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Esquizofrenia e figuração

Já sabemos ad nauseum que Psicose (1960) é a obra-matriz de Brian De Palma; a anamorfose, os objetos parciais dos corpos despedaçados pela câmara, as fantasmagorias da Origem: o cadinho infernalmente figurativo que aquele filme canonizou para a modernidade no cinema está dado, e foi rigorosamente estudado pelo cineasta em pelo menos treze filmes. O maneirismo de que De Palma é devedor em alguns filmes é o fruto apodrecido, fatalmente necessário, desta obsessão mórbida em cortejar os Pais, mas perversamente: encarnando-os dentro de si, despojos putrefatos e ossos disformes inclusos. Mas a tara de onde se parte e da qual raramente se retorna nestes filmes enfeitiçados pela medusina face de Mrs. Bates não é a paranóia: já que “ramène tout à soi” (“tudo remete a si”, Lacan), esta é muito subjetiva, muito “minha” para justificar a onívora cosmogonia da danação que certos De Palmas mais radicais – The Fury (1978); Síndrome de Caim (1992); Carrie (1976) – preparam. A esquizofrenia, segundo o modelo estabelecido por Hitchcock, é o motor imóvel de tudo.

Falamos em “motor imóvel”, que para Aristóteles era o princípio transcendente do ser submetido ao devir, para enfatizar a essência metafísica – ou seja: sua cumplicidade com o Totalmente Outro, seu Acmé – desta démarche. Mas, mais pontualmente: o que seria exatamente a esquizofrenia em Psicose, para começarmos? Psicose é um romance de formação do cinema moderno: aprendemos a ver, por meio de sua estrutura esquizofrênica, que o campo não é tudo, como nos ensinara a naïveté simulada do classicismo; aprendemos que há sempre esqueletos no armário e monstros debaixo da cama, que um passado muito obscuro, uma imaginação doentia ou uma memória infectada de trauma podem ser decisivos fatores (embora invisíveis) para a determinação do sentido de o que está no campo. Psicose é, assim, um filme sobre o “espaçamento” (Serge Daney) característico de todo cinema de escritura; um cinema do fora de campo, daquilo que não está totalmente dado pelo filme e precisa ser necessariamente preenchido – ativado, inoculado, afetado – pelo espectador.

Psicose (1960), Alfred Hitchcock
Psicose (1960), Alfred Hitchcock

Ele inaugura (e isto se deve muito ao seu uso perverso das Origens do cinema, arte essencialmente popular: o gótico, o teatrinho de sombras primitivo, o expressionismo) o modernismo no cinema, que será sempre, por mais que se pratique escandalosamente “no campo”, uma arte do interdito, do ocluso, do fantasma. “Mrs. Bates no armário” torna-se uma espécie de simulacro onde todas as virtualidades fantasmáticas desta cumplicidade sub-reptícia entre o filme e seu espectador emergem para estruturar o próprio filme; ela ativa o imaginário (o travesti) como a memória (a “terapia” específica do filme consiste em curar o espectador e lembrar por Norman que sua mãe foi assassinada; é este o sentido da investigação policial enxertada um tanto a fórceps na trama).

E não são estes os dois primordiais instrumentos de conjugação do fora de campo “por mim”, que Marc Vernet e Michel Chion tão exemplarmente esclareceram? A démarche esquizofrênica estrutural do cinema de fora de campo é evidente: o filme não seria o artefato simbólico que é não fosse a participação deste Outro que, se não é a mediação da sutura de Oudart, deve pelo menos ser reivindicado como o ponto de clarividência onde o filme se ilumina: o espectador. Inerente ao filme moderno é esta clivagem entre a diegese e a supra-diegese transcendentalista da “minha memória”, do meu “imaginário”, da significação que o meu fantasma inoculou na clareira assombrada do filme, agora finalmente aberto à inervação de meu Bildungsroman. Psicose é apenas em aparência um filme um tanto obscenamente clássico, no sentido de finalmente mostrar o que o classicismo tout court apenas sugeria ou induzia através da litote; à imagem e semelhança de seu protagonista, que sempre decalca o que vê segundo a imago alucinatória de seu trauma (e a imagerie expressionista do bicho empalhado como da silhueta da casa assombrada tem por fito justamente exteriorizar este décalage da percepção, este “eu vejo assim” contra o “vocês vêem assim”), o que deve contar não é principalmente o espetáculo granguignolesco do corpo retalhado de Janet Leigh, mas a sombra na parede de Perkins travestido; ou seja: o fato de que a figuração explícita é o simulacro onde se encapsula o fantasma, e é o fantasma que é decisivo – o fora de campo.

A obscenidade evidente do filme é um travesti para o que realmente importa, e que é sempre invisível, imaginável ou desejável por nós: a primeira noite em que Norman, aproveitando-se da enésima briga da mãe com o amante, pegou sua camisola no armário e experimentou diante do espelho uma refiguração de si mesmo, menino espoliado pela vida que finalmente tomaria o lugar da monstruosa mãe kleiniana: um regicídio ontológico e estético, pois eliminar a Origem e tomar-lhe o lugar é sempre criativa operação arquetípica. Modéstia inacreditável ou ruse faceira de Hitchcock em fazer um filme ancorado nos avatares do experimental e da ultra modernidade que “se passa” por artefato kitsch! A última imagem do carro emergindo do pântano (que De Palma refilma em Caim) revela com evidência solar o mecanismo em jogo aqui: finalmente o latente vem à luz, e podemos confirmar que, sob o espalhafato das imagens de choque, ocultava-se um cinema do interstício, do ocluso, do recalcado e, portanto, urdido pelo fora de campo. A genialidade de Hitchcock é fazer como aqueles artistas (Kafka, Proust) que o Adorno de Estudos sobre literatura chamava elogiosamente de mascarados: para fazer passar a ultra-modernidade, ele precisa travesti-la de filme televisivo (que Psicose também é, aliás). O travesti diegético de Norman é a mimetização deste travesti do próprio filme, engendrado pelo fantasma do fora de campo sem, no entanto, ousar dizer seu nome.

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O efeito calculado por Hitchcock de terrorista desmascaramento das aparências em Psicose obedece ao modelo cognitivo de uma “boneca russa”, na qual um conto assombrado pelo fora de campo está encerrado dentro de um clássico obsceno “do campo”; esta estrutura de envelopamento ou travestismo aparece também na condução narrativa da abertura do filme: a história parece ser a princípio um thriller solar na Los Angeles narcisista dos 1960 sobre o roubo de um patrão por uma empregada, mas revela-se um cromo gótico sobre um id demoníaco que conspurca a claridade meridional não só de Los Angeles como do classicismo apolíneo. Há uma conseqüente substituição de protagonista, uma cisão, fratura ou clivagem esquizofrênica que funciona como mise en abîme do clivagem maior entre modernismo (cinema principalmente do fora de campo) e classicismo de que o filme é devedor.

Em Síndrome de Caim, de Brian de Palma, também começamos com o protagonista errado: refração ou diferença do cerne da pulsão psicótica, que precisa sempre ser protegido da luz da Razão, do Outro, enfim daquilo que o levaria a abandonar o fantasma: a psicose é uma narrativa de masoquista, daquele que não quer largar o trauma. A referência bumerangue constante a Psicose faz-se necessária dada a natureza tardia do trabalho de De Palma; um artista tardio é aquele que cria não sob a égide da noção de “ser original”, mas de originário – ou seja: ele estará sempre resgatando dívidas para com uma tradição, entendida como herança. Jenny toma o lugar que “deveria ser” de Carter/Cain/dr. Nix/Josh/Margo, o esquizofrênico em questão no filme. Mas De Palma introduz uma clivagem da clivagem, porque um artista tardio precisa sempre exagerar na dose para se demarcar da transparência paterna, já que Hitchcock começa o filme com um souci de réalisme que é indispensável para a sua operação perversa: é preciso dar a impressão de que o filme é um para depois revelá-lo Outro, conspurcando a bella figura com a alteridade abominável de Norman. De Palma não; a primeira meia hora de Síndrome de Caim é talvez o seu trecho de cinema mais fantasmagórico, mais abusivamente seduzido pela fantasmagoria do imagético, porque já começamos dentro da cabeça do esquizofrênico, e dali não sairemos senão com a sinistra blague final.

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Síndrome de Caim (1992), Brian De Palma

Esta maleabilidade e porosidade ao fantasma se manifesta de forma clara no fato de que a “cena originária do filme” – um homem que nina uma criança na cama – aparece-nos sob a máscara granulada e de baixa definição de uma gravação em vídeo: contra o platonismo idealmente imaculado da película, De Palma situa o núcleo diabólico da pulsão no vídeo, desta “imagem qualquer” que pode ser suja com o sangue, o sêmen, a saliva, os humores do fantasma: um plano ontológico de cinema contra uma imagem espectral de vídeo. Por meios estritamente materiais – gênio de todo inato cineasta – De Palma realiza um estudo sobre as características ontológicas dos médiuns sem deixar de continuar brincando. Continentes para conteúdos pulsionais demoníacos, caixas de Pandora virtuais: a tela de vídeo, o relógio, a caixa de presente escondida num canto da gaveta. O essencial a se reter desta identificação figurativa entre diferentes objetos é que agora vivemos em um mundo cooptado pela esquizofrenia, portanto regido pela analogia figurativa; em que sentido? Não mais habitamos um cosmo composto por ousias, substâncias delimitadas em seus containeres espaço-temporais; todo Uno pode tornar-se Outro, toda substância é irisada por circuitos energéticos que a alterizam, modificando-lhe o eidos como os princípios e fins de sua trajetória: não seria então conseqüente admitir que uma caixa pode ser ao mesmo tempo uma caixa e um relógio, e um relógio uma caixa e uma tela de vídeo, já que tudo está insidiosamente destinado a ser um Outro? “Nós vamos das coisas visíveis às coisas invisíveis, não sempre como do efeito à causa mas como do signo ao significado, e não tanto pelos caminhos da lógica quanto pelos da analogia” (Claudel, La perle noire). A esquizofrenia é o leitmotif do ser aqui, presidindo portanto a um sistema figurativo trabalhado pela analogia.

Assim, ao realismo “de base” do começo de Psicose, De Palma substitui um expressionismo feroz, que já de saída nos revela que o décor, personagens, plot, pace, tudo está sob o comando do mad doctor esquizo. Esta notação é relevante, pois introduz uma diferença substancial entre o filme-mater e seu herdeiro tardio: Psicose era um filme propriamente perverso, na medida em que se nutre do mascaramento, da “boneca russa”, do envelopamento ou travestismo ontológico, porque ainda trabalha num quadro funcional clássico: nada é o que parece, embora pareça “normal” (este é o leitomitf perverso, aliás: o Outro que se infiltra no Mesmo e, uma vez lá, devora-lhe os filhotes). De Palma não aposta na perversão, porque Síndrome de Caim não precisa mais esconder-se para ser o que é, dado que todas as coordenadas do filme, acima citadas, pertencem de fato e de direito às personagens de Lithgow: tudo vive e vige sob a sua diabólica égide; a doença é este Arché ontológico que plasma a carne, as vísceras, o cu do filme: uma summa expressionista do esquizo. Ponto de vista, personagens, estrutura, tropos técnicos, tudo está a serviço do rés-do-cu doente.

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Esta tentacular potência metamórfica do fantasma, de que o expressionismo nos ofereceu os tools agora assumidos exemplarmente nesta máquina de signos a serviço das entranhas, aparece nesta obra-prima de horror vacui essencialmente pervertendo as mediações transcendentalistas – isto é: de base, infra-estruturais – do cinema: o ponto de vista, por exemplo, é submetido à temporalidade entrópica da repetição: De Palma repete cenas para diferir a perspectiva do personagem que “agora” se encarna em Lithgow; ele assume na figuração como estrutura do filme que esta percepção é sempre gestada por um Outro, como também que a sincronicidade e seqüencialidade da temporalidade causal foram rompidas em nome de uma temporalidade do simultâneo, como na brilhante penúltima sequência de assassinato do “pai”: assim como vários Outros habitam o mesmo corpo de Lithgow, vários pontos de vista ao mesmo tempo são possíveis, pois o filme é regido por um olho ontologicamente estrábico, uma diferença patológica.

De Palma radicaliza Jerry Lewis, também um caso psicanalítico que se exprime em um expressionismo somático: aqui, não é apenas o corpo do personagem que exterioriza a doença, mas o corpo do próprio filme que delira. Esta alteridade demíúrgica que se encarnou no filme e o dispersa em vários sentidos também interfere na concepção da mise en scène: quando confrontados com o velho pai, é fácil perceber que o Laius contra o qual este Édipo doente precisa medir forças é uma encarnação atual de Cidadão Kane (1941); De Palma pasticha o estilo radiofônico grandiloqüente de Welles e a foto adstringente de Tolland, com seus tetos opressores e contra-plongées claustrofóbicas. A esquizofrenia também é pensada como um princípio estético propriamente pós-moderno, já que permite ao artista encarnar outros estilos, usar do pastiche, da citação, da anamorfose… enfim, de todos os tools por meio dos quais a representação modernista afirmou seu caráter tardio de herdeira, perversa embora, do Pater famílias de uma tradição: sou também este Outro que é meu pai.

Mas retomemos uma interrogação que abriu este texto: por que a esquizofrenia e não, por exemplo, a paranoia, leitmotif clássico de tantos thrillers? A esquizofrenia, ao contrário da paranoia – que é sempre tópica, subjetiva, “copa e cozinha” do ego – delira o mundo: ela assinala sempre uma radical exterioridade, permitindo que se anexem ao romance familiar uma épica histórica ou uma lírica pastoral. Pensemos na seminal análise que Louis Seguin empreendeu do “romanceiro familiar” freudiano em seu texto sobre Crônica de Anna Madalena Bach (1968). Em Minha vida e a psicanálise, Freud relata um sonho em que seu tio professor aparece na iminência de receber uma promoção na universidade onde ensina, e isto “apesar de suas origens judias”. Na vida real, um amigo de Freud recebe uma promoção destinada ao tio no sonho, mas o que subentendemos da forma lacunarmente hesitante com que Freud conta o caso é que ele não era um intelectual que pudesse se comparar a Freud, que no entanto não recebeu promoção nenhuma. O autor termina a frase com um revelador “E, no entanto, eu nunca sofri de excessiva ambição…”. O pathos inconsciente que estrutura este delírio corporativo e familiar é a esquizofrenia: Freud é ao mesmo tempo o tio preterido por suas origens judaicas e o amigo no lugar do qual ele, intelectual de muito maior estatura, deveria estar, uma espécie de terceiro excluído que, embora expulso da Cena, domina-a fantasmaticamente. Mas o que se deve reter aqui é a natureza exterior do delírio: promoção social, econômica, imbróglios familiares, identificação e exclusão; categorias da Política, da Economia como da Psicologia clássica são agora mobilizadas e interferem decisivamente no romanesco das entranhas: o inconsciente está no mundo, delira-se o Fora, como vemos na decisiva penúltima sequência de Caim, quando do assassinato do pai pelo filho travestido de mulher (ambos o mesmo Lithgow) na saída do elevador: a flutuação do ponto de vista, como o uso da câmera lenta, mostra-nos que o delírio persecutório do personagem se libertou de seu psiquismo e foi incorporado à duração e ao espaço reais do mundo.

Síndrome de Caim realiza e “resolve” cosmogonicamente esta exterioridade radical da esquizofrenia; em The Fury e Carrie, temos talvez os filmes em que De Palma mais se aproximou de uma concepção cosmogônica do psicossomático, com penchant apocalíptico é claro: a telepatia em Fury e o ressentimento em Carrie são forças mediúnicas gestadas pelo Id, mas nutridas pelo Mundo e que, segundo o telos de seu itinerário medusino, devem retornar ao Mundo na forma de uma vendetta: as pulsões e seus destinos. Todos devem pagar pela minha diferença, que me exclui e mutila, glosam em surdina os telepáticos. Mas em ambos os filmes é a paranóia a metteur en scène do desastre psicossomático que devasta o mundo mimeticamente, à imagem e semelhança do interior devastado do sujeito: uma desforra do id machucado. Em The Fury, conhecemos uma ampliação do delírio, é certo: a Guerra fria entra em cena, justificando a superprodução como um meio mais monstruosamente adequado à exogenia do fantasma. Mas permanecemos entre Pais e filhos, ou entre a menina excluída e seus algozes, e isto se traduz pelo fato de que a forma do filme propriamente não irradia nem é inervada pelo punctum do fantasma; a rigor, são ainda filmes de fatura clássica: o Mal é restrito à diegese, como o delírio se resolve no contracampo.

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Em Síndrome de Caim, pelo contrário, a exterioridade da esquizofrenia aparece em um gênio plástico que torna visível o itinerário espectral em cada centímetro do filme: o “eu sou um outro” agora é uma questão transcendentalista – e pensemos como Kant: o espaço, o tempo, as condições de possibilidade da matéria como do invisível (o fora de campo e de quadro) estão completamente dominados pela doença; o próprio filme é agora este corpo fragilizado pelos espasmos hemiplégicos, de olhos esgazeados e mãos trêmulas: o “expressionismo somático” característico dos personagens de Lewis, como dito acima, agora ulcera e dilacera o organismo da obra. Síndrome de Caim é portanto o filme onde a démarche modernista do maneirista De Palma encontra o seu caso, o seu princípio explicativo de ser e de criar; em que sentido? A “doença” característica deste filho desapropriado pelo fantasma do Pai que é o maneirista é a esquizofrenia, e a obra é o seu exorcismo terapêutico.Talvez em nenhum outro filme este mal que o inspirou apareça de forma tão exemplarmente somática quanto aqui.


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