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A cena muda

A descrição da sessão de estréia de Era uma vez Brasília em sua cidade-título sugeriria ter sido uma ocasião muito adequada ao que o filme sugere buscar. Sala lotada, pessoas no chão, o diretor de Branco Sai Preto Fica apresenta seu mais recente filme. Começa a projeção e um problema se produz: Adirley Queirós – cuja imagem foi amplamente fetichizada por um certo olhar classicista que o elegeu como cineasta da quebrada da temporada, como Messias encarregado de encenar “nossa” revanche contra “eles” – lançou sobre o prédio modernista do Cine Brasília um outro tipo de munição.

Ao intensificar certas linhas que compunham seus filmes anteriores, Era uma vez Brasília, , com um pessimismo melancólico e um amplo investimento atmosférico, acaba por parecer, para uma percepção apressada de juízos, um longo anticlímax. Porém, uma vez que se aceite o jogo que o filme propõe – o filme é muito consciente de suas escolhas, e muito consistente na sua construção – podemos perceber um artista realizando um movimento de expansão de seu repertório e ao mesmo ressignificando elementos de trabalho que já conhecíamos. De certa forma, Era uma vez… parece pegar a porção central do longa anterior (que ali fazia a engrenagem dramática abaixar sua voltagem) e fazer dela um método, um mote de trabalho.

A sinopse diz o que precisamos saber:

“Em 1959, o agente intergaláctico WA4 (Wellington Abreu) é preso por fazer um loteamento ilegal e é lançado no espaço. Recebe uma missão: vir para a Terra e matar o presidente da República, Juscelino Kubitschek, no dia da inauguração de Brasília. Sua nave perde-se no tempo e aterrissa em 2016 em Ceilândia. Essa é a versão contada por Marquim do Tropa, ator e abduzido. Só Andreia (Andreia Vieira), a rainha do pós-guerra, poderá ajudá-los a montar o exército para matar os monstros que habitam hoje o Congresso Nacional. Este é um documentário gravado no ano 0 P.G. (Pós Golpe), no Distrito Federal e região.

A partir desse fiapo de trama que nunca avança verdadeiramente, Adirley e seus colaboradores fazem um estranho estudo sobre a impotência, sobre uma certa estética do estático e uma estática (no sentido do ruído causado por interferência atmosférica) da estética. Assim posto, esse tratado sobre a imobilidade tem por tarefa perspectiva um reposicionamento cognitivo do espectador. Se os corpos não agem – o de W4 parece ficar eternamente na sua nave no primeiro ato do filme – nosso olho ou desiste ou parte em buscas de outras formas de animação. Daí, a expressividade do trabalho de arte de Denise Vieira e da fotografia de Joana Pimenta se torna um eixo central para a fruição de o que essa estranha fábula propõe.

O texto começa falando da especificidade da sessão do espaço, porque o jogo do filme é fazer-se justamente uma plataforma de estudo de espaços – no caso, Brasília, Ceilândia e Sol Nascente – e de objetos. O não avanço do drama e dos corpos coloca a relação figura-fundo como eixo central. A singularidade do fundo é essencial: a capital modernista, esta que é talvez a grande obra de land art definidora do Brasil, torna-se objeto de trabalho do curto-circuito performático de Adirley Queirós. Se o projeto moderno da cidade é essencialmente descontextualizante, o filme responde fazendo do estudo do entorno seu objeto de insistência: somos temporalmente convidados a percorrer com o olhar os descampados, viadutos, trilhos, corredores, além dos meios de transporte. A um certo projeto artístico dos apagamentos operado pelo Plano Piloto, o filme oferece uma intensa dose de planos gerais onde tal estratégia do pensamento arquitetônico é posta a nu, assim como seu elitismo constituinte. Somos afinal obrigados a olhar novamente esta estranha cidade, especialmente em sua porção noturna.

Além desse interesse deliberado em fazer ver o redor, o filme coloca como eixo perpendicular a exploração histórica da cidade e do país. Isso se dá principalmente pela banda sonora. Num trabalho cuidadoso de Guile Martins, o filme investe em urdir uma banda sonora de movimento frequente, onde se acumulam discursos de Juscelino, Temer, Dilma além de ruídos e canções. A premissa temporal do filme já coloca o exame histórico numa chave onde o tempo parece reconfigurado: estamos na década de 1950, nos dias e atuais e também no futuro; o tempo é híbrido, maleável, não linear, e ele não passa. Aqui, o tempo fica. Numa estratégia próxima aos longas de Marguerite Duras e a uma autonomia do sonoro de Bressane e Sganzerla, o filme se fia nas possibilidade de fricção entre som e imagem a partir da escolha de colocar no som um fluxo de informação bastante denso, constituindo uma espécie de contra-Voz do Brasil que se espalha pelos amplos espaços que os quadros apresentam. A investigação cênica, histórica e contextual é formulada a partir de uma premissa de dessincronia, e de não unidade, frustrando uma sede de síntese que rondava os espectadores mais recentes de seu cinema.

Na suposta era da urgência, o que temos é um filme radicalmente parado, que recusa, acima de tudo, progredir. Essa é parte de sua precisão política: ser contra a ideia de avançar cria uma violência expressiva que coloca o ansioso smart-espectador contemporâneo num estranho pesadelo, numa máquina que se desenvolve a partir de outras trilhas que não a causa-e-efeito, a criação de expectativas e respostas. Na tela, desenha-se um outro jogo, uma espécie de sabotagem de duração que esculpe um estado que o filme explorará por todo seu decurso. A progressão é parte da armadilha retórica que ergueu Brasília, portanto o filme aposta justamente numa perspectivação pelo desativar dessa forma temporal.

A artificialidade das poses dos protagonistas suscita uma teatralidade inerente que a arquitetura modernista insistentemente sugere. Uma vez que a dimensão plástica dos prédios e do urbanismo é ressaltada, todos os corpos são também parte desse palco sem fim. Os quatro personagens centrais realizam aqui essa experiência de ocupação espacial ativando esse devir teatral que a capital federal engendra: Brasília como imenso teatro a céu aberto, onde tudo é encenação, onde cada elemento é revelado em seu potencial performático, às custas de uma desenergização do corpo. A seqüência onde Marquim do Tropa está de capacete no gramado em frente a onde acontecia naquele momento a votação do impedimento de Dilma Rousseff não é só a mais eloqüente tradução desse momento histórico no nosso cinema, como é também reveladora da estratégia expressiva do filme em criar um registro radicalmente híbrido, ao mesmo tempo cruamente documental, indicial, e frontalmente artificializado, farsesco.

A leitura de “A Ponte para o Futuro” por Michel Temer expõe a teatralidade desse fantoche e vileza de sua dicção. Era uma vez Brasília está interessado numa batalha de gramáticas. Ao recusar as palavras de ordem (na verdade elas existem no filme, mas já não carregam o lastro da crença), a narrativa quer se ocupar de inventar uma outra língua – uma que nasça da lenta recusa, de um desvio, que termina por revelar igualmente o ridículo das mesóclises executivas e também das expectativas de que a arte nos dará respostas literais para nossos problemas. A literaridade entra em jogo para expor essa gramática da norma oposta a uma língua das ruas, a uma rítmica e a uma prosódia do rap, por exemplo. A batalha é das linguagens.

O que vemos são os momentos entre takes de um filme de ações redentoras, o contraplano de uma fábula de edificação. Estamos estranhamento próximos do cinema de Andy Warhol, mas também da Belair, numa chave de indiferenciação performática onde sempre o que estamos assistindo é ao mesmo tempo uma farsa e uma etnografia, um teatro e um documento científico. É uma radicalização do observacional que produz seu exato avesso, impossibilita uma apreensão objetiva porque nos intoxicou com seu excesso, desfazendo também mecanismos de produção de expectativas, criando drama justamente nessa tensão de registros.

Ao mesmo tempo em que tudo se transforma em etnografia e arte do palco, outra linha constituinte aqui é de um espécie de aprisionamento infinito. A imobilidade, a produção de um acerta paranóia persecutória e pequenas sugestões de enredo fazem do espaço do filme uma infinita prisão a céu aberto (o plano dos detentos saindo do metrô é um dos exemplos mais altos dessa indiferenciação que nos pergunta “onde começa a prisão?”). Esta inesperada crônica do nosso presente deseja também violentar uma certa crença num horizonte estreito de estratégias discursivas aprisionadas sob o lema da “urgência”, que parecem não perceber que o endeusamento da racionalidade, da clareza, é uma arma do poder – que pode ser dobrada, claro, mas já tem donos.

Era uma vez Brasília reafirma a importante linha que divide a vida cotidiana do espaço da proposição de experiência, da instauração da ficção. Esse insólito delírio realista reafirma o agudo senso musical, de micro ritmo, dos filmes anteriores – mais rap que canção – e o forte traço melancólico que o desfecho de Branco Sai Preto Fica pareceu disfarçar e que atravessa todos seus filmes. A matéria de sua obra é a investigação da derrota como estado, e as linhas que atravessam a condição de quem perdeu – lugar onde a recompensa é impossível, mas sua precariedade histórica pode se tornar um trunfo justamente por habitar esse limbo do não-ser, esse território no extracampo da história. O presente é uma ficção de época, é um falso documentário, e também, potencialmente, um cárcere sem fim.

Adirley Queirós quer zerar os placares para recolocar veementemente a pergunta “o que fazer?” para além das receitas prontas, e das retóricas de boa consciência. O desenvolvimento de um tom “camp de batalha” nas atuações é justamente a materialização de uma certa dureza que o cenário distópico pressupõe, contraposta a esta exposição de uma teatralização permanente que pode ser um chamado à reinvenção, um campo aberto nos modos de ser, agir, mover e parar. A proliferação dos discursos que não se traduzem em ação não parece exatamente produzir descrença, mas justamente expor a língua como terreno de guerra, e a urgência de formular estratégias políticas de opacidade, que não queiram compartilhar codificação com seus algozes. Os tiros que vieram da tela no Cine Brasília vieram de uma arma com silenciador, de forma nenhuma desejando silêncio (o modelo aqui não é do espelhamento tela-mundo), mas espalhando uma ética da invenção que precisa operar negativamente, que faz da recepção, da expectativa daqueles corpos sentados, o local do desenrolar dramático, o que culmina na quebra da quarta parede final, ratificando a inversão ontológica e revelando onde está armada a farsa. Literalmente, o cinema – aqui disfarçado de outra coisa – nos pregou uma peça. Sorte nossa.


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