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O filho que é a mãe

Zilhões de eons atrás, quando patrulhas do politicamente correto ainda não haviam tomado a galáxia, certa homossexualidade masculina era vista como uma tentativa do individuo de ser a mãe, tomar o lugar simbólico do seu primeiro amor. Esse conceito (ou preconceito?) abarcava desde o machismo chauvinista até a psicanálise de botequim (não existe psicanálise fora do botequim). Padres, médicos e policiais acreditavam que o sujeito alucinava uma “mulher ideal” e, em vez de possuir a figura feminina e arrastá-la para a alcova, embatucava na ideia de internalizá-la, imitando-a. Tal fenômeno explicaria a profusão das divas no mundo gay, os travestis imitando a Vanusa no Programa do Bolinha, os trejeitos afeminados dos eternos solteirões.

Hoje, um ator assumidamente homossexual, Paulo Gustavo, desfruta seu Édipo livre de culpas, fazendo uma bela caricatura de mãe, sem que hordas de pseudomoralistas criem moral para afrontá-lo. Graças a Deus estamos em 2017! Paulo criou a personagem para uma peça, que deu origem ao filme e agora a uma continuação. Que venham outras; mãe é sempre bom. Ainda mais essa que o ator engendra: desbocada, carioquíssima (mora em Niterói, “quase Rio de Janeiro”, avisam) e repleta de fino mau humor. É o tipo de mãe que psicanalistas, confabulando nos botequins como sempre, adoram acusar de traumatizar os filhos. “O amor é ferida que dói e não se sente”, já dizia Renato Russo, quando encontrou Luís Vaz de Camões.

Minha Mãe É Uma Peça 1 e 2 incomodam mesmo não pela caricatura, não pelo ator em travesti esfuziante (é um arremedo da colega flawless Luciana Paes), mas por causa dos gritos. Em Lavação da burra eu já apontava que Leandro Hassum podia não ralhar tanto. Parece ter feito escola na comédia brasileira, seguido por Samantha Schmutz e vários coadjuvantes que almejam seu lugar ao sol. Paulo Gustavo dá novos tons à arte da gritaria histérica. É uma sirene ambulante. Atenção: o YouTube está cheio de vídeos da Escolinha do Professor Raimundo. Nos saudosos 1990 ninguém urrava e todos alegravam a criançada. O mais histriônico era Paulo Cintura, que agora parece um Buster Keaton.

Mesmo sob o signo do exagero, Hermínia (Paulo Gustavo) baila com desenvoltura entre o teatro e os filmes. Outra característica da nova comédia é sustentar eternas continuações. Ladina, Minha Mãe É Uma Peça 2 já engrena marcha para uma terceira. Aí você para e, olhando contas a pagar em cima da mesa, sofrendo o calor infernal do verão brasileiro, se pergunta: como essa turma alimenta o interesse de tanta gente por tanto tempo, ganha rios de dinheiro com argumentos pífios e esquemas infantis de roteiro? Mergulhemos nos fatos.

Minha Mãe é uma Péca (2013),
Minha Mãe é uma Peça (2013), André Pellenz

Tal como em De Pernas Pro Ar, a base da história é uma quimera: a suarenta, inexata e depressiva Niterói aparece empacotada turisticamente, na vibe de nova Barra da Tijuca. Lembrem de Carlos Heitor Cony descrevendo Niterói como uma alternativa “aos que estavam em dificuldades no Rio” e comparem com a cidade da franquia de Paulo Gustavo. Nem o mais arfante niteroiense, que bate continência para Araribóia, consegue acreditar naquilo. Aliás, as poucas cenas que fazem jus à cidade da vida real estão no primeiro filme, sendo a melhor delas a do karaokê. Não está longe o dia em que nossas comédias transformarão a Ilha do Governador em uma espécie de resort ensolarado.

Trepando no coqueiro da utopia bairrista, apela-se ao sentimentalismo universal: o onipresente coração materno, enterros e chororôs, um marido egoísta que não deu valor à brava Hermínia. No duro, no duro o primeiro filme é sobre nada. Não tem o que contar e apela para piadas escatológicas (outro coringa das novas comédias) e um princípio de moneychanchada, quando Hermínia lava a burra ao ficar famosa da noite pro dia. Em volta disso, a construção de um imaginário: Niterói terra abençoada; um filho promissor e outros dois à deriva; a menina obesa (Mariana Xavier); o irmão que curte brincar de boneca (Rodrigo Pandolfo); o pai felpudo (Herson Capri), que oscila entre novas aventuras e certo olhar emocionado à primeira família.

Então, peças prontas, o segundo filme as sacode com gosto: vão parar em São Paulo, há uma tia loucona (Patrícia Travassos) que chega de Nova York, e Hermínia mudou para um apartamento bacana (lavou a burra, lembram?). O caráter do brasileiro é inversamente proporcional ao dinheiro que ele pensa que tem; logo, Hermínia também se tornou um bocado arrogante. Era mulher do século XX no primeiro filme, que trafegou para o XXI no segundo. Nesse aspecto, é inteligentíssima a transição para São Paulo e a transformação dos filhos em urbanóides emancipados. “Eu era de lá, agora sou daqui”. Quantas vezes a capital paulista já não ouviu essa frase dos provincianos de qualquer lugar?

Minha Mãe é uma Peça 2 (2016), César
Minha Mãe é uma Peça 2 (2016), César Rodrigues

Para finalizar, o óbvio. Ao término de ambos os filmes, o “segredo” revela-se: Paulo Gustavo inspirou-se na própria mãe para criar Hermínia(!). E a mãe do ator, que fez aparições pontuais nas cenas, surge em esplendor furioso. A grande questão, a encruzilhada é que Déa Lúcia, a progenitora demoníaca, é incomparavelmente mais engraçada do que o filho que é a mãe. Rimos das suas tiradas, em poucos segundos, muito mais do que rimos de Paulo Gustavo nos filmes inteiros. E os espectadores concluem felizes que suas respectivas mães também são um pouco daquele jeito: Hermínia, Déa Lúcia, todas as mães são uma peça. Minha Mãe é Uma Peça é, portanto, um libelo ao doce conformismo. Só as mães são felizes, rosnaria Cazuza, quicando de sarcasmo. Só as mães e Paulo Gustavo, acrescento. Cabe a nós aceitarmos (ou não) esse paradoxo de felicidade, imperfeito e idealizado.