baronesa

“Na mão de favelado, é mó guela”

Baronesa, de Juliana Antunes, é um filme sem profundidade de campo. O que há para acontecer acontece, aqui, logo à nossa frente, com a cor barrenta do tijolo tampando o fundo, o mundo. O que interessa são estas duas personagens cativantes, Leidiane e Andreia, e como elas se relacionam com seus filhos, com Negão, com a comunidade. Perpassaremos quase o filme inteiro escutando suas conversas sobre banalidades, às vezes barra-pesada, mas invariavelmente coisas do dia a dia. É a palavra que abre as portas para aquele universo.

O cotidiano das personagens é possivelmente análogo ao de milhões de outras brasileiras, mas muito provavelmente distante da grande parte dos espectadores desse filme. Um cotidiano outro, também, em relação ao da diretora. No debate sobre o filme, ao pé da maioria encaminhando-se para a saída, Leidiane interviu, dizendo que precisava contar uma última coisa: quando as meninas começaram a ir filmá-las, a diretora levou um kit de primeiros socorros com mertiolate, band-aid e gaze para as gravações. Primeiros-socorros para uma locação de guerra.

A simetria de um filme de mulher para mulher é interpelada por esse outro abismo entre quem filma e quem é filmada. Esse abismo, se não é a fundação do documentário – com os Lumière havia uma curiosidade sobre a organização das coisas, dos gestos e da natureza que despertava a atenção do olhar, mas não estritamente uma distância social –, é a consolidação do gênero com Nanook, o Esquimó (1922) de Robert Flaherty. Se o cinema griersoniano estabeleceu uma espécie de curiosidade positivista, uma pedagogia sobre todas as coisas, foi Jean Rouch quem imortalizou a ideia do olhar de fora sobre uma cultura estranha. Num debate com Ousmane Sembène, quando confrontado sobre continuar fazendo filmes sobre a África, uma vez que, àquela altura, já existiam inúmeros cineastas africanos, Rouch depõe, “eu trago o olhar do estranho. A própria noção de etnologia está baseada na seguinte ideia: alguém confrontado com uma cultura que é estranha a ele vê certas coisas que as pessoas de dentro dessa mesma cultura não vêem”. A esse princípio clássico da etnologia, Sembène refutava: “vocês mostram, vocês fixam uma realidade sem ver a evolução. O que eu tenho contra você e os africanistas é que vocês nos olham como se fôssemos insetos”. Pedro Costa enfrentaria essa questão de uma forma um tanto prática: convivendo intensa e duradouramente com o outro. Ele é o estrangeiro amigo. Perdura anos em Fontainhas e ganha intimidade. O verniz do exotismo se dilui no tempo, alguma diferença substancial permanece. Estabelece laços e, ao longo dos meses, se “integra” àquela comunidade. Costa, tendo consciência das aspas, sabe que essa integração, se ultrapassa a página dois, perdeu partes do prefácio e não chega até o epílogo – sua formação é de fora, fricção sempre haverá.

A Vizinhança do Tigre, de Affonso Uchoa – ganhador da Mostra Aurora em 2014 – é filho desse cinema (e neto de Kiarostami que restabelece uma certa posição diante da realidade – pessoas quando dentro de um filme são sempre personagens, mesmo quando tomadas pela diegese como pessoas). Baronesa é sua irmã mais nova. Juliana e Affonso não chegam e saem filmando, mas ganham a confiança daquelas pessoas para poderem transformá-las em personagens. E o curioso é que, como diz Victor Guimarães sobre o Vizinhança em sua crítica, e que aqui pode se estender a Baronesa, “essa diferença não é celebrada em si mesma”. Há uma procura no interior das cenas por algo a mais que o fetiche da pura alteridade.

Já não é de hoje que o documentário dramatizado, esse tal gênero híbrido, alcança uma encenação mais naturalista que as nossas ficções mais realistas (Coutinho, sempre à frente, já percebia isso desde Jogo de Cena). Com o sentimento de materialidade das coisas mais vivo do que no próprio cinema neorrealista, vemos, com coração na mão, Andreia ensaiar um tiro em Negão. O velho cliffhanger da roleta russa ganha uma nova textura com o estampido oco de um tiro falhado. Ali, tudo era possível. O lado mais previsível dessa procura pelo “algo a mais” se dá quando os signos reafirmam-se como identificação de uma cultura atravessada: na cena em que as mulheres dançam, corta para Andreia empunhando uma arma imaginária ao terminar a coreografia. É o plano da lacração: o que estava embrenhado na duração do filme é reduzido a um gesto para redundar no sentimento de empoderamento feminino.

O arrepiante primeiro plano do filme é o anti-establishment-shot: a mulher que dança twerk ao som de MC Delano nos convida a adentrar aquele universo e depois praticamente some do resto do filme. Sua outra única cena fazendo a unha com Andreia parece banal, mas um detalhe nos marca: quando corta para um close, vemos em sua mão uma cicatriz. A cicatriz é a remissão a uma ferida – ferida com a qual, durante a projeção, jamais teremos contato direto. O que vemos em Baronesa não são feridas expostas, mas esse processo de cicatrização. Andreia já foi estuprada quando criança, já teve uma grande paixão e uma consequente desilusão na juventude que a fez “bloquear seu coração”, além de uma chaga recente que é seu irmão preso. Agora enfrenta, junto a Leid, uma guerra. Baronesa torna-se uma paradoxal Ythaca: meta para Andreia, estrada para Juliana.

Esse processo, apesar de ter cenas dialógicas a A Vizinhança do Tigre – a dupla cantando, a leitura de carta, o trabalho em uma obra, um homem fazendo a unha na mãe lá ou tendo a unha sendo feita aqui –, está todo calcado em particularidades sutis – além da cicatriz, há a fita negra amarrada nas madeiras que dá o tom de luto e antecipa o mood da guerra, e a tornozeleira aparente em um só plano que remodela a situação de Negão. A mise-en-scène não é tanto de uma instauração da fabulação, como no filme de Uchoa, mas um processo de reinvenção a partir das vivências que se tornam fagulhas centrífugas para o arranque da estória.

Quando já habituadas a este processo de invenção, vem a realidade reconfigurar o dispositivo: o barulho de tiros perto da locação faz as personagens correrem e a câmera segue junto, atabalhoada, por instinto. Esse atabalhoamento é o gesto que assume as contradições do abismo e reorganiza toda a estrutura cênica. A partir dali, o filme se aquieta, torna-se mais contemplativo e os silêncios observacionais predominam. Demolem-se as paredes claustrofóbicas, pavimenta-se uma nova estrada, distancia-se a velha comunidade, descortina-se o céu, reacende um novo horizonte. Depois dos tiros, a chama da invenção se esvai para dar lugar ao mistério da estrada, ao enigma dessa imagem por vir.

Se essa recorrente lembrança a A Vizinhança do Tigre nos parece, de início, quase inevitável pelas coisas óbvias – o método, o espelhamento de certas ações, o gesto de aproximação –, permanecer na memória deste contra-plano nos engessaria no que Baronesa tem de mais livre. A incidência do olhar de Juliana Antunes nos encaminha para uma outra reação diante do mundo: enquanto, em A Vizinhança, a morte de um e a prisão de outro obrigavam o filme a reagir a uma desolação completa pela melancolia intrépida de jovens marchando em seus skates ao som de uma gaita familiar, Baronesa, em seu último plano, inverte o tom de um simbolismo histórico: no lugar de remeter uma recém-nascida à ideia de esperança, convenção que um ser prenhe de futuro carrega, uma criança sem gênero é mostrada sozinha num quarto, num enquadramento que a isola e apequena, deslocada de qualquer mão que alguém possa lhe dar. Aquele respiro e o mínimo movimento sem sair do lugar são a imagem de um estrondo silencioso, invisível abalo sísmico de um dia póstumo.


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