Matéria sólida: alguns sedimentos e procedimentos em Cavalo Dinheiro

janeiro 25, 2016 em Em Pauta, Juliano Gomes

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por Juliano Gomes

Em Pedro Costa parece haver uma lógica de trabalho de uma dimensão radicalmente material. Mais do que material, a idéia do sólido soa adequada à sua estratégia de abordagem. Um sólido é o elemento que não comporta vácuo, vazios não preenchidos por nada. Uma série de ações realizadas pelas obras dão a impressão de estarmos diante da construção de algo que é a da ordem do substancial, do duro e do durável.

Nas linhas que se seguem, Cavalo Dinheiro se faz objeto dessa coleção de entrevistos cuja intenção é tentar atravessar a arquitetura sensualmente concretada por Costa e sua pequena família. Entretanto, seguindo a lógica da própria obra – marcada por mutações, ecos, genealogias, densos trânsitos e incertezas – o que se tenta aponta invariavelmente para o resto de sua obra e para o mundo que ela suscita. A estratégia fragmentária busca se apoiar na sugestão mesma da obra, em sua crença em um otimismo grave que nasce diante da generalização do trágico. Se tudo está perdido, é adensando a perdição que talvez se possa erigir algo.

A hipótese de trabalho é que a grandiosidade do universo esculpido pelo cinema de Costa se dá pela insistência em procedimentos que aqui parecem atingir uma espécie de cume ou de inflexão decisiva. Pelo viés da sedimentação, não deve ser surpresa afirmar que Costa é um artista das resistências. Sua matéria de trabalho é radicalmente o que fica, o que sobra. A impressão de condensação que cada frame de Cavalo Dinheiro exala é resultado da potência da estratégia alquímica dessa filtragem inversa que quer reter os restos e as impurezas. É possível dizer que se trata de um filme sobre cantar e decantar.

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Still

O filme se inicia com uma seqüência de fotos de Jacob Riis, de ambientes com trabalhadores no final do século XIX em Nova Iorque. Há alguns modos por meio dos quais as estratégias de figuração do filme se ligam a esta breve seqüência. O grupo das fotos termina numa imagem de quadro onde um homem negro olha obliquamente para o lado. Uma panorâmica para o lado apresenta Ventura de costas, descendo rumo a uma passagem desconhecida.

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Há uma exploração deliberada no cinema de Pedro Costa pela exploração dos personagens em retratos silenciosos; corpos e rostos deliberadamente parados – mas vivos – se postam, se solidificam diante de nós. Os personagens não parecem ser feitos de carne, de sangue, mas sim de uma espécie de massa contrafantasmática, ao invés de mais leve e rarefeita, mais densa, próxima da pedra. Estão parados e são insistentes em pararem-se (significado de still, em inglês): um cinema do contrafluxo, que se expressa pela pujança de um antivitalismo.

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A coreografia e as poses são uma estratégia de encenação que causa estranhamento na medida em que parecem grosso modo anti-cinematográficas. Qual o sentido de filmar algo parado? O que acontece num quadro com um corpo que não se move? A fábula de que o cinema deriva do desejo antigo da representação do movimento parece cair por terra diante da expressividade de tal estratégia. Cada screen test de Costa chega como um duelo, e a lição warholiana ganha outra inflexão: no cineasta americano, o duelo era da luz com o suporte 16mm: um fazer-se e desfazer-se, uma rinha silenciosa entre a forma e a desforma dos cristais de prata; em Costa, também um duelo com um aparato: suas câmeras digitais leves, móveis, são feitas e afeitas ao movimento constante. O excesso de movimento é condição de sua invisibilidade na medida em que esse uso é desejado pelo feixe de desejos que liga os fabricantes, as corporações, e as expectativas sobre este meio de expressão. Aqui elas são tratados como os aparelhos mais pesados do mundo, como as gigantes câmera do início do século XX. Lema de Cavalo Dinheiro: subverter os usos correntes, dobrar as lógicas prévias.

Uma palavra-chave dá nome à retórica utilizada nos processos de exploração e assujeitamento dos homens nos últimos séculos: “progresso”. O parado em Costa é uma das faces do seu cardápio de recusas ativas: não avançar. Tudo aqui é contra o avanço. Ninguém avança (no sentido de uma ação súbita) – sua violência é uma violação perceptiva operada pelas lentidões. O filme vai modular o limite da nossa atenção ao que parece nunca passar, nunca se desenvolver. As coisas se ocupam de se envolver, de ganhar camadas sobre mais camadas, numa espécie de trabalho invisível cujo campo de ação parece um gás que essa exposição de sólidos exala. A riqueza singular dessas imagens resulta dessa impressão atmosférica: quando nada se move o que se está filmando é esse gás – um de seus substantivos possíveis é o tempo (Ossos talvez seja o filme onde essa figura do gasoso esteja mais evidente).

O estado de encenação criado por Costa é esse que difere de uma foto justamente pela passagem desse gás, dessa nuvem pelos corpos, cuja unidade parece encantar cada plano de seus filmes. Aqui as coisas não divergem por natureza, porque tal idéia parece inadequada para esta abundante cosmologia da pobreza. Nada deve parecer natural, nem mesmo o canto da terra natal, ou a vegetação. A idéia de natureza é uma retórica do poder, de o poder dizer o que não é natural. Daí uma política do estático, ou melhor, uma cartilha dinâmica de estados cujo movimento se dá por corte, por ralentação, por desdobramento ou eco.

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Obliquidade

Toda a estética de Costa parece derivar de um desejo de relação oblíqua com as bases e as matrizes. Sejam cinematográficas (Ozu, Ford, Chaplin, Tourneur, Mizoguchi, Warhol, Lang, ou interlocutores como Carax ou Apichatpong), históricas ou políticas, nada é evocado de maneira direta. É preciso torcer as linhas que levam de uma coisa a outra. Torcer o olhar, torcer o corpo, torcer a cena, torcer a história, torcer a estética. O olhar da pintura no início do filme é já o olhar onde rosto e olhos divergem, cada um para um lado. O oblíquo é aquele que quer inaugurar uma outra ordem, é o que desorganiza os planos, o que cria outro conjunto que não estava dado.

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A estratégia da figuração oblíqua: as quinas; os tetos; o contra plongée; as poses do corpo; os quadros desequilibradamente reequilibrados. O manejo da instabilidade pictórica no tempo é sua matéria de trabalho. Tal recurso de estilo cria um mundo particular cujo trabalho das durações aponta para dentro de si e para fora. A dimensão funcional é simultânea à diegética. Cada olhar está diante de nós espectadores e diante de toda a dor do mundo, de toda a insistência da violência contra o homem comum pelas instituições. O tempo que o plano dura é o tempo para que o olhar passeie por tudo isso, um tempo da revolta, de uma não-reconciliação e de uma recusa do mundo (é crucial que ele não seja natural). Assim, de uma mesma perspectiva, evoca-se a possibilidade de relação com o mundo aqui fora e com os procedimentos de cinemas que já não mais existem. Costa pega emprestada a forma clássica da figuração dos grandes homens pra dar corpo e graça àqueles que só ocupam o papel de desgraçados, e o faz não como uma compensação pela tragédia histórica, mas pelo inventar de um idioma visual, por propor um jogo próprio como criação de blocos de som e imagem.

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São sólidos que nunca estão em um lugar só; estão entre o cinema e o mundo, entre o clássico e o contemporâneo, entre a foto e o filme, entre a tragédia e o triunfo. Densos fantasmas que habitam um mundo em eterno estado de limbo. Uma poética dos limiares. O exemplo arquitetônico é talvez a forma mais evidente desse investimento: janelas e portas são o motivo permanente. Passagens, entrelugares, são a possibilidade de centro desse universo. Um ritmo moribundo do passar embala a errância desses homens que parecem não pertencer a lugar nenhum. Eles não são mais do longínquo Cabo Verde, nem de Portugal, nem da Revolução, nem das instituições exatamente; eles são o deslumbrante refugo, a nobre matéria dessa revanche estética que nos brinda com um novo mundo que nada mais é do que uma dobra aguda desse aqui. O estatuto ontológico do universo do filme é aquele da carta, como material de suspensão que liga um mundo ao outro, sendo ele mesmo uma constelação própria.

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Sem fundo

É notável a insistência com que Cavalo Dinheiro desconstrói a figuratividade da profundidade. Se algo tem profundidade, a ela não nos é dado acesso: não sabemos o que sente Ventura; não sabemos onde dão os túneis e os caminhos; não sabemos em profundidade mesmo sobre o que é o filme. O efeito de estranhamento brechtiano realça essa radicalidade de um trabalho das superfícies, um investimento epidérmico que resulta no esculpir de um abismo. O mundo aqui é ao mesmo tempo cru, duro, e rebuscado, abstrato, pois o mundo acabou, ou se reduziu a formas básicas, planas. A representação planifica tudo, realçando o dispositivo da projeção: se trata um retângulo artificial onde são projetadas cores e ao tempo um retrato agudo de todo fora de campo – esse fora de campo que é o campo real, formado pelos homens e mulheres que são a maioria.

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Neste último filme, Costa intensifica esse trabalho com as formas e cores evocando o investimento geométrico como artificialização dos ambientes institucionais. É o que faz uma instituição: ela achata, numera, reduz, simplifica, esquadrinha. As construções aqui parecem operar também nessa camada literal em relação à função desses espaços nas vidas, numa linha por entre a arquitetura, entre as possibilidades de passagens do humano e da luz. Então, a profundidade e a perspectiva, tradicionais índices do real no cinema e na pintura, se tornam matéria de um desconstrução figurativa. No filme de Pedro Costa mais dedicado aos espaços das instituições disciplinares (o hospital, a prisão, o manicômio), o universo visual nos apresenta uma surpreendente geometrização das massas.

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Entre um rosto e um círculo, não se sabe qual é o futuro ou o passado da forma, quem vai desaguar e quem terminará aqui. Costa faz uma exploração desse motivos por sucessivos desdobramentos, como também entre as fotos de Riis, o quadro na parede e a máscara “primitiva”, criando um inventário das representações onde figuram também telas, espelhos, e as já faladas portas e janelas. Esse estado de transmutação, que faz os personagens serem mais de um e o tempo ser múltiplo, opera também na dimensão da plasticidade visual. Uma equivalência e uma resistência da figura humana são figuradas, porque a redução total, a derrota do humano, não é figurada. O filme termina numa fusão sem trucagem: vidro, faca, sombra. O mundo dos filmes de Costa são uma espiral contínua, abismal, que não cessa de indicar que continua, que é mais e mais funda, que o preto que lhe dá limite e devora quase todo o quadro é também o espaço de prosseguir indefinitivamente essa lenta balada mortuária.

Indissolubilidade

Se o filme termina numa fusão, essa operação significa muito mais um posicionamento ativo entre as partes do que efetivamente uma mistura. A linha que liga a sombra deste homem, o vidro e as facas, é a linha de um eclipse, ação de um negativo, de um bloqueio da luz que revela uma configuração expressiva.

A poética da resistência é essa que mantém as matérias em quadro, mas tenta experimentar seus estados e limites. Muitas vezes, nosso olho demora pra achar o homem, num esforço claro de engano das “dominantes” visuais (o enquadramento mais recorrente em Costa é o do personagem à esquerda do quadro, olhando para este mesmo lado, sem campo de fuga: o exato oposto da convenção pictórica ocidental). O rosto humano, o rosto negro, é o material dessa persistência irreverente. Acostumado com a ameaça do desaparecimento (a morte, as perdas, a falta absoluta de luz), essa forma circular, elíptica, seu relevo e suas cavidades, é motivo da mitologia da insurreição de Costa. Sua principal ação é esta insistência: ficar, ficar, ficar, fincar os pés no chão, tornar-se chão, tornar-se parede, mas sem perder a própria forma. Alimentar-se do concreto para, ainda mais, durar.

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Entre a agonia e uma política do agonismo (fundada num reequilíbrio permanente, que nunca realmente se equilibra) a poética substantiva (cavalo, dinheiro) de Costa é uma máquina, uma fábrica delirante, um contra-sistema que não cessa de nos devolver nosso mundo, o mundo histórico, essas fortalezas da exclusões e assujeitamentos, ressaltados por cada assimetria que nos pede que reconfiguremos nossa medida pessoal de figuração. Centralizando as quinas, desigualando as massas, contrariando padrões dados e evocando insuspeitas genealogias, Costa cria essa contra-história dos vencidos, o avesso do avesso de uma cosmética do fome, que reconfigura a figura no tempo e o tempo na figura, e do qual Cavalo Dinheiro é um estado de saturação, fazendo com que tudo o que se acreditava morto, acabado e moribundo seja a medida de uma cosmologia que reorganize a experiência através de uma ética da solidez mutante e uma estética de um onirismo dos interstícios. Quando novas notícias-imagens essa trupe nos trouxer, estaremos à espreita, buscando estar à altura desta autodestruição, desta revolução perceptiva à qual ela estranhamente nos convida.

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