Crazy Horse, de Frederick Wiseman (EUA/França, 2011)

maio 16, 2013 em Em Pauta, Fábio Andrade

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A invenção do cinema, ou, uma genealogia do fim
por Fábio Andrade

“Não mais cremos que a verdade seja ainda verdade sem véus, vivemos excessivamente para isso. Exigimos a decência de não querer ver tudo nu, de não assistir a tudo, de não buscar compreender a tudo e tudo ‘saber’. (…) Ah! Como esses gregos conheciam a ciência do viver! Isso exige a resolução de nos mantermos à superfície, intrepidamente, de nos conservarmos agarrados à cobertura, à epiderme, adorar a aparência e crer nos sons, palavras, no Olimpo da aparência! Gregos superficiais… por profundidade! E não voltamos a eles, nós que partimos a espinha do espírito, escalamos o cume mais elevado e perigoso do pensamento atual e olhamos, daqui, tudo a nossa volta, embaixo? Não seremos, precisamente nisso… gregos? Adoradores de formas, sons, palavras? Artistas, portanto?”

Friedrich Nietzsche, “A Gaia Ciência”

Parte I – O princípio aparente

Há um traço distintivo em alguns dos mais interessantes filmes do cinema recente que não se encontra em outras épocas do cinema, ao menos não com a profusão e concentração que vemos desenrolar hoje, em tempo real. É um cinema marcado pela necessidade de retorno, de volta à origem do dispositivo cinematográfico para, a partir dele, recompor uma ontologia, uma história e, com isso, esboçar um projeto de futuro, de sobrevivência. Essa volta, porém, se dá em diversas camadas possíveis, que ainda parecem inesgotáveis. Em Caminho para o Nada, de Monte Hellman, as limitações da cena cinematográfica (que, naturalmente, inclui a câmera de vídeo) se impõem como fim e princípio da criação de dramaturgia; em Holy Motors, de Leos Carax, a história do cinema explica o presente pela catalogação dos gêneros cinematográficos, no ocaso da película. Mas há uma história à parte no cinema, da natureza concreta e ontológica do próprio dispositivo cinematográfico, que surge do cruzamento do viés historiográfico de Holy Motors com a investigação ontológica de Caminho para o Nada. É a história contada por Crazy Horse, mais recente obra-prima de Frederick Wiseman.

Um texto em duas partes é uma forma de relacionar sem dizer, de reafirmar sem repetir. Crazy Horse ditará, logo de cara, o terreno onde se instalará ao lado de L’Apollonide, de Bertrand Bonello. Sem perder tempo ou imagem, logo no primeiro plano do filme, seu tema é estampado em letras que brilham em azul: Desir (Desejo). O Desejo, porém, é um diabo que vive a se esconder pelos cantos de uma casa de espelhos. Para se aproximar dele, Wiseman precisará jogar na casa do adversário. Essa disposição se anuncia logo no corte para o segundo plano do filme, que nos recebe bem à porta, regredindo até umas das mais conhecidas alegorias da filosofia: um teatro de sombras protagonizado pelo diabo, exposto como representação, como invenção.

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Da exuberância burlesca do letreiro, somos imediatamente devolvidos ao princípio primeiro da representação – a Caverna de Platão – em um corte que nos dá ao menos duas certezas: 1) há uma investigação histórica e ontológica em curso sobre a própria representação, que vai determinar a conexão entre essas duas primeiras imagens (“desejo é representação” ou “desejo de representação”?); 2) se chegarmos ao cinema munido da filmografia pregressa de Wiseman, logo percebemos que o jogo, aqui, é outro, bem outro. Mesmo se este outro for uma forma de se manter fundamentalmente o mesmo. Frederick Wiseman, documentarista canonizado pela crença inviolável no direito de testemunhar o funcionamento do mundo (ou seja: documentarista intimamente conectado à razão de ser do cinema: testemunhar o funcionamento do mundo), agora chega aqui dotado, provavelmente do mesmo desejo… mas, desta vez, o objeto documentado depende, intimamente, da farsa para se revelar. É preciso que Wiseman olhe para dentro, ciente de que “o truque mais esperto do diabo é convencer-nos de que ele não existe” (Baudelaire). Não há verdade que seja ainda verdade sem véus: se há uma transparência possível em Crazy Horse é quanto à sua flagrante opacidade.

A pergunta é simples: o que aconteceria ao homem que resolvesse voltar à Caverna, se voltasse para documentar seu interior já conhecendo o mundo aqui de fora, o farfalhar das folhas nas árvores, o barco que passa sob uma ponte, os cafés atribulados de Paris? Wiseman, afinal, sempre se colocou do lado de fora – embora uma jornada como a de Crazy Horse tenha, também, a capacidade de mudar o passado, de reposicionar a leitura possível dele. Estamos diante de uma obra que, ao mesmo tempo, é crise (do passado) e reafirmação (para o futuro), como os já citados Holy Motors e Caminho para o Nada, mas também como Vocês Ainda Não Viram Nada, de Alain Resnais, e Moscou, de Eduardo Coutinho. Por mais que a concentração no lado coreográfico do mundo em La Danse (2009) e Boxing Gym (2010) já apontasse para uma bifurcação até certo ponto clara da quase fiscalização institucional que marca o bojo da obra de Wiseman, era ainda um confronto dotado de profundidade, de algo que se colocava além da superfície, e que a câmera de Wiseman precisava ir buscar. Em Crazy Horse, o mundo passa a ser apenas plataforma de confronto para pôr em crise a natureza da própria imagem – um pouco como era o jogo entre câmera e peça de teatro em Moscou, que impossibilitava determinar “de quem eram aquelas imagens” e o que elas realmente documentavam a não ser elas mesmas. Em Crazy Horse, filma-se não exatamente o mundo, nem o cinema, mas o mundo como cinema.

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Não à toa, o filme retomará o teatro de sombras em sua derradeira imagem. Mesmo com sentido diferente (chegaremos a ele), o recurso estrutural de abrir e encerrar o filme como se abre e fecha um parêntese deixa claro que tudo mesmo as saídas protocolares à rua que marcam a passagem do tempo; mesmo as reuniões de bastidores; mesmo a intimidade dos camarins – tudo que aconteceu entre essas duas pontas está amarrado em um único e mesmo jogo de representação, simbolizado pela escultura de mãos que forma um diabo ou um cão que ladra (e nesse sentido é sempre um deleite ver como Wiseman buscar filmar placas de “sortie” – saída –, filmadas de maneira semelhante ao primeiro “desir”, antes de levar a câmera pra rua, instaurando toda a ação em uma mesma tessitura, determinada por um mesmo dispositivo: quando se está na casa do outro, há regras a serem seguidas). Como no último Resnais, o que está em jogo (o desejo; a representação) é este espaço “entre”, essa mediação feita pelo aparato cinematográfico. O limite entre cena e dispositivo será permanentemente borrado , flagrante na opção primeira de não mostrar a borda do palco, para que ela apareça adiante já impregnada dessa opacidade, desse ar indecifrável. A imprecisão da natureza do registro é o próprio tema do filme.

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Para se falar em representação, em registro, é preciso assumir que o cinema, porém, não é um dispositivo em tábula rasa. Em cada reentrância mecânica, em cada dobra interna da câmera cinematográfica, há uma história que passou e deixou poeira, grãos, marcas, e que esse dispositivo carrega, inscrita no próprio corpo. Para se chegar à ontologia da representação cinematográfica, é necessário subsumir toda a História – ou ao menos reconhecer a necessidade de se passar por toda ela, sem perder um segundo da humanidade. Mas aqui, nesse traçado histórico, há um desvio. Pois o princípio não é, como manda o canone, o confronto do registro em profundidade do cotidiano de Lumière com a magia mecânica de Méliès (a bifurcação original pela qual o pensamento de cinema ainda se organiza), afinal, o teatro não tem cortes; mas sim com o registro frontal que suspende a passagem do tempo nas apresentações burlescas dos primordiais filmes de estúdio da companhia de Thomas Edison.

Sandow (1894), de William K. L. Dickson

Sandow (1894), de William K. L. Dickson

Há, portanto, uma outra origem em jogo a ser ressaltada, que não é a da magia (os truques de continuidade inaugurados por Méliès em sua tentativa de, à sua maneira, também enganar o diabo), mas sim a do teatro de variedades, das atrações de circo, do divertimento vagabundo que o cinema sempre foi e nunca deixará de ser. Se, à sua época, os filmetes performáticos traziam a naturalidade de continuar a tradição vaudeville em um teatro filmado (e lembremos, sempre, que Crazy Horse é exatamente isto: um teatro filmado), hoje, depois de o cinema já ter encenado provavelmente todos os cenários que podia encenar, há algo de perturbador, de quase surrealista, naqueles rostos que performam para a câmera frente a um fundo preto – na verdade, a um não-fundo, a um não-contexto. Crazy Horse herda o pendor apolíneo do trabalho incessante do corpo humano (Wiseman sempre foi e sempre será um cineasta do trabalho, daí a necessidade de, mesmo aqui, marcar a passagem dos dias, as repetições, os ensaios), mas sabe que, ao contrário da representação grega, o Desejo no cinema se estampa, necessariamente, no corpo feminino: a mulher onipresente em O Homem com a Câmera, de Vertov, em toda a tradição das vampi e das femme fatales, em Hitchcock… tudo que remonta, ainda hoje, à origem voyeur do cinema. Isolado, desprovido de contexto, esse corpo se transforma em ícone, perde as conexões humanas, é mostrado como imagem que se basta, e que tem de carregar na sua opacidade a transparência de sua verdade (com véus).

Mas, de Edison a Crazy Horse, há toda uma história da superfície a ser apreendida no cinema. Pelo uso da zoom, ferramenta essencial do cinema direto americano, Wiseman recorta e reenquadra ao longo da duração (quase sempre mantida na íntegra) dessas performances contra fundo preto. É como se seu velho instinto de documentarista observacional o fizesse buscar algo nas profundezas da imagem, mas a zoom, em Crazy Horse, bate frequentemente nesta parede que interdita o corpo feminino do contato com a câmera (há, inclusive, uma fala do coreógrafo da casa mencionando a “parede invisível” que se coloca entre as dançarinas que se aplica, perfeitamente, à câmera de Wiseman neste filme). A cada reenquadramento, esbarramos em outra quina da história, em outro cineasta dedicado a explorar as potências da superfície cinematográfica em busca de alguma possibilidade de abstração: os membros decepados de Jean Cocteau, os grafismos de Man Ray, o realismo abstrato de Kenneth Anger, as sobreposições coloridas de Warhol, as pinturas em película de Stan Brakhage, passando por Attack of the 50 ft. Woman e pela tradição dos filmes B focados no apogeu (quase sempre destrutivo) da figura feminina – toda uma sorte de artistas e estilos que o cânone documental jamais, jamais permitiria que fossem associados a Wiseman. Wiseman vai ao passado para voltar ao presente (daí a importância do mito de Orfeu para todos esses filmes recentes), e, na volta, decide tomar caminhos diferentes dos escolhidos na ida. Há, nestes encontros improváveis (e não faltam teóricos pra dizer que a possibilidade de criação no dito mundo pós-moderno é justamente pela promoção de encontros improváveis), a busca de um choque, para que, ao final, possa-se sair novo.

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Pois Crazy Horse não é somente uma coleção de performances. Wiseman não se anula ou acovarda diante das apresentações do grupo de teatro, mas sim pisa fundo quando antevê a colisão, a possibilidade de ruptura. Assim como a câmera de Bonello alterna, em L’Apollonide, entre os encontros nos quartos escuros e o dia a dia solar das personagens (mesmo que seja em uma casa em que o sol tem enorme dificuldade de entrar), aqui saímos das variedades de Edison para os registros cotidianos de Lumière que permitem a integridade dessa superfície (por profundidade!) – do palco para a coxia, para os camarins, para a cozinha, para a sala de impressão de fotos, para a organização seriada das garrafas de champagne (elementos que também aparecem no filme de Bonello, deixando claro que a origem dos jogos é a mesma). Profundidade e superfície, documento e representação, isolamento e contextualização – são todas faces em contato constante, expostas em cada relação do filme.

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Nesse sentido, há um plano a ser destacado, quando uma das bailarinas vai experimentar uma nova saia no ateliê de costura do grupo. Durante a conversa, a figurinista se esforça por tirar a saia de um manequim, e menciona que ela poderia experimentar o figurino “se esta moça fizesse a gentileza de tirar a roupa”. A moça a que se refere é o torso recortado em plástico, sem membros ou rosto, colocado em cima de uma mesa. Há uma via de mão dupla que sensualiza as formas inanimadas e, ao mesmo tempo, tira qualquer traço de vida daquelas personagens, pensadas puramente como formas plásticas – como deixa ver uma cena de um teste de elenco extremamente parecida com a avaliação da nova garota que se apresenta à casa de tolerância em L’Apollonide. Nesse sentido, Crazy Horse chega ao mesmo ponto que todos os filmes de Wiseman: perceber como os indivíduos são triturados pela estética do mundo, pela organização, pelo dispositivo (aqui no sentido de Foucault) que confere ordem às suas vidas, mas que também foi condutor na trajetória deles até ali. Essa via é estabelecida logo no corte da primeira dança em Crazy Horse, indo, da mulher nua coberta por luzes coloridas no palco, para uma estátua dourada que adorna o interior da casa de apresentações: ambas são parte de uma mesma linhagem de representação; ambas se carregam, uma dentro da outra, feito bonecas russas.

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Crazy Horse é um filme atordoante porque, nesse movimento de equivalências, ele nunca se deixa parar em um dos lados dessa dialética. Novamente, como em L’Apollonide e em Caminho para o Nada, há um duplo (e, se falamos em Desejo, muito sugestivo) movimento, para frente e para trás, repetido ao longo do filme. Da presentificação, voltamos para a História, para a presentificação, para a História, até o fim do filme. Essa volta ao passado é, no fim das contas, uma tentativa de tudo aglutinar, de tudo conhecer, para ao fim vislumbrar, também, uma possibilidade de seguir em frente, liberto do peso do conhecimento que não é experimentado. É preciso voltar ao princípio para vislumbrar para onde ainda se pode ir. Mesmo que seja, novamente, para trás.

Em Crazy Horse, todo movimento é calcado nesse leve embate, nesse ir-e-vir que, novamente, encontra um lugar justo neste “entre” espaços. Até o número de dois gêmeos idênticos – momentos em que o burlesco dá braços de vez ao vaudeville – é assimétrico, assincrônico, partido em dois, fundado em diferença. “As garotas não gostam de fingir”, diz o coreógrafo ao expor suas razões para a mudança de uma coreografia. O desejo de representação precisa, igualmente, do ímpeto construtivo (a linguagem, a cultura) e do ímpeto destrutivo (a criação artística) para de fato representar, e não apenas mimetizar esse mundo de aparências. “Nem a cultura nem a sua destruição são eróticas. (…) não é a violência que impressiona o prazer; a destruição não lhe interessa; o que ele quer é o lugar de uma perda, é a fenda, o corte, a deflação, o fading que se apodera do sujeito no imo da fruição. A cultura retorna, portanto, como margem: sob não importa qual forma”. (Barthes, “O Prazer do Texto”).

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Mais de duas horas depois daquele primeiro letreiro azul, retornamos ao “Desir”, desta vez adornado por dançarinas, ocupando espaços que, no começo, ainda estavam vazios. Uma vez preenchida esta “fenda” da representação, voltamos ao teatro de sombras e, do plano geral que mostra o artista que molda cada um dos gestos, a câmera fecha nas manchas escuras em metamorfose: um gato que abana o rabo e dois rostos que, no encontro de um beijo, se tornam um pássaro que, nas mãos do artista certo, pode, enfim, voar.

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Parte II – A pequena morte – L’Apollonide, de Bertrand Bonello

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