Até que a Sorte nos Separe 3, de Roberto Santucci (Brasil, 2016)

setembro 1, 2016 em Andrea Ormond, Cinema brasileiro, Em Cartaz

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Lavação da burra
por Andrea Ormond 

Do lançamento da primeira parte da franquia de Até Que a Sorte Nos Separe (outubro de 2012) até os dias de hoje, o Brasil mudou bastante. Embora quase todos os nossos dramas já estivessem delineados, e prontos para estourarem, há quatro anos ninguém segurava esse país. O dólar patinava abaixo de 2 reais e a classe média viajava ao exterior sem suar muito. Não existiam coxinhas, mortadelas ou outras denominações indigestas. Éramos um povo que ainda acreditava em si mesmo (ironia ligada no máximo). Foi preciso junho de 2013, um 7 X 1 no couro e tantos desencontros cabulosos para capitularmos.

Eis que Até Que A Sorte Nos Separe vem atravessando todos esses bipolares sentimentos, sem perder o fio da meada. Talvez porque seja, por excelência, uma história bipolar. O pai de família Tino (Leandro Hassum), casado com Jane (no primeiro filme, Danielle Winits), começou ganhando 100 milhões de reais na Mega Sena. Virou um noveau riche clássico, gastava a rodo, e um dia o dinheiro acabou. Este primeiro filme era otimista: o dinheiro de Tino acabou porque ele era um sujeito bom e generoso. Dava festas homéricas para os amigos, abandonou o subúrbio mas o subúrbio nunca o abandonou. Em contraponto a Tino, Amauri (Kiko Mascarenhas), a amargura em pessoa, autor de livros sobre a arte de enriquecer. Claro que os dois têm um duelo de pontos de vista e claro que a espontaneidade, a simpatia e o algo mais de Tino são recompensados.

O segundo filme, lançado no final de 2013, trazia Camila Morgado no lugar de Winits e uma nova chance a Tino. Dessa vez, a esposa recebia uma herança e, por uma desculpa infame, iam todos parar em Las Vegas. Lembrava muito Férias Frustradas em Las Vegas (1997), última parte da série original de quatro filmes estrelados por Chevy Chase e Beverly D’Angelo. Até algumas piadas são copiadas, literalmente, do similar norte-americano. Mas notem: Tino tem uma segunda chance, graças a uma herança. E a joga novamente fora. Loteria, herança. Em nenhum momento ele conquista qualquer coisa com o próprio trabalho.

Bastariam as duas produções para levantarmos uma fácil teoria: a de que os filmes de Roberto Santucci querem, na verdade, expiar um aspecto do inconsciente brasileiro. Em vez do livro que supostamente inspira os filmes – Casais Inteligentes Enriquecem Juntos, de Gustavo Cerbasi – leiam, por favor, o Tratado da Lavação da Burra, do poeta pernambucano Ângelo Monteiro. O texto foi escrito em 1978. Ângelo é pessimista o suficiente para nos dizer o seguinte: o brasileiro vive da esperança de uma redenção pelo menor esforço. O sonho de um futuro que virá, mas nunca chega. Vamos supôr que Santucci também esteja operando no terreno da filosofia. Então ele acrescenta: mas até essa redenção fácil, se chegar, pode ser perdida na imobilidade e futilidade da personagem brasileira.

De fato, Tino lava sua burra duas vezes e, nas duas vezes, joga tudo fora por estupidez. Há uma terceira. E Até Que a Sorte Nos Separe 3 acaba ganhando uns ares ainda mais sociológicos – Hao sentido daquela sociologia moleque, sociologia de botequim em Madureira, que faz troça do vizinho corno mas compartilha do sofrimento. Aqui surge um novo elemento: o bilionário que enriqueceu vendendo ilusões. O carro no meio da sala, a esposa gostosa que posou na Playboy, os problemas capilares, não deixam dúvidas de que o sujeito é uma espécie de Eike Batista. E quando eu digo Eike Batista não falo mais sobre o homem de carne e osso, mas sobre o neo-arquétipo que Eike gerou no inconsciente coletivo nacional. Alguém que perde e ganha em um piscar de olhos. Que arrasta multidões consigo, para a riqueza ou para a ruína. Para uma vertigem de que “a burra” está logo ali, basta querê-la.

E Tino é atropelado pelo filho desse Eike reconstituído. Melhor do que ser atropelada, a filha de Tino cai no gosto do rapaz. É a terceira lavação da burra para a família brasileira: depois da Mega Sena, da herança, o casamento. O Brasil nasceu de casamentos: degredados portugueses investiam nas filhas dos caciques para não serem devorados. Tino age como um Caramuru ou João Ramalho às avessas: conquista o poder aceitando o casamento da cria com o filho do cacique. Até porque, durante as filmagens, Leandro Hassum perdeu 70 kg e, magro feito um vara pau, não serviria ao espeto de um apetitoso ritual antropofágico.

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Galgaz ou quitute tupinambá, Hassum é ator histriônico, que ralha todo o tempo, embora seja engraçado. Eu disse engraçado? Mentira, os filmes não têm graça nenhuma. Alguém já disse que o Carnaval é uma festa triste. Triste porque não existe felicidade ensaiada, felicidade com hora marcada, assim como não existe o “homem do povo” que Hassum imita (o povo não é histérico. Às vezes é soturno como um inglês de anedota). Mas Hassum clama, conclama, faz mil e uma presepadas. Enche o saco. Tino era personagem para, digamos, Agildo Ribeiro quando jovem. O intérprete que conhece a seriedade, quando a mente do herói se tolda. Que sabe rir de modo amargo, quando a acrimônia se faz necessária.

Temos que driblá-lo para entendermos Até Que A Sorte Nos Separe e essa tentativa obtusa de “explicar” fatos brasileiros através da comédia. De fornecer elementos pândegos ao que, no fundo, seria uma grande tragédia. E pela posição que o roteiro adota, nunca estamos falando de uma tragédia individual. É a respeito de um espírito coletivo que Hassum está ali dando piruetas e Camila Morgado o apoiando. Se, como diz Ângelo Monteiro, “o acaso é a única coisa garantida com a qual contamos”, mesmo que a lavação da burra, a redenção se apresente, não será do caráter nacional mantê-la, legá-la ou multiplicá-la. Querem que eu diga de forma mais popular? Ainda que tenham nos dado a chance de organizar uma Copa do Mundo, no meio da festa, levamos aquela goleada.

A coisa é séria, mas tão séria, que o protagonista acaba delirando. Mistura remédios com bebida, viaja de carro e tem um surto psicótico, em que imagina ser atacado pelo bebê de plástico que pertence a Amaury, o bolha escritor de livros sobre a arte de enriquecer. O surto é ridículo, a melhor parte dos três filmes e, com certeza, a alegoria mais sincera e profética sobre o zeitgeist nacional. Reparem nisso, crianças: toda bipolaridade pode terminar em uma explosão de irracionalidade. Ou de paranoia.

Em resumo, Até Que a Sorte Nos Separe provoca o espectador a babar na gravata, mas está longe de ser desinteressante. Há um inconsciente, um ignorado poderoso operando ali. Curioso que Santucci tenha feito uma espécie de pastiche de si mesmo em O Suburbano Sortudo (2016), explorando o mesmo universo: da angústia disfarçada de comédia. Se você presume que não existe cinema brasileiro “de direita”, aja como Zizi Possi: pense, medite, se espante. Acreditando na onipotente impotência do brasileiro, Até Que a Sorte Nos Separe é um show de variedades imediatista, tanto quanto os filmes de Sérgio Bianchi ou José Padilha. Ah, não importa que o rocambole seja fraco, mixuruca. Tropa de Elite I e II também não eram nenhum primor e até hoje provocam briosos debates.

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