem, física e psicologicamente. Ele às vezes me perguntava algumas coisas sobre Fabian e eu as explicava a ele, e então ele trazia as falas do dia. Ele não queria ensaiar com os outros atores, queria surpreendê-los. Sid Lucero é um ator muito intenso, corajoso, perigoso. Aquela cena em que ele mata seu cachorro foi muito intensa. Eu o deixei preparar seu espaço, ele explicou qual seria sua movimentação, e só então eu lhe disse: “este é o ultimo passo da sua destruição das relações com humanidade. Depois disso, não há mais volta, suas emoções têm de aparecer”. Ele me pediu para esperar um momento, foi até a floresta, e podíamos vê-lo à distancia. Ele destruía tudo. Por quinze minutos ele fez isso, e, quando retornou, começamos a cena e todos estavam assustados, porque ele havia desaparecido por completo. Foi uma cena perigosa. Quando eu disse corta, todos foram embora e o deixaram ali, e dias depois ele ainda estava sofrendo por estar tão dentro da sua personagem.

Heremias (2005), Lav Diaz

Heremias (2005), Lav Diaz

Como você aborda as sequências violentas dos seus filmes? Eles têm alguns momentos muito fortes, mas nunca soam como se você estivesse só explorando a miséria.

Há muita preparação. Como na cena do estupro em Norte: eu quero que ele esteja lá, mas que não seja vista mais do que uma fração dele. Eu queria que os sentidos do público trabalhassem sobre ele, porque você sabe que está acontecendo. Eu não quero ser muito gráfico, quero que o público trabalhe sobre a cena, porque o público é inteligente e as ausências, as ausências poéticas, estão lá. É um plano só, eu não faço corte a corte, eu não manipulo você e falseio essa sensação… os atores têm de estar preparados, a equipe tem de estar preparada e o público tem de estar preparado. Tento me aproximar dele, me aproximar da verdade do que acontece – o som, a fisicalidade. É algo difícil de fazer, mas eu tenho que fazê-lo. É muito difícil para os atores, porque eles não estão fingindo, assim como Sid e o cachorro… é muito real no momento, e por isso é muito difícil de fazê-lo, sempre pergunto aos atores se estão dispostos a fazer ou não.

Este filme é o mais próximo que você chegou de uma adaptação de Dostoievski, mas ele sempre foi uma referência chave em seus outros filmes também. Qual a sua relação com ele?

Eu cresci lendo Dostoievski, porque meu pai tinha uma coleção da sua obra, assim como as de Tolstói e Chekov, pois era um grande fã de literatura russa. Tudo era russo, até meu nome é russo: Lavrentiy Beria que foi um dos grandes assassinos do nosso tempo. Então meu pai, subconscientemente, pôs em mim e em meus irmãos o gosto pela literatura russa. No colegial, eu não entendia realmente Dostoievski, lia-o sem processá-lo. Depois, nosso barrio foi destruído, nós perdemos tudo, e mais tarde, na universidade, eu retornei e colecionei tudo: Crime e Castigo, Os Irmãos Karamazov, Notas do Subsolo… tudo. Eu comecei a recuperá-lo e, depois, podemos dizer que fazê-lo novamente, via cinema, é uma forma de recuperar Dostoievski mais uma vez. É uma forma de recuperar o passado, aquela herança que meu pai me deixou.

É interessante que você mencione Tolstói porque, apesar das conexões entre Norte e Crime e Castigo, eu seguia pensando em O Dinheiro (1983), e Robert Bresson o adaptou de uma história de Tolstói.

Sim, Tolstói. Um dos trabalhos mais importantes para mim é claro Guerra e Paz e também seu conto Deus vê a verdade, mas espera. Fiz uma referencia a ele em Morte na Terra de Encantos e amo aquela história. É sobre redenção, não é realmente sobre Deus. É sobre a humanidade tentando redimir a si mesma, tentando ser moral num mundo imoral. Aquele conto de Tolstói tem tudo. É sobre quando podemos ter justiça. Existe algo como justiça? Existe algo como redenção? Todos estes conceitos centrais à existência humana são expostos nesta pequena história. E eu seguia retornando a ela. Eu sigo retornando à psicologia de Dostoievski e à humanidade de Tolstói. Estes são trabalhos importantes.

Como você chegou ao personagem de Joaquin? Sei que você não é bem uma pessoa religiosa, mas Joaquin é alguém que recebe o martírio e o responde com bondade.

Joaquin é sobre bondade. Bondade absoluta. Você pode ver no filme que ele nem fala sobre Deus, somente sobre fazer o bem. Ele é muito firme em relação a isso. Não importa o que lhe aconteça, a sua condição, não importa o quão cansado ele esteja. Ele é uma personificação da pessoa sagrada. Não é sobre Deus. Ele demarca a linha das questões morais.

Seus filmes frequentemente usam imagens religiosas.

Fé é importante para mim, porque é uma parte inerente da existência. A questão de Deus. As pessoas são muito inseguras, elas não são confiantes sobre as suas vidas, então elas procuram religião para sobreviver melhor. No caso do pintor, sua fé é na pincelada; ele segue pintando porque sua fé é na pintura. É o mesmo comigo. Eu sigo fazendo cinema, porque minha fé é no cinema. Minha espiritualidade é essa, minha fé é no cinema. Meu cinema é muito espiritual porque tenho fé nele.

Norte é seu primeiro filme em cores em uma década. Como você aborda filmar em cores ou preto e branco?

Eu concebi Norte em preto e branco também, apesar de algumas pessoas terem me sugerido filmar em cores antes… mas elas fazem isso em todos os meus filmes. Quando você filma em preto e branco, você está neste mundo e subitamente há uma nova forma de ver a vida, um mundo diferente no qual você precisa submergir. O que aconteceu em Norte é que, quando procurávamos locações, eu buscava por lugares diferentes, e, quando cheguei ao norte, eu vi as paisagens e as cores. De repente tive este sentimento por dentro, “talvez, talvez”… como se ela implorasse, “use-me”. Ela estava lá, era parte do quadro. A região norte do país é realmente incrível, você olha para sua esquerda, você olha para sua direita, aí você olha em frente e há o mar, o vento, o sol. É totalmente diferente. Então, no primeiro dia de filmagens, eu decidi “vamos com cores”. A cor se torna um ator muito bom no filme. Eu a acolhi.

Norte (2013), Lav Diaz

Norte (2013), Lav Diaz

Outra coisa que diferencia Norte é que acredito que ele tenha um pouco mais de movimentos de câmera que seus outros filmes.

Nos meus trabalhos anteriores, eu tento recuar um pouco mais como observador, ser mais distante. Desta vez decidi seguir mais os personagens. São as pequenas mudanças que acontecem. Cor e movimento, mas é ainda só um quadro e um olhar.

Seus filmes trabalham muito a partir do acúmulo. Podemos pensar na última parte de Melancolia (2008), ou tudo em Norte que vem depois de de Joaquin ajudar o outro prisioneiro…

É um sentimento de transformação. É também como ler um romance. Você descobre outras coisas, tem experiências diferentes, se leva ao limite. Você vê aquele tomo grosso de Karamozov e se pergunta “o que diabo acontece?”. E de repente você lê aquelas frases, você lê aquelas experiências e depois, uau, você quer fazer parte daquelas experiências. Você quer entender melhor a humanidade.

No caso de Norte, é possível imaginar alguém realizando uma versão dele de só duas horas, mas aí seria um tratado esquemático.

Eu não quero fazer cinema deste jeito. Se fosse para fazer isso, eu voltaria a trabalhar num jornal. É como quando você faz seu trabalho de crítico e quando você escreve coisas: você deseja que as pessoas vejam além das palavras. Quando você faz suas críticas, você quer que as pessoas tenham a experiência que você teve, que leiam entre as linhas, que se movam além das palavras. Cinema é muito próximo disso e assim também é a poesia, a filosofia. Existe sempre uma luta para elevar o cinema a novas alturas.

Com que frequência os seus filmes são exibidos nas Filipinas?

Quase zero. Às vezes num festival, como o Cinemanilla, ou algumas vezes estudantes o mostram em um campus, ou professores na academia convidam o filme. Essa é a parte dolorosa. Parte da razão do meu cinema é educar meu povo sobre nosso passado, nossas lutas e história, mas ao mesmo tempo é difícil mostrá-lo nas Filipinas, então é uma luta. Porque eu acredito no poder estético do cinema, então o trabalho é duro. Mas um dia eles vão ecnontrá-los e descobri-los. Não tenho pressa. O cinema pode esperar, você sabe… Evolução tem onze horas, Norte tem quatro horas, Encantos tem nove horas. O cinema pode esperar.

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