Norte, o Fim da História (Norte, Hangganan ng Kasaysayan), de Lav Diaz (Filipinas, 2013)

novembro 1, 2013 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Filipe Furtado

norte1

Os desastres da linguagem
por Filipe Furtado

Nos filmes de Lav Diaz, temos sempre a impressão que tudo começa após o desastre. Há uma mácula inicial de ordem histórica intransponível da qual o filme procura sempre dar conta, por mais impossível que sugere ser a missão. Não será diferente com Norte, o Fim da História, seu próprio subtítulo jogando as claras este processo. Trata-se de um dos filmes mais enxutos e diretos do diretor, com o desastre surgindo menos como um passado do qual não se pode escapar, mais como uma alegoria. Se o cinema de Diaz sempre retorna até o governo ditatorial de Ferdinando Marcos, aqui é a lógica fascista do pensamento do ex-ditador – e como o cineasta gosta de lembrar sempre, o filme foi rodado em sua cidade natal – para a qual o filme procura dar duras formas.

Norte se inicia como uma variação de “Crime e Castigo”, com um jovem intelectual Fabian (Sid Lucero) se movendo aos poucos em direção ao seu crime. Diaz e Lucero colaboram para tornar as longas sequências em que Fabian expõe as suas ideias muito convidativas, a paciência do cineasta e a eloquência do ator (assim como algumas reações muito bem calibradas dos seus interlocutores) combinadas para torná-lo o mais atraente dos muitos demagogos que se multiplicam ao longo dos filmes de Diaz. Certamente não será acidente que a primeira fala dos filmes seja Fabian declarando “esta é a nova politica”.

Pois Norte é um filme sobre o discurso e os terríveis efeitos que ele pode ter. Um filme construído sobre o ato de Fabian de se mover das suas palavras fortes para os efeitos destrutivos delas quando são postas em prática. Quando Fabian declara “esta família está morta”, sabemos desde sempre que o filme deixará claro que não se trata de simples figura de linguagem. Não se sai impune do discurso aqui: a linguagem existe sempre em função de justificar a violência sobre o outro. Toda a lógica das palavras de Fabian é de justificar ideologicamente uma recusa completo do outro. Ao fim, já não restam palavras, só destruição. O projeto de Diaz fica mais claro justamente no único momento em que o discurso falha e, no período em que Fabian sente o peso da culpa após seu crime inicial, ele tenta e fracassa em se confessar num culto religioso – sua frustração crescente diante da impossibilidade de confessar é transformada em generalidades, como um politico incapaz de fazer um discurso funcionar diante da necessidade de uma não especificidade. Trata-se de um dos melhores momentos de observação do filme.

Na outra ponta, está a figura de Joaquin, o homem que leva culpa pelo crime inicial e, resignado, cumpre sua pena perpétua, e todos os martírios que Diaz lança sobre ele. Se a sua bondade inata é oposta ao ódio de Fabian, é fascinante justamente a maneira como o filme mantém-se tenso diante da sua presença, e como a sua calma perante de qualquer violência e desgraça é um elemento de incômodo tão grande para a encenação do filme como a violência de Fabian. Lav Diaz não é um cineasta religioso como Rossellini, mas nas duras sequências na prisão alcança um efeito similar ao de um filme como Europa 51 (1952), de encontrar uma encenação justa para nossa dificuldade em lidar com um verdadeiro olhar cristão.  É uma dificuldade em chegar ao personagem que transforma suas sequências finais em algo ainda mais poderoso, confirmação de um trajeto que não chega até nós como um dado a priori, mas que é conquistado num corpo a corpo com a câmera.

Se o principio de Norte é Dostoievski, muito da força do filme reside justamente da sua recusa em simplesmente seguir o caminho que seu projeto inicial sugere e meramente ir onde seus personagens e seu desejo de dar corpo a uma experiência filipina lhe levam. Num universo de cinema que sofre de excesso de obras fechadas em que o sentimento de descoberta e substituído por uma necessidade de ilustrar um projeto pronto, assistir a um filme como Norte, cuja alegoria parte de uma ideia que o filme permite respirar, é de um inegável frescor.

Fala-se muito da longa duração dos filmes de Lav Diaz, já que ela rende facilmente os fait divers que tanto interessam ao jornalismo cultural, mas a duração em seus filmes tem pouca relação com velocidade, planos longos, tempos mortos, etc. (não que estes não surjam quando o filme pede por eles), mas com uma necessidade narrativa. A duração em Norte é um conceito literário, pois parte de um desejo de acumular o maior número possível de detalhes sobre o seu mundo, e o filme dura quatro horas porque seu mundo e a narrativa que se constrói a partir dele assim pede. Diaz é um exímio contador de histórias e Norte é um filme bastante compacto nas suas quatro horas; nada nele sobra, e a sua duração é essencial para que seus três personagens centrais (Fabian, Joaquin e a esposa deste Eliza) se recusem a existir como ilustrações de uma tese sobre a violência social filipina.

Quando Eliza pede desculpas a Joaquin por não tê-lo visitado em quatro anos, a sensação de que se passara tanto tempo entre a última sequência que dividiram chegam a nós não como fruto de uma série de elipses, mas como natural, em meio ao volume de eventos que o filme mostra. A ação completa cobre seis anos e sentimos o efeito de todo este tempo sobre cada personagem que cruza os planos do filme. Da mesma forma, o filme permite que as ações possam agir sobre aqueles três corpos e podemos sentir como os efeitos destes seis anos afetam a relação com o mundo de cada um deles. Sid Lucero, em particular, vai progressivamente reinventando sua postura a cada nova hora do filme sugerindo os diversos estados da lenta descida nas trevas de Fabian.

Norte é um filme de ações duras. A sua Filipinas chegam até nós depois de um desastre, sua história a muito encerrada. É, porém, um filme que ilustra precisamente a diferença que um olhar pode ter sobre essas mesmas ações, pois se Norte coleciona desgraças, o filme existe num espaço bem distinto do pretenso realismo sufocante de certo cinema metido a malvado que faz sucesso no circuito de festivais. Em parte, trata-se de uma questão de ênfase: o objetivo do filme jamais é nos chocar, tanto é que os piores crimes de Fabian são mais sugeridos do que explícitos – Norte sabe que eles carregam peso o suficiente por si só, mesmo que não sejam mostrados com o sensacionalismo que o cinema de festivais a cada dia parece mais habituado. Mais importante, a mise en scène de Diaz sempre se esforça para garantir que o filme respire. Se busca filmar o que acontece após o desastre, a palavra chave será sempre “após”. É algo que boa parte deste cinema não consegue compreender, Lav Diaz sabe que qualquer outra atitude é capitular diante do discurso de Fabian.  Norte é um filme raivoso que por vezes parece existir sobre um espaço amaldiçoado, com a presença de Fabian sugerindo um eco de Marcos que sugere uma história fadada a se repetir; mas Norte não é, jamais, um filme cego.

Pois trata-se do primeiro filme de Diaz em cores desde Batang West Side (2002) e há uma riqueza de cores e uma variedade de tons de luz que por si só quebram qualquer miserabilismo de ação. Mesmo quando filma o luto, há algo de vibrante na encenação de que garante que o filme jamais se resigne. Da mesma forma, de tempo em tempo, a representação realista é interrompida por uma série de planos aéreos que transformam o espaço num plano quase abstrato e se desdobram como grandes erupções de violência estética e uma representação de um desejo genuíno de liberdade em meio a uma narrativa de sobrevivência. É uma transição do objetivo para o subjetivo que também diz muito sobre o desejo de transcendência dos personagens diante do olhar mais terreno do cineasta. Se Norte é um filme sobre as desgraças promovidas por um discurso erguido sobre uma retórica que deseja só justificar a própria violência, ele sabe bem que, para combatê-la, é necessário um outro discurso, que sua crença na força do cinema mais que nos proporciona. Também por isso, trata-se de um dos filmes mais políticos a chegar aos cinemas em 2013.

Share Button