From What is Before (Mula sa kung ano ang noon), de Lav Diaz (Filipinas, 2014)

agosto 17, 2014 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Filipe Furtado

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Do que leva ao fascismo
por Filipe Furtado

Se o cinema de Lav Diaz é um grande lamento sobre a história filipina, a ditadura de Ferdinado Marcos permanece o episódio formador que assombra a todos os seus filmes. From What is Before é um dos seus poucos trabalhos que buscam representar os anos de Marcos de forma direta no lugar de mostrar suas consequências. Estamos numa narrativa bifurcada, dividida entre o período imediatamente anterior e posterior a Marcos decretar o estado de lei marcial sobre o país. As duas metades do filme apontam justamente para as qualidades maiores que dominam o cinema de Diaz: sua capacidade de sugerir algo maior por trás de cada uma das suas situações e sua atenção para o acúmulo de detalhes que justifica a longa duração dos seus filmes. São ambas metades distintas tanto dramática como esteticamente, e que ajudam a representar o mergulho do país no período ditatorial do governo Marcos.

A atenção sobre os filmes de Diaz vem se tornando progressivamente maior – algo reforçado pelo Leopardo de Ouro a este From What is Before – e com isso o debate entorno deles, que tende a se centrar sobre a longa duração dos seus filmes e os momentos de violência e choque que frequentemente os marcam.  O termo slow cinema é sem dúvidas um dos menos úteis em voga no meio critico contemporâneo, mas os filmes de Diaz não lidam com o fetiche da longa duração, e sim apenas a encaram como uma ferramenta. O mote do seu cinema é dramatúrgico e a duração é uma peça de drama, como grandes romances transpostos para tela, preservando cada uma das suas frases. From What is Before não chega a incorrer em momentos de choque com a mesma frequência e impacto quanto Norte, o Fim da História (2013), mas eles pontuam a ação. É importante não encarar os filmes de Diaz de forma literal e os momentos de violência e miséria de From What is Before existem como uma tentativa de dar forma a um processo histórico igualmente violento e miserável, uma aproximação artística de todo este processo.

Estamos num barrio afastado, acompanhamos diversos habitantes e seus pequenos dramas, há relações misteriosas e uma jovem talvez provida de poderes curandeiros. Nesta primeira parte, From What is Before retoma a ideia de comunidade assombrada de outros trabalhos de Diaz, mas sem o foco fechado notável por exemplo em Batang West Side (2002). Há um mal-estar constante, como se as imagens de Diaz sugerissem que aquele lugar é tomado por um mal primordial qual não consegue se desvencilhar. Dramaticamente, estamos diante de um melodrama comunitário cheio de pequenos segredos e desavenças, mas cujo destino não é a lavação de roupa suja ou uma grande explosão catártica, mas a lei marcial, pronta para embaralhar o privado e publico. Seguimos uma contagem regressiva, enquanto os ritmos do barrio aguardam a chegada dos militares. Diaz é hábil em sugerir uma agitação no fora de quadro que na segunda metade se revelam nas forças ditatoriais e revolucionarias. É como se a ação principal corresse fora de quadro, enquanto Diaz opta por mostrar como a comunidade a internaliza e reflete.

Nesse sentido, há, sobretudo, a paisagem filipina – sempre um elemento privilegiado no cinema de Diaz, mas que From What is Before leva a uma direção mais radical. Trata-se de um filme com arco estético tanto como dramático, no qual a representação de espaço vai aos poucos se modificando. Na primeira parte, a paisagem é expansiva e parece estar lá como testemunha dos dramas humanos, de forma similar a Norte. Diaz extrai destes momentos um sempre notável poder ressonante. Quando o filme dá o salto para o histórico, porém, este espaço se transforma e ganha uma qualidade mítica e teatral. From What is Before se torna um filme que exibe um teatro de relações e o espaço cênico se adapta a esta nova realidade, ganhando uma qualidade didática e alegórica.

Depois da chegada dos militares, o filme se transforma numa meditação sobre viver sob o estado policial e cada interação passa a ser acompanhada de um peso extra. Todo este longo bloco traz a mente o ato final de Melancolia (2008), que seguia um grupo de guerrilheiros até o seu fracasso inevitável com uma impressionante força de detalhe. O mesmo processo se dá aqui, enquanto observamos a comunidade aos poucos se desfazer com a presença constante das forças de Marcos. A relativa falta de foco da primeira metade é redirecionada e cada troca entre os personagens passa a carregar consigo o peso do possível julgamento dos militares; cada ato está sempre sob suspeita. From What is Before ganha, com isso, uma qualidade didática: as interações existem por elas e pelo que elas simbolizam, como se o filme estivesse sempre querendo demonstrar algo.

A estrutura bifurcada permite a Lav Diaz narrar justamente a passagem de um mal abstrato para outro mais concreto. O fora de quadro, o mal-estar constante, termina na lei marcial, nas realidades de se viver num estado policial. Como sempre, os fracassos do homem, enunciados na primeira metade, conduzem ao fascismo. Trata-se de um filme em processo em que se busca captar como ele se move com naturalidade até este ponto, como uma mentalidade se forma. Não à toa, todos os elementos do filme de Diaz estão em constante processo de formação: não saímos daquela comunidade e de seus arredores, mas cada um daqueles espaços já diz algo muito diferente na meia hora final do que dizia no princípio do filme. From What is Before dá mais um passo na busca de Lav Diaz por dar forma ao trauma nacional, a narrar este mergulho no totalitarismo. Tal processo poucas vezes foi observado com tamanho horror.

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