Branco Sai Preto Fica, de Adirley Queirós (Brasil, 2014)

setembro 24, 2014 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Em Cartaz, Raul Arthuso

* Cobertura do Festival de Brasília 2014

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Meu mundo e nada mais
por Raul Arthuso

Branco Sai Preto Fica tem um lugar especial nessa cobertura do Festival de Brasília por razões diversas. A primeira é ser talvez o filme mais visto ao longo do ano entre os longas-metragens em competição, chegando, portanto, cercado de expectativas e leituras formadas anteriormente. A segunda se relaciona com essa numa ordem particular: tendo já visto o filme duas vezes em sala de cinema e mais duas em âmbito privado para a produção de um texto em outro veículo, não é, portanto, minha primeira incursão no universo de Adirley Queirós e do filme. A própria Cinética tem dois textos abordando o filme, o que torna essa revisão talvez mais um exercício pessoal de lidar com a especificidade da sessão do festival do que propriamente desbravar as primeiras impressões sobre a obra (como é o caso com Sem PenaBrasil S/A e Pingo D’Água, exibidos por aqui até agora).

De início, as idéias em relação ao filme partem de colocá-lo em perspectiva com A Cidade é Uma Só?, filme anterior e de proximidade tão íntima com este novo filme. São duas faces do espelho, na medida em que o jogo do cinema de Queirós se dá na apropriação de um imaginário local para explorar conflitos territoriais e de identidade. Enquanto o filme anterior percorria os espaços públicos, alimentava-se do sol e da cor, BSPF é um filme de recolhimento, de interiores, feito do contraste pictórico e da exploração do corpo. É um filme encarnado: o trauma está na carne, na mutilação e nas feridas expostas pelo corpo, na confusão mental de se estar apartado do território e do tempo.

O tempo aqui é uma noção importante, tanto como incorporação (mais uma) do gênero cinematográfico de ficção científica e viagem temporal, quanto na própria constituição do ritmo do filme a partir da música. Se ACÉUS? era um filme de amplos espaços articulados no tempo dinâmico do samplerBSPF é obra do tempo distendido da música soul no recolhimento de esconderijos. Onde antes era correria, agora é tristeza. Apesar de ser um filme sobre a incerteza do futuro, ele, tanto quanto o passado, se encontra no presente. Mas se o cinema é presencial, ele também é sempre passado, por seu próprio aparato de realização. Os tempos se confundem, convivem, e a figura de Dimas Cravalanças, se não tem nenhuma mutilação corporal, tem uma confusão mental de eras, apartado do futuro de onde veio e do passado inacessível para sua investigação. Dimas é a própria essência do tempo do filme: passado, futuro e presente são impuros, pois as personagens não usufruem do presente e o natural desenrolar do tempo; seu tempo é o da a fruição subjetiva.

O crítico Mário Pedrosa afirmou certa vez que o empenho da arte moderna consiste em eliminar a dicotomia da inteligência e da sensibilidade através da sensibilização da inteligência, utilizando-se de formas-intuição. Só assim a arte poderia expandir o campo da linguagem para além da objetividade. É exatamente o trabalho sobre essa dicotomia que se manifesta em BSPF, pois Queirós organiza uma série de formas-intuições com um rigor impressionante que, por sua vez, não paralisa, mas canaliza a força expressiva das imagens. A geometrização dos espaços e o uso das sequências de linhas retas no plano aprisionam as personagens num interior de melancolias e solidão. Poucas vezes no cinema brasileiro recente um procedimento plástico expressou com tanta precisão a própria carga emocional do filme; o pêndulo entre objetividade e subjetividade encontra um equilíbrio dinâmico.

Isso, em partes, porque o filme cristaliza algumas das questões sobre o processo tratadas no texto sobre Pingo D’ÁguaBSPF é um filme de processo em sua concepção plena, no qual as “intuições” são trazidas para o filme pela depuração do tempo, reapropriadas em outras sequências já como procedimento formal, ou retrabalhadas sobre outras bases. A questão vital é como isso é sensível e não telegrafado. A percepção diante da obra se expande para outros terrenos, como a fruição musical da rádio alternativa de Marquim que, num movimento inverso ao procedimento formal do filme, nos leva da imagem à memória. O procedimento realiza a incorporação do espectador no imaginário da personagem, criando uma relação de profundidade com a obra para além de sua matéria visível – e mais uma vez a palavra encarnar ganha força, com novos contornos, pois, desta vez somos nós, espectadores, que encarnamos na obra.

Apesar de seu conteúdo político advir do material propriamente documental do filme – fotos, relatos, lembranças sobre a invasão violenta da polícia ao baile do quarentão -, é desconcertante o quanto BSPF é um filme emotivo (e não seriam os grandes filmes políticos também compostos pelo reconhecimento emocional da existência?). Os protagonistas estão embebidos numa profunda melancolia de reclusão do mundo, apartados fisicamente e também socialmente. Eles não constituem qualquer relação afetiva ao longo do filme: os contatos são de ordem puramente material, mediados por relações de trabalho – os colaboradores da bomba de Marquim; as pessoas para quem Chokito arruma pernas mecânicas, etc. As relações pessoais são exclusivas ao passado, em fotografias, lembranças e uma melancolia que a música soul resgata, perpassando o filme. Queirós compõe um filme de rara sensibilidade masculina heterossexual, com homens crescidos sofrendo e demonstrando seu sofrimento, a falta que sentem do outro, do amigo, da esposa, dos companheiros de vida noturna, dos namoros, da azaração. O Quarentão, epicentro simbólico do filme, é um espaço da memória, o container do passado, uma máquina do tempo de acesso à emoção profunda das personagens. BSPF é um filme, na verdade, sobre a saudade, esse sentimento intraduzível no qual os tempos se confundem, a alegria e a tristeza se misturam numa sensação ambígua de prazer e sofrimento, e que, acima de tudo, não é preciso descrever, mas vivenciar. É como um teletransporte para essa vivência solitária, de dor e sofrimento levados ao nível da impotência diante de sua própria situação.

Algo bastante claro após a sessão de Brasília é como a catarse da exibição do filme quando de sua estréia em Tiradentes foi um evento isolado, não necessariamente a reação universal à explosão da bomba. Houve um momento de silêncio imediatamente ao fim do filme e nenhuma reação sonora como os aplausos e gritos da sessão da tenda da cidade mineira. Da minha parte, uma série de sensações que já experimentara na exibição da Mostra Aurora retornaram aqui. É certo que a idéia de uma bomba lançada contra Brasília é um gesto de revanchismo. Mas outra coisa é fato: sua expressão se dá no imaginário – afinal, no fim das contas, é um desenho e não uma explosão em efeito especial ou maquete tentando simular a cidade de Brasília. Sua presença na tela é opaca, feita de grafite, exageros caricaturais, num traço de desenho que sabemos ser de Chokito, pelas ilustrações realizadas por ele ao longo do filme. A “grande explosão” é expressão final do imaginário e da impotência do apartado. Um grito feito do som da Ceilândia que, apesar da Dança do Jumento, do rap, dos sons ambiente gravados, é uma grande massa sonora que quer chamar atenção. Marquim coloca fogo em seu sofá, esconderijo de seus planos, seus discos, suas memórias; Chokito tira sua perna mecânica e rememora seu casamento num álbum de fotografias; Dimas fica perdido em meio aos escombros da grande explosão. Nada mudou, as personagens continuam solitárias e impotentes. O cinema só pode ser um veículo, uma forma de transmissão – no tempo, no espaço. Nada mais se pede, nada mais que isso.

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