A Vizinhança do Tigre, de Affonso Uchoa (Brasil, 2014)
janeiro 29, 2014 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Victor Guimarães
Juventude em marcha
por Victor Guimarães
É muito difícil começar um texto quando se tem uma consciência tão cristalina de que não estamos à altura do filme com o qual estamos lidando. E não se trata de modéstia alguma, mas da plena certeza de que A Vizinhança do Tigre nos excede, e precisará ainda de muito tempo entre nós para que encontremos a medida de sua beleza, e os meios minimamente justos de lidar com ela.
Essa ressalva necessária, no entanto, poderia levar a duas interpretações equivocadas, que vale afastar logo: a de que o filme de Affonso Uchôa precisasse de mais tempo – além da imediatez da sessão – para encontrar o peso de seu impacto em nós; e a de que se tratasse de uma obra excessivamente cifrada, que ainda precisasse inventar seu espectador no futuro. Nem uma coisa, nem outra. O golpe da experiência do filme é veloz e inadiável, e não é preciso chegar sequer à metade da projeção para que tenhamos uma certeza física de que o que está diante de nós é de uma potência avassaladora. Por outro lado, ainda que não tenha nenhum interesse na revelação do processo como motivo em si mesmo (um dos maiores vícios do cinema brasileiro contemporâneo), o filme tampouco faz questão de escondê-las: suas escolhas são precisas, luminosas, plenamente visíveis a olho nu. Se o filme pede mais tempo, é porque ainda tateamos diante do mistério de sua alquimia (se os ingredientes são claros, o ponto exato do cozimento é um milagre) e porque sua inserção em uma história possível, sua capacidade de fincar pé e permanecer para sempre, é algo que só pode ser, por agora, intuído.
Logo no início, o que vemos na tela é um universo bem delimitado, que se descortina aos poucos: o Bairro Nacional, em Contagem, com suas moradas simples, suas ruas escuras, sua arquitetura acidentada (feita de terrenos baldios, de casas em eterna construção ou abandonadas, de lajes que se abrem sob o céu) e um grupo de jovens que experimenta um momento singular entre a infância e a vida adulta: momento em que os ainda adolescentes já enfrentam os problemas da maturidade (e sonham com futuro incerto) e os mais velhos (já atravessados pelo peso da idade) ainda se permitem ser crianças, brincar enquanto o trabalho não existe. Mas se a premissa se assemelha a uma das maiores obsessões de nosso tempo (o retrato incansável da juventude periférica), o olhar é de uma novidade patente, que ainda é muito difícil de descrever. Já visto, jamais visto.
Em primeiro lugar, há uma mirada que exibe um desassombro completo diante do que se filma: nada do que é usualmente visto – de um ponto de vista distanciado e burguês – como uma diferença a ser celebrada em si mesma (uma condição, um traço, um sotaque, um modo de vida existente na periferia) é tomado como matéria a priori filmável, como gesto suficiente. A idéia da vizinhança aqui é crucial: o filme de Affonso Uchôa consegue a proeza de ser (finalmente) vizinho de seus personagens e de seu espaço, de se mover entre eles com uma desenvoltura impressionante. A fixidez do quadro não existe para lançar um olhar clínico, e sim para estar à altura dos corpos e dos espaços; a câmera na mão que se movimenta entre a perseguição prosaica nas ruínas pode, enfim, existir entre os perseguidores, irmanar-se com eles e jogar junto.
Não há carência que apontar, assim como não há beleza fácil a contemplar. Há um antigo verso dos Racionais – constantemente retomado, repetido, sampleado – que diz: “só quem é de lá sabe o que acontece”. E por saber o que acontece, como acontece, é que é possível esquecer o que se sabe e fazer acontecer outra coisa com o cinema: por saber desde sempre que a mexerica roubada é mais doce é que se pode transformar o roubo da mexerica em uma jornada sensorial e performática sem igual. Por não ter nenhum assombro diante de um adolescente que se droga pesadamente é que se pode construir, em sua casa, uma sequência tão belamente decupada, tão eficaz em produzir um clima nunca experimentado que, para o espectador, o que menos importa é o teor do que se esconde sob o papel alumínio. Ser vizinho é não se contentar com a superfície; é enxergar um quintal na periferia não como um objeto de contemplação imediata, mas como um convite para a dança.
É por isso que o compasso da observação, ainda que exista, não é bastante. A Vizinhança do Tigre exige mais de seus atores do que a própria existência na tela. Demanda performance e não se contenta com pouco: não basta que a esgrima com espetos de churrasco exista; é preciso que ela siga vibrando do início ao fim da sequência. Arrisca dramaturgia e, no entoar dos diálogos de uma tragédia fordiana, quer entrega e verossimilhança. O filme sabe que é preciso inventar algo com o que se inventa todos os dias, e isso que se inventa – com o peso e a leveza da forma cinematográfica – tem a necessidade premente de dinamitar toda previsibilidade – não para produzir um contradiscurso, e sim para criar, a golpes de cinema, um outro modo de habitar um lugar e um tempo.
Não se trata do retrato de uma comunidade, nem de um conjunto de biografias, nem de um ensaio, nem mesmo de uma história coletiva a contar. Ainda que haja um pouco de tudo isso, e por mais que exista uma intriga em jogo (e um arco dramático facilmente identificável, associado a outros gestos entremeados), o motivo central do filme, aquilo que A Vizinhança do Tigre persegue, desde o início e com verdadeira obsessão, não é uma narrativa, mas uma vibração misteriosa da experiência desses personagens, uma certa freqüência do mundo que o filme cria incessantemente junto deles, mas nunca chegará a conhecer inteiramente (e ainda bem): esse tigre imenso e incógnito que tinge de negro o futuro, mas que faz também com que uma comparação entre cicatrizes de bala e facada possa se transformar em disputa lúdica; essa força telúrica que lhes contamina de uma energia inesgotável (como esquecer o extraordinário plano do salto sobre o vazio?) e que espreita não do fora de campo, mas de dentro do corpo; essa fera indomável que transforma cada conversa amigável em uma metralhadora mútua de xingamentos (raiva e doçura na mesma medida) e que também pode ser o motor de uma trajetória trágica.
A Vizinhança do Tigre possui uma virtude que só pertence a pouquíssimos cineastas (Pialat, Kiarostami, Costa): a de ser um diamante meticulosamente lapidado e conservar, ao final da ourivesaria, sua brutalidade primeira. Seu gesto é o de um rigor extremo (enquadramentos precisos, geometrias insubstituíveis) que, no entanto, só existe para fazer a cena vibrar para além de qualquer cálculo possível. Para a montagem, a única medida para o que se torna imagem, plano, filme, são as intensidades: se há uma melodia trabalhada à exaustão, se é possível dobrar a aspereza do mundo à forma sinuosa do filme, é porque há a consciência bressoniana de que o vento sopra onde quer, e não há ciência mais bela do que adivinhar sua velocidade e sua direção e nos colocar diante delas. Após preparar um copo d’água benta para o filho que está em vias de se perder, uma mãe nos encara em mais um enquadramento certeiro, mas tudo o que importa é para onde seus olhos decidirão se mover, e por quanto tempo mais suportaremos o olhar trágico dessa Pietá improvável. Se não há fetiche do método (e muito menos do fracasso como programa), tampouco há crença na forma em si mesma.
E se o filme é moderno por filiação e princípio inevitável, sua aspiração tende ao classicismo: a janela nunca é mais importante que o mundo, ao mesmo tempo em que o mundo (esse mundo singular de corpos e coisas) só pode existir a partir da visão dessa única janela (não há outra possível). Juninho, aquele cheio de cicatrizes, aquele que já fora preso e agora enfrenta o dilema de uma dívida passada, passa esmalte nas unhas da mãe. Não há síntese mais poderosa de algo que nunca saberemos o que é. A Vizinhança do Tigre encampa, com desejo e liberdade, a impossível tarefa pasoliniana deixada aos cineastas do futuro: se a luz ofuscante do capital, se os holofotes do fascismo cotidiano aniquilam vorazmente as pequenas e intermitentes luzes que brilham à margem de tudo, é preciso ir novamente em busca dos rostos, dos gestos, das linguagens do povo.
Mas o que o filme de Affonso Uchôa compreende desde o primeiro plano é que essa eterna busca pelos vaga-lumes em vias de se perder só pode existir – por uma sorte de imperativo estético primeiro – se o que o cinema tiver a oferecer a esses jovens (e a nós) for poderoso o bastante para ser digno deles. Para estar à altura da luminosidade sem igual, do viço evidente, da colossal grandiosidade de Neguinho, Menor, Juninho, Adilson e Eldo, é preciso que a mise en scène se incendeie, encha-se de vigor, seja enorme. Eldo, o metaleiro que tentava amansar seu próprio tigre na violência doce de um mosh, toca sua gaita na noite e a melodia suave, sem melodrama, atravessa o escuro e contamina a sequência em que Menor e seus amigos enchem o quadro com seus skates que deslizam calmamente pela rua e seguem sempre adiante. Eles continuarão em marcha, e nós não os esqueceremos mais. Nunca mais.
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