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A vertigem do desespero

Enquanto soam os acordes dissonantes e as imagens justapostas de “Alegria, Alegria”, uma outra forma de colagem começa a se engendrar no filme que se inicia. A canção de Caetano dá o tom de uma aventura cinematográfica vertiginosa, ao mesmo tempo fragmentária, povoada de citações (visuais, sonoras, literárias) e portadora de uma energia íntegra, encorpada num ritmo febril. Viagem ao Fim do Mundo exibe uma forma dramatúrgica exuberante, sem precedentes e sem herdeiros no cinema brasileiro. Uma viagem de avião reúne uma fauna insólita – uma freira, um jovem leitor de Machado de Assis, uma garota-propaganda, um tarado medroso, um grupo de jogadores de futebol – e opera como um microcosmo-alegoria-dispositivo para as memórias-devaneios de cada passageiro, que, mais que personagem, é um disparador de relações com outros tempos, espaços e regimes de enunciação.

O avião turbulento é o instável ponto de ancoragem do drama e a caixa de ressonância de uma proliferação de monólogos interiores que partem de cada rosto para convocar outras cenas, que se multiplicam entre o found footage e as entrevistas, as encenações oníricas e as derivas documentárias pela rua. Cada figura dramática é uma entidade povoada por vozes estrangeiras que se entrecruzam numa harmonia assíncrona. A musicalidade da montagem garante um ritmo contagiante, pontuado por longos movimentos (a meditação da freira que incorpora a angústia religiosa de Simone Weil e se duplica no monge Thomas Merton) e entrecortado por ataques breves, como o inesquecível diálogo entre Jofre Soares e a moça que diz ser um erro de continuidade do filme, pois só aparece nos planos ímpares.

O título decadentista é só a porta de entrada dos paradoxos. O segundo longa de Fernando Coni Campos está grávido de começos: “originalíssimo tour de force” (Ewerton Belico), “pioneiro do ensaio cinematográfico na filmografia brasileira” (Jean-Claude Bernardet), “filme de invenção absoluta” (Julio Bressane). A energia inaugural está em cada fotograma, mas o que prometia ser o nascimento triunfal de uma trajetória reluzente terminou por constituir o primeiro passo de uma carreira acidentada, subterrânea, cujo marco inicial permanece “sem lugar em nossa historiografia” (Belico). Viagem é ao mesmo tempo “uma das obras mais instigantes e inteligentes realizadas no período” (Ruy Gardnier) e um filme abortado pela historiografia brasileira, que não soube ainda lidar com o cinema de Coni Campos.

Também pudera. “Não havia nada semelhante no panorama cinematográfico brasileiro” (Bernardet). Uma sequência pode começar com um plano-detalhe de uma página de revista, convocar uma entrevista farsesca, deslizar por uma experimentação abstrata e retornar à poltrona do avião. Outra pode partir da leitura de Brás Cubas, derivar para um encontro mítico com Pandora à beira-mar e desembocar numa colagem de cinejornais que narram fatos marcantes do período entreguerras. Nesse “painel de realidade que já não cabe na realidade” (Jairo Ferreira) vibra um furor imaginativo imparável, cuja obsessão desesperada e rigorosa abarca a publicidade, a filosofia, o cristianismo, o século vinte. Viagem fundiu a cuca de Jairo à época, inspirou um reconhecimento tardio de influência por Bressane (que fora assistente do filme) e um mea culpa escrito por Jean-Claude mais de quarenta anos depois da estreia.

Latinoamérica, 1968. As esperanças revolucionárias foram varridas para debaixo do tapete da História e, com elas, certo pendor do cinema para o corpo a corpo com um real em vias de transformação. A barra pesou e a tarefa passou a ser a invenção de uma forma espessa de sufoco, em que é preciso multiplicar as mediações, apostar na alegoria, mergulhar nas camadas da interioridade, empreender uma viagem às entranhas do cinema. É o ano das Memorias del Subdesarrollo de Titón, de El Dependiente de Favio, do Jardim de Guerra de Neville, da Manhã Cinzenta de Olney, o ano dos filmes que eram estranhos demais para caber nos espectadores de seu tempo. O desespero pré-AI-5 se fez vertigem da forma, o filme tornou-se célula cancerosa em insurreição contra o corpo-cinema vigente e quase ninguém percebeu. O mundo precisa estar em vias de acabar para que o cinema comece.


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