Jornada ao Oeste (Xi You), de Tsai-Ming-Liang (Taiwan/França, 2014)

outubro 23, 2014 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Em Cartaz, Fabian Cantieri

* Cobertura do Festival do Rio 2014

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Tempo de olhar
por Fabian Cantieri

 “(…) o que torna o espaço um espaço vivo é a dinâmica, interdependência, o jogo bilateral tanto entre o pássaro quanto o céu, ao qual o espaço-temporal vivo, como um “aqui agora”, emerge como uma ambiência, onde cada um dos termos que entram na relação por sua atividade têm garantido o reconhecimento dos seus seres”

Shigenori Nagatomo

O primeiro longuíssimo plano de Jornada ao Oeste, de Tsai Ming-liang, é uma espécie de acordo tácito entre obra e espectador: desligue-se de seu mundo e calmamente relaxe para a imersão em outro. Há aqui um redimensionamento para uma temporalidade outra. Um close frontal de Denis Lavant, certamente deitado, com sombreados que seu próprio nariz constrói contornando metade de sua face. Nada é audível além de sua respiração calma. Há tempo para que os olhos sobrevoem seus poros marcantes, sua barba por fazer e suas rugas que evidenciam já uma certa idade. Desviamos a atenção para um lado do quadro e, quando voltamos ao centro pictórico de atenção, vemos sua íris toda negra, como infestando a área da esclera, mas talvez seja só algum ponto de luz que tenha obscurecido a região. Tantos detalhes em uma só imagem banal. Um rosto, mais um, em close up. Provavelmente a imagem mais reproduzida da história do cinema… ainda assim, com tantas minúcias para se observar. O quadro não se configura só pela permanência como uma ruptura de uma convenção de temporalidade, mas num duplo jogo entre duração e olhar.

O instante em que uma luz incide sobre um rosto é o tempo que temos para olhá-lo. Mas o instante seguinte, quando a sombra prevalece sobre alguma incidência dessa luz, é a evidência de transformação desse rosto, num lugar aberto, de um espaço girando enquanto o objeto se estagna, imóvel. É a evidência do tempo como existência, como presença. Nasce um personagem da forma mais crua e profunda possível. Ele está ali para estabelecer alguma relação futura com essa quarta parede que somos nós. O primeiro plano é um dos mais impactantes e enraizantes establishment shots já filmados do cinema.

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Não é coincidência que o primeiro plano seja destoante do resto do filme inteiro. Nunca mais veremos Lavant totalmente sozinho. Nunca mais teremos um close ou a pura ênfase na feição; adiante, vemos a relação pictórica de seus contornos junto ao da natureza, mas seu respiro e aquela intimidade serão abandonadas para sempre. O primeiro contato é de familiaridade, para que então possamos fazer o resto da jornada com a distância necessária que demanda o olhar.

O projeto de Tsai Ming-liang não tem amarras que se encerram neste Jornada ao Oeste. No Form e Diamond Sutra – dois projetos correlados de 2012, que não vi – parecem ser todos episódios com uma mesma estrutura narrativa e diegética, com Lee Kang-sheng. Certo mesmo é que Walker, do mesmo ano, revela um diálogo que se entrecruza entre os dois filmes, enquanto reafirma suas autonomias: existe um primeiro movimento de verticalização e um segundo de horizontalidade. Como Fábio Andrade dizia em sua crítica de Walker, Lee Kang-sheng  “’desce’ ao mundo de um lugar mais elevado que permanecerá desconhecido”, enquanto em Jornada ao Oeste o movimento está no horizonte, está na “passagem de bastão” de Lee para Lavant, na transposição de uma filosofia e de uma práxis oriental para o Ocidente. De Hong Kong a Marselha.

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Com atenção, pode-se reparar que existe um raccord sonoro entre o lento respirar de Lavant e o segundo plano de Lee, andando no que parece ser uma caverna – existe sempre uma imiscuidade super fluída entre ambas as figuras. Nesta caverna, onde o manto vermelho se destaca veementemente por sua saturação, há escadas, há a possibilidade de ascese para o mundo de luz, onde a praia não poderia ser melhor cenário, com o sol sendo sua figura emblemática de representatividade e a água como reflexo dessa incidência de luz que nos faz ver. Lavant em primeiríssimo plano, quase como parte desse cenário, como um traço montanhoso, ainda se faz distante de Lee. Temos esse ser oriental que se libertou da caverna em seu passo super lento para estar diante das idéias palpáveis e não fantasmáticas de sombra. A alegoria da caverna sempre foi a metáfora do cinema por excelência, e aqui temos o movimento de externalização da personagem confluindo com a nossa interiorização na sala de cinema. É o único processo de dialética do filme inteiro que reitera a atenção para um novo olhar.

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Entre planos esteticamente pictóricos, como a contraposição ton sur ton do fundo chapado rugoso vermelho-ocre para o vermelho de seu manto e a sua caminhada particular no reflexo de um pequeno espelho de uma casa, voltamos a perceber quadros com a disposição de um cotidiano onde o monge é inserido. Voltamos a ter a sensação ocasional de estar à procura de um Wally budista, e a nos impressionar com certas geometrias que renovam o ato de enquadrar, como o primeiro plano pós-praia onde um vidro – do nosso ponto de vista, um ilusório quebra sol – margeia o cais e a água, configurando uma área de arejamento para um espaço já aberto que só é claustrofóbico diante da nossa perspectiva. Não são só transeuntes vagando em uma determinada plataforma, mas uma construção arquitetônica de forças.

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Aí, voltamos ao primeiro plano e ao preceito inicial para repensar nossa relação diante de cada quadro: ao olhar que denota o espaço, um tempo de leitura e diegese. Lee não está vestido de monge à toa. O budismo parece querer encarnar uma chave de leitura para nós espectadores, para Lavant e para quem se defronta com ele no caminho. Na teoria zen-budista é impossível sequer pensar em tempo e espaço. Vivem, na verdade, como espaços-temporais integrados, inseparáveis. No zen budismo, tudo é efêmero, mas o tempo não é a imagem-reflexo da eternidade. O tempo não é medido ou mensurável. Nem mesmo pode ser pensado linearmente, eliminando também possibilidades de reversibilidade do tempo. Não há uma causa ou conseqüência. Para entender tal filosofia, não é possível dissociá-la do espaço – que existe no gerúndio. O espaço não é um contêiner, mas uma coisa viva. Existe um conto budista que diz que um pássaro voa no céu e o céu voa no pássaro. O pássaro e o céu só se tornam eles mesmos por suas interdependências. Um budista caminha no ritmo da natureza. O monge se integra àquele espaço e relativiza o olhar de quem o percebe. É uma comunhão que não deveria ser idealizada só com a natureza em si, mas com a cidade que gira em torno. Uma silhueta alaranjada do sol que o contorna e uma aura vermelha superheróica que rebate ao chão na sua descida hercúlea da escada é o maior sinal de sua possibilidade (é o maior plano, de grandeza, de inconformação da menininha). Lee completa seu percurso e sai de quadro pela primeira vez. Lavant segue seus passos. Cabe agora ao Ocidente fazer da travessia um campo do olhar renovado.

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