As Aventuras de Pi (Life of Pi), de Ang Lee (EUA/Taiwan, 2012)

abril 2, 2013 em Em Cartaz, Fabian Cantieri

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O desenho da natureza
por Fabian Cantieri

Entre Oscars, ponderações sobre o infilmável e polêmicas literárias, As Aventuras de Pi consegue se sobressair exatamente quando o foco das atenções é detido em pequenos movimentos internos sobre a forma em que sua adaptação toma vida na tela. Muito se quis explorar sobre o plágio de Yann Martel, autor do livro que originou o filme, sobre Max e os Felinos de Moacyr Scliar, mas enquanto o conto de Scliar era uma metáfora eminentemente política – o jaguar, (leia-se a ditadura), como “uma realidade feroz que poderia usar da violência a qualquer instante sobre o outro” – o conto de Martel vinha com a causa honorária de provar a existência de Deus. 

A diferença lá, vira outra diferença aqui. Na transposição para o cinema, a divindade de Ang Lee é delineada por uma outra chave além da pura comprovação do sagrado: Lee aproveita a oportunidade temática para se aventurar no terreno relativamente arenoso que é o 3D – muito pisado comercialmente, pouco semeado com atrativos realmente interessantes (vêm à mente algumas exceções como Avatar, Pina e a Caverna dos Sonhos Esquecidos). Para além de uma mise en scène de imersão que nos remete, num primeiro momento, a uma variação mais bem produzida de certos brinquedos da Disney (no bom sentido da lembrança), a tridimensionalidade de As aventuras de Pi se configura como parti-pris formal de uma transcendência metafísica poucas vezes antes aplicada no cinema. Sim, existem confluências entre o elo narrativo-formalista que carrega a promessa da comprovação de Deus e cenas de puro sensorialismo, não pela pulsão do fluxo ou depuração de ontologemas, como pede o costume contemporâneo mas, como na cena do naufrágio, pela decupagem (plongées que se retratam para receber o mar de frente) e montagem (raccords que enaltecem o frenesi e costuram a porrada do 3D) nos deixando absortos, sem fôlego, mas, simultaneamente, sem nos importar com a (não) respiração ao avistar a monumentalidade de um navio submerso.

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A poética de Ang Lee continua a girar, senão por esses gigantismos impactantes, por um deslumbramento visual que leva o sublime à tona. E o 3D é o instrumento de demonstração divina. Depois de um começo onde tudo parece se enredar para uma mise en scène transliteral, arreda-se o pé da palavra (sua base, o livro adaptado se torna uma teleologia abandonada) e até da frontalidade da imagem convencionada (o écran) para moldá-la em algo maior que a natureza. Ang Lee, que antes fracassara na tentativa de visualizar o mundo mais belo do que é pela tipificação alucinógena de Aconteceu em Woodstock, agora abandona o romantismo impotente de expressão e se apega ao barroco da reconstrução do impalpável – transforma a palavra em algo fora do limite da natureza.

“Palavras são tudo o que tenho” fala Pi em off logo antes de ser incapacitado da escrita ao perder seu caderninho numa tempestade – uma provocação divina que o amputa de seu instinto de prosseguir a epopeia. O ato de escrever, como em Robinson Crusoe, é o desafogo da alma e a prova irrefutável de sua sanidade – é do grafite que vibra a narração. Ao perder seus instrumentos, Pi se sente enfim preparado para a chegada de sua morte. Ang Lee (que não à toa corta da sua desistência para sua ancoragem na “ilha mágica” que o salva e expele) celebra essa perda do grafite reinventando não a escrita, mas sua forma de contorno (no 3D não há moldura que balize o quadro) como possibilidade de redesenhar os tons da natureza.

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Pois essa natureza é cabalmente conhecida, mas também cheia de sombras. Já foi tantas vezes filmada, mas ainda é plena de ser desbravada. É um pouco como o movimento de chegada impressionista, como Monet pintando Impressão, Sol Nascente – a natureza mantém seu movimento milenar intacto (a estação dos peixes que “voam” sempre aconteceu e nem por isso deixa de ser deslumbrante em cada nuance), mas muda-se o olhar sobre ela e muda sua representação, troca-se a técnica de pincelada, chega o advento da tecnologia 3D – uma nova pincelada captando o vento que empurra as nuvens, uma nova (terceira) dimensão inventando novas nuvens que são levadas até nós – e vislumbramos movimentos arquetípicos. A experiência vivida por Pi é grandiosa demais, violenta demais, divina demais para a mundanidade: Pi, defenestrado de seu caderno, espera pela morte; Lee, sufocado pela linguagem, subverte os mandamentos da composição pictórica e do cinema e se dedica à criação  não natural do mundo (não seria o 3D um pouco isso?).

O chiaroscuro pode vir da dialética elíptica entre noite e dia passada ao relento (céu e mar refletindo contrastes diversos) ou até mesmo na composição de quadro, como na frontalidade do barco entre a integração harmônica dos azuis-dourados reflexivos: mar e céu como um só, nuvens ao redor do barco, um olhar-devaneio do tigre para dentro do mar noturno (que agora é mar mesmo, de novo) vislumbrando um cardume e uma lula (raios luminosos) na escuridão. Enquanto Monet tinha à sua frente o desafio de retratar o registro do tempo – as nuvens que se desenvolvem de O Passeio à  Ensaio  de Figura ao Ar Livre, por ex. – Ang Lee é provocado por uma nova geometria espacial da dimensão. Como retratar o sistema organizado de exceções que é a natureza? Comecemos por um quadro sem limites. Extrapolemos com uma profundidade que nenhuma tela suporta.

Mas para além do pictórico e a semântica de um desenho sem letras, é preciso sempre voltar à vida de Pi. Com o 3D a mãos, voltemos à narrativa, pois esse mar negro irreal sob o prisma do olhar-devaneio revela algo de mais importante: a confluência entre um tigre que vê o que um humano imagina: temos uma cadência de planos que nos leva da lula sufocando os animais do zoológico submersos à imagem surreal da mãe de Pi e do navio naufragado. É uma sequência que nos remete ao conflito das cenas finais, que comprova o que a princípio o escritor percebe ao fim: o tigre é Pi.

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Se Pi é o tigre, então, das duas estórias contadas no filme, a segunda versão, mais curta e crível, seria a verídica. Aqui temos uma teleologia capciosa. Se, por um lado, alguns detalhes narrativos poderiam provar por a + b qual é o “conto real”, por outro a estrutura fílmica montada por Ang Lee nos leva para um terceiro caminho: o de que nenhuma das estórias necessariamente anula a outra; o de que uma não precisa ser verdadeira e outra fictícia. Pois é da ficção que trazemos a resposta. Atentando-se estritamente à pergunta de Pi, é importante perceber que ele, ao fim de sua narração, não pergunta para o escritor “qual é a verdadeira estória?”, mas sim “qual você prefere?”. E é claro que, como escritor crente da ficção, ele vai escolher a primeira, a do tigre. Com isso, Lee abre um jogo entre a fé na arte e o ceticismo. Segundo as lógicas internas de As Aventuras de Pi, a possibilidade da fé em Deus reside na crença da criação e, se você acredita em Deus, então prefere acreditar na primeira estória, na história criada. E o escritor, como foi prometido ao início da aventura, recebeu a prova de Sua existência. Nós, espectadores passíveis de um paganismo herético, ficamos diante de um demiurgo em ação que desenha um buraco negro em uma floresta repleto de cores a se pintar.

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