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O cinema canvas e o último respiro

Três prévias, Lumière:

1. Laveuses sur la rivière (1897)

Ninguém duvida do esmero cênico dos primeiros filmes dos Lumière, mas este filme-plano, especificamente, parece destoante do imaginário que os irmãos fundadores evocam. As costumeiras linhas diagonais que denotam uma espacialidade mais aprofundada por entre camadas – primeiro, segundo, terceiro plano – dão lugar a uma impressão de achatamento, como uma superfície bidimensional. Sabemos que os elementos da parte inferior da imagem estão mais próximos do que os da parte superior, mas a distância é pouco sensível. O balanço das águas, as mulheres lavadeiras, os homens posando, a textura da grama e areia, os cavalos puxando a carroça em frente à casa… tudo torna-se um passeio do olhar. Se há um centro maior de atenção – as lavadeiras – em poucos segundos, pela repetição dos gestos, esta gravidade se dispersa à livre pesquisa contemplativa pelo interior do quadro.

2. Repas de bébé (1895)

Dizem que, quando Méliès viu este filme, o que mais lhe impressionou foram as folhas se mexendo ao fundo. Evidente. Ali estava algo que o teatro – com o cenário mais elaborado que pudesse criar – e a pintura – com as cores mais vivas da Terra – nunca puderam proporcionar: a matéria sensorial do mundo. A cintilação das folhas, do verde, do real, não era posta em cena por Lumière, mas corroborada pela coautoria do vento. Uma cooptação da natureza incandesce o olhar e instiga o mergulho pelas profundezas da imagem.

3. Premier pas de bébé (1896)

Eis, como diria Bertrand Tavernier, o primeiro filme de suspense da história. Uma boneca caída em primeiro plano é a isca que atrai uma criança ao fundo de quadro e a faz traçar, segundo o intertítulo, seus primeiros passos. São passos firmes demais para uma primeira vez, mas tornam-se trôpegos quanto mais se aproximam do primeiro plano. A menina se depara com um declive perpendicular que forma um pequeno degrau – para ela, uma considerável cratera – e seu pensamento parece infundir-se nos espectadores: “será que ela conseguirá saltar o abismo”? Desponta aí – de forma bem mais inequívoca que o célebre O Regador Regado (1895) – o princípio psicológico da identificação com a personagem: pensamos como uma pequena infanta. A cada passo, o drama tenciona à espreita da queda provável. A profundidade de campo, como no famoso A Chegada de um Trem na Estação (1895), não é uma questão puramente de perspectiva; a geometria do plano contribui para que seu elemento central – a bebê – ganhe o estatuto de pathos dramático a cada passo que a engrandece na tela.

 


Três impressões, Arábia

1. Começava meu texto sobre Baronesa (2017), de Juliana Antunes dizendo que estávamos diante de um filme sem profundidade de campo – “o que há para acontecer acontece, aqui, logo à nossa frente, com a cor barrenta do tijolo tampando o fundo, o mundo”. Arábia, de Affonso Uchoa e João Dumans, num sentido visual específico, é uma continuidade do trabalho feito por Juliana, que já dialogava com o filme anterior do próprio Affonso, A Vizinhança do Tigre (2014). Mas enquanto, em Baronesa, a escassa profundidade de campo está relacionada a um estado de clausura das personagens que se expande ao Vizinhança – “o mundo não nos pertence, não nos acolhe, então foda-se, vida loka e pé na porta, a gente fabula e invade os espaços que tiver” –, em Arábia isso é de outra ordem: cada plano é uma construção arquitetônica de forças geométricas. Quebra-se o tijolo barrento para poder enxergar uma fresta da matéria do mundo, meticulosamente imposta, enquadrada, amoldada a uma disposição pictórica na qual cada torneado é pensado para sobressaltar uma determinada expressividade.

Em Vizinhança… e Baronesa tínhamos os rebocos das casas das personagens como principal elemento cenográfico. Agora, a direção de arte de Priscila Amoni se depara com esses outros espaços e é complemento essencial aos corpos e à luz da fotografia de Leonardo Feliciano. As caixas de tangerina preenchem o quadro com vida e a escada é a literalização de sua metáfora, ou seja, é a “escada” para Cristiano se harmonizar no quadro ao ouvir a estória sobre Barreto, um sindicalista-piqueteiro como Lula, que, não por acaso, conheceu o ex-presidente ainda como líder dos metalúrgicos em tempos de ABC. No plano em que Renan (Renan Rovida) oferece lençóis para Cristiano dormir, os galhos de árvore dão corpo à escuridão, e a camisa branca ao lado ajuda a rebater a luz da lâmpada incandescente, enquanto a camisa amarela reforça a intensidade do tungstênio. Em ambos os planos, que são cenas inteiras, ficamos diante de tableaux vivants: os gestos são mínimos, a expressão facial é em pianíssimo, a fala conduz a narrativa quase como em uma dimensão paralela enquanto o olhar percorre as nuances do quadro.

Entre Contagem e Ouro Preto, uma travessia se traveste como odisseia bigger than life, tudo em poucos quadros e muitas palavras narradas. Todo este contido vasto mundo é um grande canvas de ações minguadas onde nem mesmo o eu-lírico com pretensões ubíquas poderia bastar sem a definição do traço e da cor. Arábia é este eterno movimento dialético: a palavra empurra em frente, enquanto a imagem imobiliza o tempo. A abstração sonora ao fim é o gesto maior de que, se este mundo pulsa esbravejante e sublime, é preciso antes de tudo admirá-lo frontalmente em sua majestade e horror.

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2. No entanto, o cinema não é um conjunto de pinturas em movimento. Um quadro não é uma tela. Como diria Bazin, a moldura da pintura é centrípeta, a tela no cinema é centrífuga. O movimento em cena no cinema instiga o olhar não só em perspectivas mas também para o imaginário do fora-de-quadro. Em Arábia isto é desmoronado. Com exceção da cena em que Ana conta que perdeu o bebê (plano nela/plano nele), onde temos um fora-de-campo concreto (nos termos de Noël Burch, este opõe-se ao fora-de-campo imaginário: é momentâneo, pois já vimos Ana falar e, ao cortar para ele ouvindo, podemos imaginá-la de forma mais palpável), o filme praticamente não trabalha com a ideia de um fora, de uma imagem para além do visível. Com exceção do primeiro plano, aparentemente alienígena ao restante da construção do filme (mas coerente com a ideia de um filme jovem dentro de um filme sobre trabalhadores), o que vemos depois é uma sucessão de tableaux, e o mundo é esta tela bidimensional torneada pelo jogo de luz que cria sombra e volume.

É inegável a influência que o cinema de Pedro Costa tem sobre a dupla de diretores, mas antes de condecorá-los ao mesmo panteão de “estetas dos plano” – o que não nos leva a lugar algum –, é preciso entender este tom tão sugestivo da pictorialidade. Estamos diante de um cinema canvas que, aparentemente, prima pela frontalidade das coisas mas cria um submundo sonoro paralelo. Enquanto Méliès ficava comovido com a combustão terrena do mundo promovida pela ranhura do vento nas folhas ao fundo (e isso seria a mola propulsora de todo um outro tipo de cinema, que tem como intuito primeiro registrar o espontâneo da experiência humana com o mundo), em Arábia, como em Cavalo Dinheiro (2014), o registro tende à imobilidade (não à toa, o fundo em boa parte dos cenários de ambos os filmes é acobertado, chapado). Em Costa, pelo espectro do retrato; com Uchoa e Dumans, com a salvaguarda da narração em voz-over. Temos então um conto contido, auto-referenciado, no qual as palavras voam nunca muito longe para sempre voltarem à Cristiano. Tudo que não se refira a ele é acessório.

Neste sentido, a “trajetória do herói” não deve ser confundida com qualquer filme clássico-narrativo. Um dos únicos planos em que existe um movimento de câmera um pouco mais sofisticado para além de panorâmicas laterais (como na cena onde os trabalhadores cantam Raul) é quando o jovem rapaz passa o dedo na janela empoeiradíssima, remetendo à doença do irmão e ao redor contaminado pela indústria. Dali, a câmera reenquadra, à la Ford (usando as árvores como molduras plásticas), para o ambiente de trabalho de nosso protagonista. “Todo quadro é uma janela”, já dizia a velha metáfora renascentista, e era assim que o próprio Ford começava Como Era Verde Meu Vale (1941) para retratar uma comunidade galesa vinculada de maneira muito íntima a uma mina, única fonte de trabalho da vila.

O filme de Ford abre com um plano fechado em uma mão empacotando coisas e dali um movimento sobre trilho chega à janela que enquadra a vila. Junto à narração que contextualiza – “estou deixando para trás 50 anos de memória…” –, a janela não só reorganiza o espaço, como se transmuta em invólucro do tempo. Esse é um gesto incisivo que simboliza bem o sentido de perscrutação de Ford. Affonso e João perpassam horizontalmente por entre os blocos de tableaux, como se juntássemos uma exposição de uma galeria de arte inteira num só negativo de película. Com eles, a câmera nunca vai cortar para um plano detalhe no meio da ação (o máximo que fazem é cortar dos pés para o rosto de Cristiano comendo pastel). Já Ford instaura o cenário com quadros de extrema profundidade de campo para depois perfurar a quarta camada do écran (e aí se insere boa parte da tradição do cinema clássico), decupando para quebrar os blocos em planos de múltiplas perspectivas, se convulsionando por dentro daquele universo, picotando contra-planos, closes e raccords. Em Ford, como em Murnau ou Mizoguchi, é o movimento que faz o desenho, em Arábia, como em Costa ou no tardio Tsai Ming Liang o espaço cristaliza o tempo e instaura o plano-olhar.

E aí é que entra um dilema: a imagem é o que fundamenta esse cinema, mas ora condensa toda uma etapa da vida – quando Cristiano conhece e trabalha com o caminhoneiro Antonio Carlos em um só plano –, ora não é capaz de perpetrar ou solidificar um significante, como na cena do término, seguinte à descoberta do aborto, em que Cristiano conta em voz over que cada um foi para um lado da vida enquanto o quadro, em desalinho, apresenta ambos tristes e aéreos e distantes-apesar-de-próximos em degraus diferentes de uma escada (mais uma vez, como em Pendular, é o cinema contemporâneo achando elegante assumir o confronto amoroso como elipse).

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3. Contudo, Michel Mourlet parece me contradizer: “permanecer sempre ligado ao centro. Estética da centralidade, da imediaticidade, o cinema clássico está realmente fundado na preocupação maior de não ‘repartir a cena’; o que conta é menos o respeito pela realidade do que pela cenicidade.” A cenicidade, de fato, está acima da realidade no jogo classicista, mas a cena, a meu ver, está sempre ali repartida; centralizada, mas fustigada por ângulos variados. Arábia centraliza sem repartir. Não reparte sequer a atenção: Cristiano é o eixo gravitacional desta projeção de uma hora e meia. E quem é Cristiano? Um trabalhador em coma. Nem ferido, nem morto, nem vivo, nem morto-vivo, mas em estado de inconsciência, sem que possa ser despertado. É o coma que provoca não só a presença do garoto que vai à sua casa achar seus cadernos, mas que também abre esse jogo de ecos entre uma nova geração operária – que elevou sua condição de consumo durante a primeira década do PT – e a geração seguinte, a do esgotamento do lulismo.

“Arábia” é também o nome de um conto dentro do livro Dublinenses, de James Joyce, no qual um garoto, encantado pela irmã de um amigo, quando finalmente troca poucas palavras com ela, promete trazer-lhe da feira Araby uma lembrança qualquer. No dia da feira que tanto ansiava, chega lá faltando muito pouco tempo para tudo fechar e desiste de trazer qualquer presente. Com a trajetória de um homem simples superando as agruras de uma rotina errante e braçal, o filme parece uma exaltação ao trabalhador de hoje, mas é o menino de Joyce empolgado com a lembrança, que acorda cedo para explorar a feira, acha um tanto de coisa e desiste de levar ao fim qualquer presente. O consumo é o trabalho e a desistência está menos ligada a um niilismo do que ao entendimento sobre a impotência de transformação do ato: trabalhar cansa e não mais nos completa.

Arábia não é um filme dentro do filme à toa e a primeira parte do jovem que descobre Cristiano e sua obra não simboliza apenas um inventário de uma literatura do operariado, de fazer valer a voz de uma classe. O tempo narrado, leia-se a era Lula, era o tempo em que bastava o trabalhador “acordar cedo”, “nunca ser de ficar à toa”, mas esse projeto desenvolvimentista entusiasta ao fim vai ser questionado – “tudo aquilo ali não significava nada pra mim”. Essa geração de trabalhadores, agora ainda mais mal das pernas, é apenas um bando de “cavalo véio”, em coma, deitados solitários numa floresta longínqua, ouvindo distante a nova CLT ser instaurada. Os cadernos de memória, porém, caem nas mãos do menino. Restaria à juventude enferma, fragilizada, mas que lê Cortazar reassumir os papéis de protagonismo? A visão de Arábia é pessimista com um ulterior solfejo esperançoso. Nosso postulado pós-2013 parece retomar o libelo de 1968 no qual os estudantes, com plena noção de sua herança privilegiada (“as universidades são fábricas de privilégio”), buscavam o cruzamento combustivo com o movimento operário (“a única chance de retomar a luta é botar um fim à divisão entre intelectuais, trabalhadores e camponeses”). Ao fim, Cristiano suspira isolado na floresta negra, como para não morrer de desespero. Suspira que ainda assim está vivo e pode respirar. Deitado, sente a fogueira iluminar sua faca e acalorar seu rosto. Se há fogo, há faísca, mas seria esta centelha passível de nos sacolejar do coma?


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