Entrevista com Adirley Queirós

agosto 12, 2015 em Cinema brasileiro, Em Campo, Entrevistas, Fábio Andrade, Filipe Furtado, Juliano Gomes, Raul Arthuso, Victor Guimarães

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Contradição permanente: uma conversa com Adirley Queirós
por Fábio Andrade, Filipe Furtado, Raul Arthuso, Victor Guimarães e Juliano Gomes (participação por email)

Há cerca de um ano, tivemos um encontro com Adirley Queirós durante o festival Olhar de Cinema, em Curitiba. Aproveitamos a oportunidade para uma espécie de mesa redonda, em uma conversa que durou duas horas e meia. De um ponto de vista jornalístico, o atraso em publicá-la seria fatal: Branco Sai, Preto Fica, seu mais recente filme, partiu do Olhar de Cinema para uma bem sucedida carreira por festivais internacionais, ganhou o prêmio principal no Festival de Brasília e não só teve notável desempenho nos cinemas brasileiros, como se tornou peça obrigatória de discussão na imprensa. Removida do tempo, porém, a conversa permanece descolada tanto das atualidades quanto da overdose perene das entrevistas de divulgação e dos debates pós-sessão, tateando possibilidades de passado e futuro que, naturalmente inconclusas, não se encerram no presente dos filmes ou das conversas.

Melhor assim. Se todo entrevistador tem histórias para compartilhar tanto sobre entrevistados monossilábicos, refratários a elaborações, quanto sobre os de maior apetite intelectual, que tomam qualquer migalha de pergunta como combustível para um espetáculo glutão, casos como o de Adirley acontecem com menos frequência: em sua franqueza permanentemente dialética, era como se estivéssemos a conversar com um colega crítico. Tomávamos seus filmes como pontos de partida, mas a conversa rapidamente desviava para o que eles desejam, o que eles permitem, o que o cinema pode e o que ele nem sempre consegue. Naquele momento compartilhado, pensamos cinema em conjunto, sem nunca perder de vista a contradição inerente àquele encontro. Difícil desejar mais de uma entrevista. (Fábio Andrade)    

Fábio Andrade: Falando da perspectiva de um cinema político, do A Cidade é uma Só? para o Branco Sai, Preto Fica, há mudanças não só de caráter cinematográfico, mas também contextos políticos bastante diferentes. Como foi lidar com isso no processo de criação dos dois filmes e o que você percebia ser necessário rever de um filme pro outro?

Adirley Quierós: O modo como o A Cidade é uma Só? foi feito já parte de uma urgência. Ele foi pensado como um projeto de documentário, com duas personagens, mas no meio da filmagem nós tivemos uma crise, porque, apesar de eles estarem contando a história da Ceilândia, de um período que foi tenso, pauleira, eles faziam isso de forma muito nostálgica. Neste momento a gente teve um insight: se a gente fizer o filme desse jeito, a gente tá fodido, porque só vai estar reforçando a narrativa oficial sobre a cidade. Apesar de ser uma narrativa histórica, ela é sempre contada de maneira que parece que tudo foi lindo, né? Inclusive, era um recorte de geração dos personagens: “a nossa geração foi linda, sofreu muito. Vocês não entendem nada”. A gente criou então novos personagens para provocar esse embate político. Era um filme que pensava num embate muito mais interno, na própria cidade. Apesar de os meus filmes anteriores terem passado fora, a preocupação maior naquele momento era criar uma relação com os artistas locais, o que era também uma possibilidade explícita de enfrentamento. Eles jamais aceitariam uma narrativa dessa história com dois personagens que, na cabeça deles, eram dois loucos, grotescos. A perspectiva política então nasce a partir do local, e essas coisas locais, que se colocam ali, são também nacionais. Se você pensar na relação com Brasília, por exemplo, tudo é muito próximo. E aí as coisas foram surgindo: o esquema com a carreata da Dilma, a criação do partido… E tinha também uma vontade de trazer esse espaço pra realidade, de criar para os personagens uma situação que poderia ser real pra eles.

A Cidade é uma Só?, 2011

A Cidade é uma Só? (2011)

É neste momento que a constatação de uma espécie de “lavagem cerebral” das pessoas que foram movidas pra Ceilândia, e que se expressa nessa nostalgia, se torna também parte do filme? 

Sim, foi um encontro de cena, a gente não tinha pensado nisso antes. Tinha uma espécie de incômodo, mas que nós não sabíamos explicar. A perspectiva daquela geração é: “Nós é que sofremos. A gente é a juventude que cantou MPB. Essa geração mais jovem não sabe de nada, são todos ignorantes, não entendem o processo histórico da cidade”. Isso sempre me incomodou. Ali eu passo a entender o quanto essa reafirmação da cidade é perigosa, porque essa geração reivindica uma identidade a partir de um modelo tradicional. É uma identidade que não traz violência. É uma identidade turística, que permite que as pessoas possam ir na Ceilândia comer uma buchada de bode, dançar um forró, fazer um turismo. Quando eu trago os dois personagens, é no sentido de tocar o terror. Vamos lançar um partido que dialogasse com as coisas mais grotescas da cidade, que tivesse uma relação com tudo que for visto como mau gosto. E o outro personagem é o cínico total. Através de uma relação na política e de uma relação imobiliária cínica, a gente conseguiria discutir as questões da cidade.

E no Branco Sai, Preto Fica?

A vontade é de contar essa história também, mas num momento de vingança. Era uma tentativa de uma espécie de cinema terrorista. Além disso, tinha o desejo de que os personagens pudessem se divertir mais com o filme. Porque essa história do documentário é muito foda, porque o cara chega sempre contando as misérias dele, né? É uma relação em que um expõe as misérias dele, pro outro se sensibilizar e sair tranquilo dali no final, né? No Branco Sai, Preto Fica, a gente queria que eles tivessem uma espécie de alegria com o filme. Uma espécie de vontade. E no caso estou falando deles, mas de mim também, porque também me interessava muito fazer um filme de gênero, uma aventura, pensando naquilo que eu assistia e gostava, lá atrás, também entendendo que, no tipo de filme que a gente faz, com a estrutura que a gente tem, essa busca da aventura sempre vai dar em uma outra coisa.

Branco Sai, Preto Fica (2014)

Branco Sai, Preto Fica (2014)

A idéia de batizar um dos personagens como Sartana vem daí? É do faroeste (nota do editor: personagem interpretado por Gianni Garko em cinco filmes entre 1967 e 1970, e por George Hilton em um sexto filme, também em 1970) ou era realmente como ele era chamado?

Sim, vem do faroeste, mas também vinha da realidade. O Sartana eram várias pessoas da cidade. Todo mundo que dava tiro era chamado de Sartana. Tinham vários Sartanas na Ceilândia, mas a questão é que essa geração inteira foi dizimada. E o que interessava também no faroeste é que o Sartana era um bandido, né? Ele não era narrado de forma romântica, e a gente queria trazer isso pro filme. Além disso, existia essa vontade de fazer cinema como uma fantasia. Eu me interesso muito em fazer um cinema que tenha mais fantasia, mais direção de arte, mais luz. Porque a questão é que essas narrativas do espaço e do corpo periférico são sempre apropriadas muito rápido, né? Porque isso faz parte da pauta política. A pauta política pede filmes que se passem no espaço de periferia e que possam dialogar, ser exibidos na Secretaria de Educação, na Secretaria da Juventude…

Nos festivais de cinema…

Nos festivais de cinema principalmente, né? Essa pauta é condescendente, porque ela parte de um corpo periférico que não vai conseguir dar um pulo além dali. No máximo ele vai pra cadeia, ou vai morrer. De preferência morrer, porque aí fica um filme melhor, né? (risos) A minha busca era que esses caras pudessem ter o espaço deles como um espaço de criação. O Marquinho me reivindicou isso: “eu não quero contar essa história pra você. Você já contou, lá no começo você já fez o rap, já tá bom. Eu queria andar no filme. Queria levantar da cadeira e andar. Vocês não fazem cinema?” Isso é uma forma de intervir radicalmente no que o outro quer de você, e eu acho que esse tipo de intervenção traz muito mais possibilidades do que aquela coisa do documentário tradicional que tem que estar aberto pras situações. Imagina, a gente não tem uma indústria, a gente não tem grana… se a gente propõe fantasias, é muito mais aberto ainda! Porque a gente não consegue fazer. A gente não sabe fazer, não tem grana pra fazer, e a gente não tem paciência pra fazer isso. Você faz a fantasia e não tá exatamente como você queria, mas vamos assim mesmo (risos). Sem falar que todos os filmes que a gente faz são feitos por cinco pessoas. Mesmo a ficção tem que caber num carro. Então é uma aventura também nesse sentido: pode sempre ser um desastre fatal.

Branco Sai, Preto Fica (2014)

Branco Sai, Preto Fica (2014)

Existe, então, algo de experimental nesse processo de produção, de descoberta de como cada filme pode ser feito?

Total. Pode dar a maior merda do mundo, mas a tentativa é dessa busca, até para tentar entender como essa linguagem clássica pode se enquadrar no cinema que a gente faz, ou não. Você vai entendendo para onde o filme pode ir na medida em que vai decupando. E, ao longo de um ano de processo, existe ainda um fascínio com as próprias imagens que estamos fazendo e que acrescenta uma outra camada de reflexão ao processo.

Filipe Furtado: É interessante você falar que o personagem do Dildu foi encontrado no meio do processo do A Cidade é uma Só?, porque no Branco Sai, Preto Fica a fabulação me parece um dado desde o princípio…

Mas o Branco Sai também tem muita coisa que foi encontrada. Nós tínhamos, por assim dizer, alguns parâmetros. Por exemplo, nós queríamos fazer um filme de ficção científica, então criamos os cenários. A partir daí, a gente coloca os personagens lá dentro, mas quando os personagens ocupam esse espaço é que nós esperamos encontrar o filme. Só que você limita isso a um processo de montagem, principalmente de som. As coisas acontecem ali e você tem que acreditar muito no fora de campo, porque o mundo tá todo no extracampo. O personagem não está na rua, em contato com outras pessoas que podem startar outras coisas. No A Cidade é uma Só? você está sempre no contato com outras pessoas. O cara que vende lote, vende lote de verdade. O candidato age como um candidato de verdade. E a partir daí, muita coisa pode acontecer no contato com outras pessoas. No Branco Sai existia, da nossa parte, uma espécie de arrogância ao controlar esse espaço, mas ao mesmo tempo uma fé muito grande de que o ator vai ter que se virar e encontrar outras coisas ali. Mas em nenhum momento a gente seguiu um argumento, com começo, meio e fim. A bomba, por exemplo, surgiu na filmagem. Aquele tubo era pra ser uma espécie de correio, pelo qual ele jogava mensagens lá pra cima. Mas aí a gente jogou uma luz e ficou bonito. Então a gente pensou: “pode ser uma bomba, em vez do correio, porque bomba é mais bonito”. Aí a bomba startou a idéia da vingança, que até então viria pelo container, e o personagem do Dilmar iria à Câmara reivindicar reparação pelos crimes do Estado brasileiro.

A Cidade é uma Só? (2011)

A Cidade é uma Só? (2011)

Fábio Andrade: Acho interessante retomar, então, um ponto que você falou no começo, sobre a vontade de fazer um filme terrorista. Porque no A Cidade é uma Só? existe, ainda, uma tentativa de jogar dentro da democracia representativa, enquanto o Branco Sai termina explodindo o Congresso. Ao mesmo tempo, você fala que essa idéia de ir à Câmara estava na origem do Branco Sai. O A Cidade é uma Só? antecipa todo um movimento político que veio depois do filme, com as manifestações, na cena da carreata da Dilma, ali ainda batendo de frente com um cara só, mas dois anos depois o gesto político necessário já lhe parece ser outro…

O ato terrorista chama o futuro pra um diálogo, né? Vamos destruir tudo, pra que no futuro a gente sente na mesa e negocie. Porque, no A Cidade é uma Só?, embora existisse ali o partido, ele era também uma tentativa de tocar o terror. Um partido desses não teria futuro numa instituição democrática. É um partido de um homem só, que não consegue dialogar com a massa crítica, agregar pessoas que estão correndo com ele. Ele começa cercado de gente, mas termina sozinho. Porque, até entre a gente, rapidamente existe uma cooptação. Não existe um movimento de alguém sozinho, sem estrutura, que resista a isso. E o cara não tem a obrigação de carregar o piano sozinho. No Branco Sai, como a gente parte da história do Marquinho, não existia perdão. Não existia mais diálogo. “Já que vocês foderam com o meu presente e eu vivo no passado, foda-se o futuro de vocês”, sacou? Na minha cabeça, a bomba era uma homenagem ao Marquinho, porque ele falava muito isso. O sonho dele era explodir aquilo tudo, porque ninguém naquele lugar realmente se importava com ele.

Victor Guimarães: Mas há também uma diferença de tom, não? O A Cidade é uma Só?, apesar do final, me parece um filme muito vivo. E o Branco Sai me parece, desde o começo, um filme muito mais melancólico.

A gente não queria fazer um A Cidade é uma Só? 2, sabe? Pra gente, era um desafio ver como os atores iam se comportar em uma estrutura que é mais fixa, com marcação de luz, com decupagem narrativa, corte e tudo mais. Acho, inclusive, que eles se saíram melhor nisso do que a gente (risos). E, quanto ao tom, não tinha como não ser melancólico. A música é nostálgica, né? Quem curtiu aquelas músicas chora de verdade, e isso é muito forte na sala de cinema. Só que mesmo no espaço melancólico eles são gaiatos, então quando os caras se encontram também tem humor.

Filipe Furtado: Você fala em nostalgia e em geração, e fico curioso de saber como é fazer um filme que pretende dar o ponto de vista não só do diretor, mas de uma geração.

Eu, Marquinho e Shockito temos praticamente a mesma idade. A gente cresceu junto naquele ambiente e teve uma experiência com a cidade. Então a memória que a gente tem da cidade não é uma memória ouvida, mas uma memória experimentada. Aquele é um espaço de experiência que a gente viveu, e dentro dessa experiência a que mais nos toca é a da amputação, em todos os sentidos. Eles sofreram amputação física, mas nós tivemos amputação da cidade, de espaços que nós construímos e que foram criminalizados. O Quarentão, por exemplo, era isso, porque era um espaço com potencial muito foda pra bater de frente com a geração do rock de Brasília. A gente fazia muita piada sobre o rock de Brasília, mas tudo que motivava isso estava também no nosso cotidiano: a relação de classes, a racial, as diferenças nos modos de se viver. Não é à toa que o rap local surge ali.

O interessante é que quando se fala em um filme de geração isso normalmente traz um sentido nostálgico, enquanto o Branco Sai é um filme assombrado, não nostálgico.

Porque a nossa geração perdeu, né? Esses moleques novos são muito mais massa do que a gente. É muito mais interessante ser novo hoje do que antigamente, porque os moleques são muito mais potentes de corpo, de eroticidade… têm menos trauma. Inclusive com a relação com Brasília. O fluxo já é diferente, eles circulam por Brasília e voltam. A gente só ia a Brasília pra brigar, pra radicalizar, pra desafiar aquele espaço. As gerações mais jovens conseguem negociar, inclusive porque têm mais acesso à universidade, e isso permite uma negociação maior, ao mesmo tempo em que eles estão tensionando aquele espaço. Eles estão negociando agora porque já entraram no processo de negociação, e isso, inclusive, traz outros problemas.

Juliano Gomes: Na cartela do final do filme, quem é o “nóis”? Ele é muito diferente do “agora por nós mesmos”, do 5x Favela?

Acho que isso volta à questão geracional, que obviamente é muito pessoal, e que começa em uma linguagem de quebrada. É importante falar “nóis”, e não “nós”, por exemplo, porque existe esse dado da descoberta gramatical, do mau gosto, da construção feia. No filme do Cacá Diegues, existe uma relação muito perversa, porque todos os personagens passam por um momento de descoberta do bom gosto. A redenção não é de classe, nem de território, mas vem pela descoberta do bom gosto. “Até que enfim você descobriu que existe o bom gosto e agora você vai poder sentar na mesa com a gente”. A cartela era muito mais no sentido de entender que a minha fala eu mesmo faço. Não é uma questão autoritária, como se só nós pudéssemos ter um discurso sobre aquele espaço, mas também não preciso que alguém de fora faça a minha fala por mim. A frase pode ser lida como um slogan, mas também é uma potência gramática, e eu acho que o sentido muda de acordo com a forma de leitura. Se é um slogan, é perigoso; mas como potência gramática, eu acho fundamental, porque o cara se identifica com isso. Eu falo sempre que eu odeio poesia, mas eu acho que a palavra é importante, porque, pra quem é de periferia, quando o barco tá afundando a gente só tem a identidade. Nós estamos fodidos, mas nós estamos juntos. E eu acho que essa afirmação é importante, porque mesmo o cinema feito por gente da periferia acaba sendo um cinema de oficina, em que alguém de fora vai lá e impõe um sistema de produção, assim como o “nós” do filme do Cacá se dissolve no título, porque no fim das contas o modo de produção é todo dele. Não é à toa que a nossa cartela vem no final, depois que você já viu o filme todo. É a afirmação interna de uma possibilidade de expressão. Não dá pra colocar no começo: “tratado geral das coisas específicas da Ceilândia”, né? (risos)

Queria que comentasse o papel da música popular nos seus filmes. Ela ilustra, organiza, dissipa? Me parece que, no Branco Sai, Preto Fica, ela permite ao personagem central narrar (o rap) de um jeito próximo ao que vemos no O Que se Move, do Caetano Gotardo.

Com exceção do Fora de Campo (2009), todos os meus filmes têm música, porque minha relação com o cinema popular sempre me fez esperar por uma atmosfera que é trazida mesmo pela música. Isso foi algo que cresceu muito na montagem, inclusive, porque o Guille Martins usou a música de uma maneira que eu provavelmente não pensaria sozinho em usar, e que eu acho foda. A música traz uma memória que a gente não consegue contar no filme.

Por outro lado, eu tenho pavor da maneira como a música popular normalmente é usada no cinema como uma forma de carteirada, porque é mais uma coisa que remete ao bom gosto, que eu acho que também passa pelo território de assimilação dos festivais internacionais.

Fábio Andrade: Mas o mau gosto também não é igualmente assimilável e controlável? Não há aí também, nesta outra possibilidade de carteirada, uma contradição incontornável?

Sim, porque o mau gosto pode virar simplesmente o risível e o exótico. Esse cara não tem nenhuma possibilidade de sair dali. Quando eu mostro a Família Show, é porque eu acho que eles são foda e se eles quiserem explodir o mundo eles conseguem. Eu acho engraçado também, mas é extremamente potente, porque eles dominam aquilo.

E o riso também pode ser muito potente. A gente exibiu o A Cidade é uma Só? no Morro do Alemão, no Rio de Janeiro, e tinha muito moleque. Mas o corpo do carioca é muito mais funk do que rap, né? O funk é muito mais despojado, nesse sentido, enquanto o rap é mais reto, e eu hoje tenho inclusive maior proximidade com o funk do que com o rap. E eu lembro que os moleques riam muito do filme. E tinha um professor com eles – maldito professor, né? – e o professor começou o debate se desculpando pelo riso dos meninos. Eu não acho nem que tenha sido má vontade do professor, mas que existia a percepção de que o filme falava de uma coisa séria… e sim, ele fala de uma coisa séria, mas por que não pode rir? E eu falei que ficava muito orgulhoso, na verdade, porque durante as filmagens a gente cagava de rir. Então o riso pra mim não é um problema.

Mas eu acho que a carteirada que se estabelece com esse mau gosto não é tanto com o mau gosto, mas com o marginal, porque o que é marginal permite outros tipos de passagem. O marginal pode ser etnografado, no mau sentido do termo. E o marginal pode incluir o mau gosto, mas ele não é só o mau gosto. Enquanto que, no espaço periférico, a música é encarada como uma possibilidade de emprego. A relação com a música também é de trabalho, não é só artística, e é esse músico especificamente que me interessa, porque ele é contraditório, ele tá sempre pensando no que ele pode fazer pra ser mais popular e ganhar mais um dinheiro.

Eu adoro rap, mas o rap também já foi apropriado. O rap já faz parte das instituições, e essa fala também já foi doutrinada. Tem bandas de rap que eu chamo de rap Caros Amigos, porque os caras ficam cantando questões sociais sem emoção nenhuma, e que na verdade não têm nenhuma potência na quebrada, porque não tem energia. Eu acho o Mano Brown o maior poeta do Brasil, o cara é Jesus Cristo, mas quando ele faz o clipe do Marighella ele está claramente querendo dialogar com o governo Dilma, por questões de política pública, e é uma letra que nem didática consegue ser. E o que é absurdo é que tudo que a letra diz o clipe nega, no audiovisual. O rap tem muita força no grafite, no break, no DJ e na poesia, mas quando chega no audiovisual eles constroem tudo ao contrário. E eu acho que isso tudo é reforçado por coisas como o 5xFavela, do Cacá Diegues, de filmes como o Antônia, da Tata Amaral, que passam por um modelo de beleza que é completamente externo.

Raul Arthuso: Isso me lembra uma questão que você tocou no debate da Mostra de Tiradentes, que era o incômodo de você, como diretor branco, estar dirigindo homens negros…

Sim, temos a mesma experiência territorial, mas eu jamais poderia ter uma experiência racial igual a deles. Eu nunca vou alcançar esse local e isso inclusive cria uma armadilha. Eu acho que daqui a cinco anos eu vou ser acusado de muita coisa, desde sexista até, não digo racista, mas de que eu estaria reafirmando um autoritarismo racial, porque sou um diretor branco que provoca um discurso de que a questão racial é muito importante. Mas como ela pode ser importante em um processo em que o único branco é o diretor? É mais uma evidência de como isso se acumula. É uma contradição permanente.

Sempre há um momento em que eu perco um pouco o meu lugar, seja numa relação subjetiva com o filme, seja numa relação de estratégia de fala. Eu posso estar em um debate e, se um homem negro apontar que eu sou um diretor branco, eu não posso falar nada. Ele pode desconstruir toda a minha estratégia com uma frase, enquanto eu levaria um ano pra conseguir explicar todo o nosso processo. Quando eu entrei na UNB, não tinha um homem ou mulher negra. Tinha pouca gente da Ceilândia, mas se eu entrasse calado e saísse calado, com a barbinha feita, eu era um cara do Plano. Eu podia circular. Isso foi mais fácil pra mim do que pra eles. Mas quando eu abria a boca, aí era diferente, porque começavam as categorias: você é um homem radical assimilado de Ceilândia – porque eu fazia também um personagem, pra desestabilizar aquele espaço, e esse personagem também termina se esgotando. E isso também acontece dentro dos filmes, na minha relação com os atores.

A questão é: como você faz um documentário que não expõe as pessoas? O documentário é a coisa mais perversa que existe, porque te joga numa idealização que você nunca foi nem nunca vai ser. O segredo é ter a liberdade de provocar o cara, sem que isso se torne uma agressão. Quando o Dilmar atira na câmera no final do filme, ele estava atirando na equipe, porque estava puto com a gente, inclusive porque percebeu que existia algo de ridículo ali, de uma tentativa da câmera de coloca-lo num lugar não ideal. E isso, pra ele, era o gesto do homem branco. Pra mim, um dos pontos fundamentais no processo de um filme é achar esse espaço de contradição entre a gente.

Existe um maniqueísmo aí, mas que eu não acho ruim, porque sutileza demais não é algo que cabe muito no cinema que eu faço. Porque existe de fato um ideário de um inimigo, que é Brasília. Existe uma dívida histórica. E eu acho que essa relação política só vai se estabelecer no contraditório. Como você vai colocar em questão o outro se você não tiver um discurso próprio? Porque o outro tem um discurso permanente sobre você…

Victor Guimarães: E não há um risco em se fechar na construção de uma identidade que, no fim das contas, também termina por excluir a possibilidade de diferença?

Sim, porque nem todo mundo cabe nessa definição de identidade. A identidade que eu falo é não só de uma geração, mas também do homem heterossexual. Aí escapa a identidade do homem periférico gay, da mulher periférica. E eu acho que no futuro isso pode gerar problema, mas ao mesmo tempo no presente isso me parece ter uma potência. Eu acho que daqui a cinco anos o discurso já não vai mais ser o mesmo. A gente vai ficar velho muito rápido. As contradições existem e em algum momento vai existir uma pressão interna sobre a gente.

Fábio Andrade: Por “interna”, você quer dizer…

Ceilândia. Dois caras da minha equipe são de Brasília, não são de Ceilândia, por exemplo. Como fica isso? As pessoas são singulares. Muita gente no DF olha pros meus filmes e acha que eu estou tirando o direito deles de participarem de Brasília, e quem sou eu para tirar esse direito? O discurso mais contraditório que existe é o discurso de periferia, porque você constrói as coisas em um espaço de muita disputa política e institucional. E o enfrentamento no cotidiano da rua é negociação. Você não vive na rua sem negociação. Mas a minha idéia é fazer filmes que te tirem desse espaço de conforto. Não que eu não goste de filmes que você pode ver enquanto está almoçando, mas a esquerda brasileira se tornou muito confortável. O máximo que a gente tem de esquerda no Brasil hoje é o Juca Kfouri! Imagine, futebol! (risos)

A Cidade é uma Só?, 2011

A Cidade é uma Só? (2011)

Raul Arthuso: O cinema brasileiro hoje me parece muito carente de reflexões propostas pelos próprios cineastas. É raro encontrar alguém como, por exemplo, o Sganzerla, cujas idéias eram tão debatidas quanto os filmes. De certa forma, em especial no contexto da Mostra de Tiradentes e dessa geração, você começa a se tornar um pouco essa figura que promove um certo deslocamento, em que a cada novo debate as pessoas estão curiosas para ouvir o que você tem a dizer…

E eu subo lá e falo: “vamos almoçar!” (risos). Eu gosto das disputas políticas, independente de eu fazer cinema ou não. Como eu faço filmes, isso se manifesta aí. Mas eu não acho que nem eu, nem os meus filmes, têm uma capacidade representativa maior. O que eu vejo é talvez uma relação de uma geração mais jovem de me ver um pouco como um irmão mais velho que tem história pra contar. E acho que há uma identificação com o A Cidade é uma Só?, por exemplo, pelo desejo de avacalhar, de bater de frente com o que o cinema brasileiro também tem de opressor. Porque virou um cinema muito “acoxinhado”, né? Acho que isso passa um pouco pelos editais.

Mas, ao mesmo tempo, eu defendo edital pra caralho. Acho que eles são uma conquista política, porque a gente bateu de frente. A política pública não brota do nada. Os festivais são importantes nisso. A Cinética é importante nisso. Mais do que ninguém, a Cinética legitimou o cinema brasileiro de hoje, e não é porque ela legitimou cineastas… ela legitima o cinema brasileiro justamente ao ser crítica. Ela é um lugar de diálogo e, mesmo quando há o não-diálogo, esse não-diálogo é também um processo de reflexão.

Fábio Andrade: Acho, inclusive, que existe uma contradição interessante nesse sentido, porque os seus filmes são feitos com dinheiro público, e ao mesmo tempo problematizam essa relação.

Sim. Não existe uma regra num edital que te obrigue a fazer um filme de cooptação. Você faz o jogo do texto, não o jogo do político. O edital parte de uma idéia de meritocracia e é preciso trabalhar com ela, mas a partir disso é possível invadir esse espaço e modificá-lo. É aí que o cinema brasileiro se torna “acoxinhado”, porque tem muito cineasta que pensa o edital junto a um plano de carreira. Mas que carreira é essa, num cinema que não tem como fazer público nem porra nenhuma?

A gente perdeu a esfera política da disputa ao encarar o institucional como algo paternalista. Porque o sistema de editais, ao mesmo tempo em que ele é burocrata, ele também é uma prestação pública de serviços que precisam estar acessíveis a todos. E isso muitas vezes engessa o artista. Porque o artista não quer prestar contas, né? “Eu não sou como os outros. Eu sei gastar meu dinheiro. É um absurdo precisar fazer planilhas”. Como assim? Quem são esses outros que não sabem gastar o dinheiro? Os cineastas acabam caindo num discurso de patrão, porque a origem é de patrão. Muita gente que faz cinema nunca foi empregado na vida e reproduz isso. “Como assim eu tenho que prestar contas?”. Isso está mudando por causa de medidas do governo. Existe a política de Estado, que é o edital, e existe o governo que está gerenciando o Estado. É claro que eles querem que a política pública seja convergente com o governo, e eu acho que tem muito cineasta que pensa nisso, como se fosse necessário pegar leve com o Estado. Mas é justamente o edital que permite a desconstrução dessa posição de patrão.

E isso passa por questões de identidade. O sonho do cinema brasileiro hoje é passar filmes na Europa. Eu também quero isso, mas nesse desejo de se enquadrar existe uma lógica muito mais perversa, que é colonialista. Se é preciso se enquadrar, eu prefiro muito mais me enquadrar em Tiradentes do que em Cannes, porque eu tenho uma margem muito maior de conversa, a começar pela própria língua. Esse desejo é arcaico, porque volta a um discurso moderno de identidade, território, sonoridade, colonialismo. Nada disso passou. Como poderia ter passado se a gente nunca se apropriou dos meios de produção? Como o cinema de periferia poderia ter passado se ele nunca chegou nesta fase? É claro que a gente tem que ser moderno, e não pós-moderno, porque a gente nunca experimentou nada disso. E por isso estamos discutindo questões ainda de identidade, de auto-afirmação, de território, de falar que a cidade é importante, que uma busca de cinema popular é importante. No cinema brasileiro hoje existe muito diretor que já nasceu com a possibilidade do pós-moderno, de que a identidade não existe, e pra ele é bom a identidade não existir, porque quanto menos identidade, mais ele circula, porque ele já pode circular. Agora, quem não pode circular, não circula, sai voando.

E o próprio processo dos meus filmes é esse. A gente circula, circula, pra achar um lugar. E às vezes a gente acha que encontrou, mas no dia seguinte este lugar já não está mais lá. Se a gente chega a essa contradição, de perceber que as coisas não são firmes assim, aí é interessante. Porque a identidade também não é fixa, é uma permutação mesmo. Tem momento em que um aspecto é mais importante, mas depois ele pode não ser. Eu lembro que, anos atrás, quando surgiram as políticas de cotas, o MV Bill falou em um debate que ele não era do movimento negro, ele era um negro em movimento. Poucos meses atrás eu vi uma outra entrevista em que ele afirmava a identidade de um homem negro. E isso é totalmente legítimo, porque cada momento confere importância a um aspecto diferente da experiência individual.

Acho que isso passa também por questões de produção e por uma prática da própria crítica, porque há alguns anos o discurso dos coletivos de produção era algo muito presente, e que fazia um sentido, mas hoje a situação…

É outra. Até porque o discurso do coletivo também é perverso. Eu acho que o Estrada para Ythaca (2010) é um filme seminal pro cinema brasileiro contemporâneo, porque ele motivou uma geração que já fazia filmes, obviamente, mas que ali passa a ocupar um espaço como Tiradentes. E era um discurso que fazia oposição importante a uma forma de produção, de ter 50 pessoas num set de filmagem de um curta, que era muito presente naquele momento. O problema é que essa relação de afeto não é sustentável, porque ela tira a possibilidade do trabalho. Alguém comprou a câmera, alguém trabalhou de graça, e nada disso entra no discurso econômico. E aí você gera vácuos técnicos, porque os técnicos são os que mais se fodem. O diretor ainda pode tirar uma onda, fazer um mestrado, dar uma aula, mas o técnico se fode, porque se ele não ganhou na hora de fazer o filme, ele não vai ganhar mais, e a profissão dele depende de uma dedicação, de um aprendizado que é específico. Como eu posso afirmar que um cinema de periferia pode acontecer, senão pela questão econômica? Você só pode ter cinema na periferia mesmo se ele for uma possibilidade de profissão.

Raul Arthuso: No seu método de produção, que não segue um roteiro com começo, meio e fim, quando você sabe que terminou o filme?

Quando acaba o dinheiro. Aí todo mundo precisa arrumar outro trabalho, porque se depender de mim eu continuo no filme por muito tempo. O meu sonho é fazer um filme de cinco anos, a ponto de que as próprias pessoas envolvidas começassem a acreditar na fábula, internalizando a fábula, porque aí seria possível que a gente fabulasse o nosso cotidiano de verdade e derrubasse as coisas. Seria possível que o enfrentamento político fosse divertido – a gente vai se foder, mas vai desmoralizar esses caras e isso vai ser divertido. A fábula é também um constrangimento público. E eu acho que isso requer muito tempo, porque é o tempo que traz a contradição. Num set organizadinho, que dura um mês, não tem contradição nenhuma. Ninguém fica puto com ninguém, pô! As pressões é que trazem as contradições.

No Branco Sai, Preto Fica, por exemplo, ninguém sabia como ia explodir a bomba. A gente ficava pensando “e agora, como é que a gente vai explodir essa bomba? Porque isso não é bomba, isso é um cano, pô!” (risos). Os desenhos chegaram pra mim quando eu já estava em São Paulo, terminando a montagem. Tinha um corte, inclusive, em que a bomba não explodia, e um amigo falou que aquilo era uma brochada, porque o filme todo construía expectativa pra bomba explodir. Então a gente tinha que dar um jeito na montagem pra bomba explodir. Teve um momento em que eu pensei até em colocar uma cartela: “E a bomba explodiu”! (risos)

O que eu vejo hoje, no cinema brasileiro, é uma geração jovem de muito talento e de muito interesse, uma geração que é muito cinéfila, que lê crítica e que pensa os filmes conceitualmente, mas de alguma maneira tudo isso cria uma relação que ainda é racional antes de ser visceral. Ainda é um fetiche de produção, porque você faz um filme com tudo no lugar certo, que pode ter final aberto, mas isso vem a partir de uma relação que não é aberta, porque é racional. Mas se você quer fazer um filme aberto, ele precisa ser radicalmente aberto, e aí a chance de dar merda é muito grande. É difícil ficar bom, mas se você fizer um filme ruim também já tá bom. O problema é fazer um filme criminoso, né? Mas filme ruim é a média, ué (risos). Os filmes que eu gosto são os que solicitam uma relação visceral primeiro, e essa abertura do que eu sinto é que permite o insight, e depois disso é como se abrisse uma porteira e as coisas viessem todas encaixadas. Quando o cinema é realmente aberto, ele permite o insight. No final, você só pode fazer a viagem no seu próprio barco. Isso é do Karate Kid, né? (risos).

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