subybaya

“Não adianta subir Bahia sem descer Floresta”

Subybaya abre, em sua primeira cartela, com o questionamento: “O que é ser uma mulher?”. Virginia Woolf, autora da citação, diz não saber. Este escriba está longe de saber e também tem dúvidas, assim como Woolf, se qualquer pessoa responderia tal questão com unanimidade satisfatória. Além do mais, não sei se realmente precisamos “saber”, visto que este saber aí está relacionado a uma compreensão catalogadora do termo. Há a concepção mais firme de Simone de Beauvoir de que “mulher” é uma construção – em geral patriarcal – para delimitar o lugar e o papel da fêmea da espécie humana na sociedade. De um lado, falar sobre é expandir em pensamento, normalmente uma abertura produtiva. Mas, por outro, definir o termo pode também, nesse caso, ser uma instrumentalização perigosa e castradora da própria condição da mulher. O que pode vir a ser a liberdade feminina ganha limites e contornos.

No fundo, o filme sabe que não pode e nunca vai pretender responder tal questionamento, mas sua inflexão inicial revela muito sobre seus procedimentos. Subybaya é um filme em espiral. Há uma circularidade metalinguística que aponta reiteradamente a impossibilidade de dar prosseguimento ao filme sem que se caia na própria armadilha montada. É como se desenhasse uma linha de chegada no milímetro anterior a um precipício: se correr até ali, não há freio que evite a queda. Ela, portanto, além de inevitável é planejada.

Esse gesto suicida é raro no confortável cinema político brasileiro recente. Enquanto um manancial de filmes se contenta em pregar redundâncias a convertidos, Subybaya encara e fustiga um núcleo relativamente consensual da dissensão. É um filme de embate e, mais ainda, um filme de crise. Mas uma tentativa de problematizar as problematizações de gênero também pode ser problematizada. Especialmente pelas condições de hoje que não perdemos mais de vista: uma figura de autoridade querendo relativizar um movimento tão silenciado ao longo da história. Ele o faz, consciente do seu lugar historicamente opressor, mas essa consciência não o redime desse mesmo lugar; eis a contradição. O filme, apesar de se blindar da crítica, precisa dela para poder existir. Se Subybaya diz, ao largo de sua duração, que tudo pode ser problematizado, inclusive a problematização descomunal, então não cabe à crítica amansar o torvelinho dessa extrema consciência, mas penetrá-lo para enxergá-lo por dentro em todo seu movimento. Só assim saberemos o quanto de grama arrasada é renovação ou apenas destruição.

O arco do filme é o processo de empoderamento feminino. A trajetória da protagonista é o desdobramento da segunda cartela, a famosa máxima de Beauvoir: “não se nasce mulher, torna-se”. Subybaya nasce com uma porta de banheiro escrito “ELE” abrindo para que a protagonista entre em cena, indo ao encontro da investida de um homem atirado, potencialmente babaca (a segunda cena nos dá mais garantias ainda), que a impede de passar pelo corredor. Ela pode não ser uma puritana, mas também não quer se envolver, a princípio, na suruba da festa. Essa professora de geografia está se abrindo para o mundo e isso em Subybaya se dará de forma eminentemente sexual. Ela começará a seguir o conselho de sua amiga “transando primeiro, para depois se apaixonar”. Numa festa tardia, isso chega ao ápice com a personagem dançando, pegando geral, comendo uma maçã. Poderíamos nos lembrar do pecaminoso feminino, mas também de como a fruta do pecado original vem da árvore do conhecimento e que, num enfrentamento a Deus só aventurado pela mulher, trouxe-nos uma independência moral.

Para além do diálogo metalinguístico entre um dentro e fora, há uma contradição especular na forma. No meio do filme, duas cenas em boates – este espaço eternamente desafiador da verossimilhança ou da diegese – clarificam esse procedimento. A composição da primeira delas, na exata primeira meia hora do longa, gera estranheza e familiaridade: em vez do habitual plano fechado para esconder os poucos recursos que adornariam o espaço de bonança e presença, a frontalidade de um plano aberto que enquadra as duas meninas dançando no batido chão quadriculado. Elas são as únicas que dançam, numa configuração de isolamento diante de uma mesa à esquerda que não interage, às costas de alguém de camisa florida mal enquadrada na direita e uma bartender produzindo movimento no fundo do quadro. A triangulação de personagens, seu entra-e-sai, e o troca-troca da amiga com o peguete, é rígida, sem nuances – uma rigidez que já havíamos visto na segunda cena do filme, com um rapaz tocando piano, como em chanchadas ou muitos filmes da Boca do Lixo, contrastando um realismo à pantomima da encenação. A arte poderia ter sido roubada da primeira festa também: vodcas empilhadas lado-a-lado, pisca-piscas vermelhos e luzes refratárias coloridas no salão. A secura indigente dos irmãos Pretti aliada à austeridade descolada de Anita Rocha da Silveira. Existe uma clara ausência no ar, mas tomá-la como defasagem é como atacar a atuação de um Falsa Loura, de Carlos Reichenbach, autor em constante diálogo com Subybaya. Temos a instauração de um conto rohmeriano, mas é também difícil não reconhecer uma fração de imaginário cinematográfico brasileiro dos últimos dez anos. Por outro lado, a outra cena, com a soltura da câmera na mão e a liberdade da decupagem, cria um jogo de luz sobre cor no digital borrada pelo shutter da câmera, desdobrando o que mais havia de interessante nos curtas de Leo Pyrata. Ao signo da maçã, uma manipulação videoclíptica que pinta cores em flashes nas Evas e Adãos bissexuais dá uma onda, aproximando-nos um pouco mais do provável m.d. que a personagem toma (a ver pela água e o tesão). Uma onda, intensa que seja, ainda dentro do registro de mais um filme de festival.

Esse registro, por mais que tenha toda uma sustentação teórica fundamentada por uma certa tradição do cinema brasileiro, às vezes ainda parece incapaz de tecer uma desenvoltura sensível própria. A justificativa dos fins faz tudo parecer se encaixar nos propósitos da autoria, mas não corrobora com o pleno potencial da narrativa. A cena do gozo e sono é para ser clichê, e o é também, em todas suas conjecturas, previsível; o cara da cerveja artesanal é para ser um pé no saco, mas se a relação que se estabelece toma proveito dessa chatice é mais para alastrar-se à cena deixando a personagem ainda mais sem sal; o diálogo rohmeriano da camisinha feminina tem um contra-plano atípico, com a amiga meio de lado, meio de costas, mas essa dimensão de estranheza curiosa não reverbera à duração da cena e se encastela isolada. Por outro lado, a música é seu grande feito, sua grande habilidade de pôr em cena. Carrega uma aura maior que seu cinema. Além da imersão sonora fundamental que nos embala em cada festa, é o som, por exemplo, que dá algum sentido à falta de expressão (bressoniana ou não) da corrida pelas ruas de Belo Horizonte.

Esse registro se quebra pelas vozes ecoando fora de quadro na cena da louça suja – esse eterno chavão machista do lugar da mulher – e se implode quando as meninas no cineclube que assistem a Subybaya ganham fisionomia. Ali há um processo aparente de leitura espontânea do próprio filme, aliada à consequente ficção que as leva a se vingarem do “diretor estuprador”. Um filme que “ainda é o lugar condicionado pelo cara” de um “diretor homem, [que] quer mostrar que é desconstruído e então ele faz um filme ‘white people problems’”. A metalinguagem se exponencializa quando uma retruca “quanto mais você vê desconstrução, mais você vê machismo na cena”. Só vemos “erros na tentativa de acertar”? O que, afinal, a desconstrução permite construir?

Talvez valha ainda desconstruir uma ideia mais radical: o que ele constrói sendo desconstruído? Lembremos: o palimpsesto metalinguístico é tão interminável que o filme não nos permite nem mesmo associar, a rigor, a autoria a uma pessoa tangível – Leo Pyrata supostamente é a figura do autor que dirige o filme e, a certa altura, vai para frente das câmeras interpretar um “diretor estuprador”, mas não esqueçamos que seu próprio nome é um pseudônimo, um nome artístico, uma persona. O que ele constrói? O vislumbre da impossibilidade. Importa menos quem ele é, mais sua mise en abyme de incorrências autoritárias. Se ele consegue fazer um filme feminista (ou não-machista), isso não importa, é cair na proposição errada dos termos. Seu labirinto do labirinto borgiano, “que se abisma e se eleva ao infinito remoto”, revela que as relações de poder não têm como serem quebradas apenas invertendo os eixos da proposição – neste caso, homem-mulher –, se acaso ainda houver autoridades ditando o que fazer. No filme, seis mulheres feministas colaboradoras do roteiro dizem o que fazer – elas surgem para criticar, mas, ao fim, não há reversão do quadro. Inverter o valor das cores das peças do tabuleiro pode mudar o ganhador, mas não resolve o problema do jogo. Ou se joga o tabuleiro para o alto, ou se pensa num mecanismo onde as cores das peças não se sobreponham umas às outras. Niilismo, anarquia ou morte.

Subybaya se faz espelho não só dele mesmo, como do mundo. Não se propõe a ser alternativa utópica. Mais nega do que propõe, mas enxerga uma brecha escapatória. Ao fim, vemos as meninas feministas acharem justeza na violência. Sua funcionalidade de contestadoras, ao mesmo tempo que legitima o autor, as despersonaliza. Entram no filme para se tornarem vingadoras do estupro e, se juntando ao rol do cinema brasileiro recente, nos dão a catarse redentora. Só que, aí, há novo curto-circuito: elas não batem exatamente nele, mas em nós, espectadores – vemos em subjetiva seus socos e pontapés direcionados a nós. Estas meninas, que ganharam ares dramáticos de personagens insuspeitas, se preenchem de ódio, com exceção de uma, que apenas o encara. Um olhar de nojo, de desprezo, mas também de decepção. A recorrente decepção em nos dar o leme do mundo. A essa total desilusão, um cantor reagiria insistentemente: “mulheres do mundo assumam o controle, por que senão o mundo vai chegar a um fim. E não vai demorar”. O bom senso do apelo não está somente na pureza da inversão em si, mas na consciência esperançosa de que, quem sabe, só elas terão a calma necessária para fazer a mais justa das matemáticas: no jogo de forças, diluição é multiplicação.