anna

Mais que um filme

Anna é um filme. Anna é uma jovem italiana, grávida, que encontra na praça Piazza Navona, em Roma, o cineasta Alberto Grifi e o ator Massimo Sarchielli. Este último convida Anna para vir à sua casa e realizar um filme. Anna, o filme, é o resultado do encontro da visão destes homens de cinema com esta jovem mulher. A este trio, se adicionam uma ampla fauna de tipos humanos dos mais variados, habitantes desta praça pública onde cada um faz suas considerações sobre política, a situação da Itália no período (os anos 1970) e sobre Anna. Anna é uma estranha espécie de retrato caleidoscópico de um tempo, de um lugar, de um país, de uma situação e de um modo de ver, onde nada está propriamente definido, só o próprio estado da indefinição generalizada.

Se o trajeto tradicional de apresentação de um personagem tenderia a nos levar, com o passar do tempo, a uma aproximação, a um grau maior de “conhecimento” desta personalidade, algo diferente ocorre aqui. Passadas as mais de três horas de projeção, a impressão é que, mesmo tendo partilhado por muito tempo da sua presença na tela, sabemos cada vez menos sobre Anna. Anna narra uma saga de ausência, de um distanciamento, de uma impossibilidade. Algo com uma “maldição” parece acometer esta personagem: quanto mais ela é vista, menos é compreendida, decodificada, percebida em seus próprios termos. Mesmo a fascinação da câmera de Alberto Grifi pelo rosto de Anna não consegue retirar dele nenhum segredo, nenhuma idéia fixa com a qual possamos descrevê-la seguramente. Anna se torna uma espécie de mote para uma exploração sobre como se relacionar com a alteridade e como narrativizá-la de maneira deliberadamente esquizofrênica.

Anna recorre a inúmeros expedientes para desnaturalizar a representação. Apresentação do filme já introduz um dos tabus do documentário tradicional: a reencenação. Massimo, ator que trabalhou com Fellini, Fulci, entre outros, conversa com Anna na Piazza sobre como encenar seu primeiro encontro para a câmera. A partir daí, nenhuma ingenuidade sobre uma certa espontaneidade ou pureza do registro é possível. Anna funciona por camadas, por um acúmulo de níveis de encenação e discurso que vai se formar justamente pelo amontoado de imagens e palavras, onde opacidades e transparências estão em choque permanentemente. Algo decisivo na direção desta evidência de uma face artificial é o uso pioneiro do vídeo, transferido para película 16mm e recentemente restaurado para vídeo digital de alta definição. A textura das imagens é instável, borrada muitas vezes, quase ilegível em outras, precária. Esta dimensão da materialidade do registro não cessa de nos lembrar da intransponibilidade da tela que nos separa e que separa Anna daqueles homens.

A porosidade do filme, que varia entre a face da jovem que resiste a qualquer síntese e uma profusão de discursos, de narrativas destas figuras que duram o tempo de suas falas, cria um trânsito caótico que é contraposto por uma espécie de muro. A imprevisibilidade de Anna inspira a dinâmica selvagem de Anna, porém, acabado o filme, desapertado o botão “gravar”, Anna existe, persiste, sobrevive. Um dos eixos que baseia boa parte da discussão ética do documentário é justamente a sobrevivência da pessoa filmada para além dos limites do filme. E, neste sentido, poucos filmes são tão dúbios em relação aos seus personagens como o filme de Grifi e Sarchielli. A regra aqui é da exposição. Anna é um convulsivo estudos sobre os limites: os limites da representação, da ética, do poder sobre o outro, da formas discursivas, da crueldade e do fascínio. Anna ultrapassa todos eles, em seu nível mais alto e mais baixo. É a documentação deste ultrapassar a partir de um experimento com o real que chama o abjeto e o sublime à baila simultaneamente.

Depois de sua conclusão nos 1970, o filme pouco circulou ou teve maior repercussão. Recentemente, a restauração do filme suscitou um debate que parece ainda maior que à época de produção. Toda uma cultura do cinema documentário como campo de invenção e expressão artística que se consolida e ganha outra escala a partir dos anos 1990, constitui um cenário ideal para vivenciar um filme como Anna. A importância de vê-lo hoje repousa na maneira como consegue desdobrar-se em ser testemunha de si, de seus logros e falhas, ao apostar na exposição de suas variações e incoerências, que nos são oferecidas como evidência do fracasso de um desejo de aproximação. Anna funciona como um testemunho ao avesso da união das falhas do Estado e da arte em negociar com modos de vida para o qual eles não estão preparados previamente. O gesto de Anna é justamente o de se entregar a este movimento de abismo, de tentar “falhar melhor”, mesmo que a relação nunca se dê plenamente. A garota se vai, o filme se esfumaça até desintegrar-se de nossa vista, e o que sobra é justamente este desejo, destrambelhado, selvagem, errático, às vezes, de se entregar a uma experiência de amplitude de sentimentos e sensações que não se imaginava possível. Não é menos que isso o quê Anna e Anna pedem de nós: “ir para o outro lado”.


No dia 17 de Dezembro às 16h, a Sessão Cinética exibe Anna, de Alberto Griffi e Massimo Sarchielli (Itália, 1972-1975) no Instituto Moreira Salles – Rio de Janeiro. A sessão será seguida de debate com os críticos da revista.

Uma vez ao mês, a Cinética faz uma sessão no Instituto Moreira Salles, no Rio de Janeiro, abrindo mais um espaço de reflexão e apreciação de filmes fora do circuito exibidor tradicional. A curadoria tem a intenção de programar obras importantes, de circulação restrita nas salas brasileiras, respeitando ao máximo as características originais de projeção de cada filme. Além disso, críticos da revista produzem textos especiais para as sessões e mediam um debate após a exibição.

A Rotina Tem seu Encanto será exibido em DCP.

Ingressos: R$ 8 (inteira) e R$ 4 (meia). Vendas na recepção do IMS-RJ e no site ingresso.com.