L’Apollonide – Os Amores da Casa de Tolerância (L’Apollonide – Souvenirs de la Maison Close), de Bertrand Bonello (França, 2011)

maio 16, 2013 em Em Pauta, Fábio Andrade

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A invenção do cinema, ou, uma genealogia do fim
por Fábio Andrade

“I don’t recall your face anymore
But you left behind your mask
If I were to die with these things gone
I’d be frozen with a smile”

“Life Goes Off”, Jim O’Rourke

Parte II: A pequena morte

Começo de L’Apollonide, de Bertrand Bonello, 2011:

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Uma câmera em carrinho lento adentra um corredor com quadros na parede, luzes em âmbar difuso e mulheres a sair pelas várias portas. O corredor é a travessia para este outro mundo (de amor, ou melhor, da simulação da experiência do amor; de uma encenação) que desponta na profundeza da tela – o mundo do filme, certamente, mas não seria surpreendente se a porta ao final do corredor levasse a uma sala escura tomada por fileiras de poltronas acolchoadas, cortadas pelo ínfimo raio de luz de uma projeção de cinema. Mas não, não chegaremos até lá, ao menos não neste primeiro e interrompido movimento para a frente (sempre pra frente). Ainda é cedo, cedo demais, e a esta altura o cinema, o que vemos na tela, não é mais do que um esboço de vontade do mundo. No trajeto, uma das moças da casa de tolerância leva um cliente para um quarto, onde ambos viverão seus respectivos sonhos – e a esta altura todos já sabemos que todo sonho é moldado da mesma argila do desejo. “As coisas não mudaram por aqui”, diz o cliente. “Mudaram sim. Mas aqui elas mudam lentamente”, ela afirma.

Logo percebemos a peculiaridade deste corredor, desta casa de tolerância: todas as portas levam ao cinema. Todo quarto aqui é uma espécie de câmara escura, de corpos claros sobre fundo negro, espaço de projeção em época em que os peep shows ainda não tinham sido inventados, e em que todo quarto dos sonhos trazia a ameaça do toque. Uma forma de proto-cinema, talvez, de role playing erótico. Questão de Homem e de Mulher – a mesma que vai motivar o truque de mágica de George Méliès, o primeiro a descobrir o potencial feiticeiro da mecânica cinematográfica, e de como ela poderia curar um dilema urgente e insolúvel para o homem daquela época. “Enquanto ele estiver imaginando a mulher (em vez de a criando), ela sempre será vítima de sua mágica, sujeita às suas transformações: desta maneira, o jovem George espera ter sobre ela poder equivalente à necessária capacidade que ela tem de se lembrar e de, como uma Mãe, restaurá-lo” (Stan Brakhage, “George Méliès” in “The Brakhage Lectures”).

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Ela afrouxa o vestido e, sem palavras a princípio, lhe conta seu sonho: um sonho em que ele é um outro, com a máscara que ela coloca, na ilusão de um corte, em seu rosto. O sonho de que a criatura pudesse dominar o criador (Metrópolis; 2001 – Uma Odisséia no Espaço; e toda outra leitura de Frankenstein), de que a escrava pudesse não só criar dependência no senhor, hegelianamente, mas de fato dominá-lo. Para o sonho (de atriz) se realizar, ela se oferece feito um casulo a ser preenchido com o que ele desejar, até lhe escorrer pelos olhos: a puta se oferece como esposa, no desejo de uma esmeralda em caixa de feltro. “Mas George, um homem muito preciso, não estava satisfeito com esse esboço de mulher” (Brakhage) e seu sonho, saberemos, lhe custará caríssimo: o preço de transformar um rosto em máscara é ter de usar, para sempre, uma máscara feita de rosto. O preço do desejo do século XIX é o século XX e a malaise que tomará diferentes rostos no filme (as feridas da sífilis, o ópio, a falência, o surgimento do espírito do auto-empreendedorismo com a chegada e a partida de Pauline, a menina mais jovem que vai e vem seguindo apenas sua livre vontade). Já perto do fim, o terrível fim, o excitante fim, um dos clientes do baile de máscaras conversa com uma das mascaradas. “O que você é debaixo desta máscara?”, ele pergunta. “O que você quiser”, é a resposta, a única possível. Com um estilete entre os lábios, o homem molda a mulher na mulher que ri – ou em uma boneca, ou em uma gueixa, ou molda uma atriz no papel de uma puta, ou de uma mulher do século XIX. Neste jogo de projeções e desejos, o cinema é inventado com o golpe de violência de um letreiro: “o crepúsculo do século XIX”.

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Em L’Apollonide, o limite do cinema é seu próprio começo: um evento traumático, tão traumático quanto qualquer morte ou nascimento. É apenas um entre vários outros filmes contemporâneos que, na certeza do vídeo e do desparecimento da película, se voltam à ontologia da invenção do cinema, do aparato cinematográfico – aqui, mais pelo viés social e cultural do que propriamente técnico/tecnológico – para tentar entender de onde veio e para onde ainda é possível ir. Este evento, este primeiro movimento de câmera (pra frente, pro futuro) no corredor, se repete feito um vórtice, em um jogo de pontos de vista que remete ao de Elefante, de Gus Van Sant, justamente por adiar a tragédia inevitável: um filme não existe sem vítimas, sem cortes, sem cicatrizes que rasguem os planos de realidade em um presente congelado feito passado, exibido feito passado no presente.

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L’Apollonide, muito expressivamente, se passa na virada do século XIX para o século XX, anos marcados pela invenção e consolidação do cinematógrafo e de tudo que ele representava, mas termina no presente, nos dias de hoje. Mais que um dia, uma data, é um espírito de época que interessa aqui – espírito capturado não só na biografia ficcional que Brakhage faz de Méliès, mas também na própria invenção e difusão do cinematográfo pelos Lumière, todos eles sujeitos que poderiam estar entre os clientes desta grande casa de tolerância (em nome do futuro!) que é a França do final do século XIX. Espírito que, em um corte brusco para o vídeo, passado o fechamento da casa de tolerância, Bonello oferecerá como contraste aos nossos dias. Mas por que voltar ao princípio? Por que, depois de tantos avanços, tantas vanguardas, tantas redefinições, se faz necessário retornar, heideggerianamente, à origem do cinema, para, mais do que investigar, reafirmar seus motivos (ou álibis) de fundação? Afinal, L’Apollonide é, hoje, um documento do passado, ou uma reflexão sobre o presente?

Se é necessário ir à ontologia, às razões de criação e existência do cinema, é preciso vinculá-lo a um momento em que o tempo – logo, a finitude, o “fim” da metafísica constatado por Nietzsche e todo o século que se seguiu (mas talvez não mais) – acabava de se tornar a principal moeda corrente. É preciso atrelá-la a um espírito de época que decorre das invenções modernas, da máquina a vapor, das tentativas da burguesia de decupar o movimento dos animais para se movimentar com maior facilidade e ganhar mais dinheiro, mais rápido. É preciso voltar a Ciotat e reafirmar que o cinema é, sobretudo, questão de trens. Na antecâmara do apocalipse final de L’Apollonide, um dos personagens diz ter ido à inauguração do metrô (ou será da Metro?). “É terrível. É escuro, as poltronas são duras e é tudo tão funesto. As pessoas pareciam tão felizes. Estupidamente felizes. Eles adoravam percorrer os subterrâneos de Paris!”. O mesmo poderia ser dito do espectador de cinema contemporâneo, solitário em um cinema vazio onde se projeta L’Apollonide. Em seguida, ele lamenta o fim da casa de tolerância, ao que a dona responde (e mostra, em vídeo, nos planos finais): “o amor hoje está nas ruas. Está em todo lugar. Não se pode evitar”.

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Se a moeda de troca deste vazio presente é a mesma, se a tentativa do cinema de superar a si mesmo ameaça redundar no fim do próprio cinema – contra o qual esses filmes “ontológicos” se impõem como inabalável resistência, como violenta reação – talvez seja possível encontrar razões, explicações de “o que deu errado”, também na tentativa de superação da metafísica e em seu avanço na História, na investigação de o que permanece após a morte de Deus (ou a sua incompreensão), declarada por Friedrich Nietzsche pouco mais de uma década antes da invenção do cinema. “Então se faz necessário, porém, um movimento para trás: em tais representações ele (n. do a.: o homem pós-metafísico) tem de compreender a justificação histórica e igualmente a psicológica, tem de se reconhecer como se originou delas (n. do a.: das questões metafísica) o maior avanço da humanidade, e como sem este movimento para trás nos privaríamos do melhor que a humanidade produziu até hoje. (…) aqui também, como no hipódromo, é necessário virar no final da pista” (Nietzsche, em “Humano, Demasiado Humano”). Não é muito diferente da definição de contemporâneo de Giorgio Agamben que, há quase dois anos, usava como abertura de um texto sobre Caminho para o Nada, de Monte Hellman, e Cópia Fiel, de Abbas Kiarostami, filmes que se juntam a L’Apollonide e Crazy Horse, de Frederick Wiseman, nesta destemida frente de resistência.

A questão do cinema (crítico) hoje não é, portanto, confirmar este ou aquele pressuposto (linhas demais já foram desperdiçadas exaltando ou condenando o filme de Bonello como um libelo feminista, mas eu não desperdiçarei mais do que um parênteses com todas essas linhas), de interpretar moralmente um travelling pela afirmação ou pela negação, mas sim de prover consciência de que essas forças estão permanentemente em conflito na cena. Se o espectador de cinema é, hoje, o viajante triste (mas que se acredita feliz) dos trens do presente – um trem que começou a andar muito antes de sua chegada, e seguirá em movimento depois de sua partida, sabe-se lá para onde – o cinema hoje assume a responsabilidade de mostrar como e por quais razões ele foi parar ali. Para isso, é necessário atrelar cada imagem de L’Apollonide a uma genealogia: o cinema que vemos é o mesmo dos museus e dos nickelodeons, da grande arte e do divertimento barato, da sensualidade bruta e trágica que a câmera propaga justamente ao sugá-la dos corpos, vampirizando qualquer coisa que tenha a ver com vida, retalhando rostos para transformá-los em máscaras (mortuárias) que sorriem. O cinema dos filmes “científicos”, das cirurgias e das trepadas em close (ou não), dos duelos do faroeste e do coelhinho, o pobre coelhinho por quem Godard fazia luto em seu Histoire(s) du Cinema, morto com um tiro na fuça por um plano primoroso de A Regra do Jogo, de Jean Renoir. O cinema que é, necessariamente e ao mesmo tempo, um encontro com a morte e um passatempo erótico, remetendo o termo francês para orgasmo que ecoa como subtítulo deste texto.

O baile de máscaras (ou o motim das aparências), que é o próprio cinema, é justamente esse espaço de fantasia e do alto preço a se pagar por elas: matar um momento do mundo, empalhando a carcaça em um pedaço de celulóide. E o cinema carrega consigo essa ambivalência fundadora, essa possibilidade de, seja ao registrar pela primeira vez o movimento dos animais nas placas de Marey ou ao encenar um bordel em toda sua exuberância de caixão, revelar as forças que estão em jogo. Corpos opulentos a se exibirem, distribuindo tufos de pelos pubianos como iscas de adesão a uma imagem de mulher já congelada no passado… para, ao fim, se emparederem em rostos petrificados que fitam a câmera em absoluta autonomia, impenetráveis, indecifráveis, indomáveis como uma pantera solta da coleira (“ela é fêmea!”), com os falsos rasgos que fizeram em seus próprios rostos.

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Em L’Apollonide, o espectador, com os olhos fixos na tela e a mão enterrada dentro das calças, é colocado no único lugar que lhe é de direito: o dos clientes. “Vamos fazer comércio?”, pergunta uma das raparigas, mercadora de si mesma. Não há identificação possível com as moças, com as máscaras de moças, pois somos nós a jogar-lhes moedas e a banquetear com suas vísceras e sensibilidades. Há semelhanças cruéis entre a câmera – ferramenta científica, antes de qualquer coisa – e o espéculo do ginecologista que, violentamente, faz uma das garotas desejar nunca mais fazer amor. Se o olhar direto, fixo e carnal de um dos clientes para a intimidade de suas contratadas pode trazer revelações dignas de páginas e mais páginas de Henry Miller – e o mundo que sai dali de dentro, de dentro da origem do mundo, pode ser experimentado como poesia, como epifania – à câmera a devassidão da superfície não pode fazer mais do que manifestar uma doença, condenando um corpo jovem e pulsante às feridas da sífilis, ou transformando o antro de prazer, dor e poder que é a própria cena cinematográfica na câmara funerária que ela também, e inevitavelmente, sempre será. Nesse sentido, a cena essencial de L’Apollonide é justamente a que traz a mulher que ri para uma espécie de freakshow da alta burguesia parisiense, que tem como aparente contratante, como a figura a arrancar-lhe a roupa e beijar seu corpo em marfim, o próprio Bertrand Bonello, como se a reafirmar que não há isenção possível quando se toma parte neste duro espetáculo… nem a eles, nem a nós.

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É uma demonstração de consciência do seu papel de algoz (e, acreditamos, de que há boas razões para isso) que talvez só encontra paralelo no cinema recente na revelação da quarta parede em Caminho para o Nada, de Monte Hellman, quando Mitchell Haven aponta a câmera para “nós” e o único contraplano possível é a equipe do filme, filmando aquela cena. Como em Caminho para o Nada, em L’Apollonide existe também um duplo movimento. O primeiro é justamente o do escancaramento da natureza perversa, quando não pervertida, do próprio cinema, capaz de alimentar os mais famintos cães de nosso instinto, no desejo por eternidade estampado na fugacidade de um fotograma pós-metafísico. O filme parte dessa convicção sem camuflar o lado fetichista, diria até necrófilo, da operação, que precisa ser chamado à responsabilidade. O segundo é o de colocar essa ambivalência em uma perspectiva que não só inclui a história e ontologia do cinema, mas a transcende: não há cena mais dolorosamente funesta em L’Apollonide do que a do paraíso perdido, com as moças nuas e rechonchudas se jogando em um rio já passado pelas ninfas da mitologia grega, e por todas as banhistas cujos cadáveres ainda bóiam na história da arte, em instantâneo de prazer e intimidade vorazmente surrupiado de seu direito de permanecer banal.

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A câmera é apenas este novo artefato, este dispositivo (cheio de particularidades próprias, inclusive) que também se apropria da vida para transformá-la justamente no que não lhe tem qualquer serventia: eternidade. Mas o que decidimos guardar deste mundo? L’Apollonide faz uma operação interessante, alternando entre a observação lumièriana do cotidiano das moças para o congelamento de poses nos encontros privados, dentro do quarto, até chegar na apoteose da aparência com o baile de máscaras. Essa desenvoltura em, ao mesmo tempo, presentificar e catalogar diversas modulações da arte cinematográfica chega, por fim, ao esgotamento da casa esvaziada, passando a chave que manterá os fantasmas daquele lugar trancados, onde eles devem estar, presos àquela ambiência, àquela atmosfera, e aos crimes ali cometidos em nome do tal desejo de eternidade. Cada coisa no seu lugar.  “Mantenha as flores, os tecidos, as cores, a música” diz um dos clientes à dona do bordel, em uma das falas centrais de todo o filme. O cinema manterá.

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Foram-se os rostos, sobram as máscaras. Pode-se beijar uma máscara, amar uma máscara, e a máscara nunca será um rosto… ainda assim, a máscara é tudo que temos, e, diabos, ela não é linda? Mas as máscaras, no cinema, são dotadas de uma particularidade intimamente ligada à perversidade de sua natureza: elas nos olham de volta. Por mais que o fotograma, a superfície, não tenha vida, há por trás os olhos metidos nos buracos – buracos feitos onde os olhos deveriam estar. E por esses buracos, esses recortes, as vítimas do banho de sangue do qual somos cúmplices nos encaram de volta, com olhares capazes de penetrar até a profundeza mais perversa de nosso desejo. O olhar não é de súplica, ódio ou piedade, mas de uma absoluta e intransponível autonomia. Ali, esperando em fila para deitar na maca e abrir as pernas – para nós, sempre para nós – as moças, só máscaras, nos encaram. Naquele breve ínterim entre duas mortes, pré e pós projeção, elas existem. E não fazem outra coisa que não esperar para morrer, de duas em duas horas, a cada nova sessão, com rostos luminosos que fibrilam, até serem lentamente apagados, tragados pelo fundo escuro que esconde os caprichos em negro e bordô de todo aquele décor. A questão do espectador passa a ser reconhecer sua parcela de culpa nesses assassinatos, para então escolher se continuará dentro do trem, acreditando-se feliz, estupidamente feliz, ou se sairá às ruas no final, mesmo que seja para perceber que, a despeito da textura, dos carros e da poluição, tudo continua no mesmo lugar. A questão é decidir se aquelas mortes serão ou não em vão.

Parte I – O princípio aparente – Crazy Horse, de Frederick Wiseman

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