sully-header

Heróis de lugar nenhum

Daniel Blake (Dave Johns) e Chesley “Sully” Sullenberger (Tom Hanks) são de mundos diferentes, com demandas, ações, desejos e ilusões diferentes. Acima de tudo, eles vêm de filmes diferentes. Algo, porém, parece uni-los em alguma medida: o caminho de transfiguração entre serem sujeitos ordinários e, por força de circunstâncias para além de suas vontades, tornarem-se sujeitos extraordinários. Tanto em Eu, Daniel Blake (2016) quanto em Sully – O Herói do Rio Hudson (2016) tenta-se atingir certa expiação por meio da cumplicidade e adesão do espectador às jornadas apresentadas, e o reconhecimento desses caminhos que se desenvolvem na injustiça e culminam na certeza de que o vetor da ação estava certo desde o início. São, nos dois casos, narrativas menos de construção de heróis do que de como esses homens são afetados pelo desconforto de estarem na posição de heróis num ambiente e numa sociedade que parece ávida por atitudes larger than life.

André Bazin, num texto de 1952, estabelece uma diferença fundamental entre os italianos Roberto Rossellini e Vittorio De Sica. A partir da experiência de ter assistido a Roma, Cidade Aberta (1945) e Paisà (1946), o crítico aponta que Rossellini tem um estilo pelo qual “mostra facilmente suas leis”, correspondendo a “uma visão de mundo imediatamente traduzida em estrutura de mise-en-scène”. Por sua vez, De Sica, analisado por Ladrões de Bicicletas (1948) e Milagre em Milão (1951), “é daqueles diretores que parecem não ter outro propósito que o de traduzir fielmente seus roteiros, o talento deles vem do amor que têm por seu tema e de sua compreensão íntima”. Resume Bazin: “O estilo de Rossellini é, antes de tudo, um olhar, enquanto o de De Sica é, antes de tudo, uma sensibilidade. (…) A mise-en-scène de um filme de Rossellini pode ser facilmente deduzida das imagens, enquanto De Sica nos obriga a induzi-la de uma narrativa visual que parece não comportar nenhuma”.

Loach está para De Sica como Eastwood está para Rossellini: no primeiro, há a modelagem astuta e nobre que ambiciona denunciar e indignar, numa encenação puramente funcionalista e devedora de lances de roteiro; no segundo, a encenação parece brotar antes do tema, a ambição é refletir de que maneira narrar o drama em questão com imagens e sons, e como exibi-lo ao olhar alheio. Eu, Daniel Blake é um filme com propósitos; Sully é um filme de proposições.

*

Em cena, Daniel Blake nunca é chamado de herói, mas o filme trata suas ações (a partir das reações de personagens periféricos e pelo tom da encenação e das interpretações) como se ele fosse um tipo de “exemplo” numa sociedade injusta e desigual – algo tornado explícito na leitura final de sua carta, cena calculadamente preparada para expor mais o discurso do filme do que exatamente do personagem. Ao longo de uma hora e meia, Blake age mergulhado num estado de espírito sempre no limite da impaciência e da rabugice, pouco preocupado com aspectos mais amplos da própria vivência e convivência e que, apesar de ajudar a jovem mãe solteira, age mais por enxergar nela uma variação de si mesmo (ou um paroxismo de sua iminente miséria) do que por qualquer sentido de engajamento. Ao filme interessa que a carta soe autêntica para que o significado de seu próprio discurso seja pleno. A determinação por “politizar” a figura de Blake atravessa o enredo a cada obstáculo com o qual ele se depara no labirinto de situações proposta pela narração, culminando na pichação do muro e nas reações dos transeuntes como o grande momento de quebra das convenções a que Blake submete o próprio drama.

Mas Blake não é politizado, nem demonstra vontade em sê-lo. Sua transfiguração num “exemplo” e num “modelo” se dá por vias artificial e superficialmente inseridas, para não dizer contraditoriamente expostas. Sua luta não é contra o sistema, e sim a favor de seus direitos de cidadão que ele vê negados por um sistema kafkiano (logo, desumanizante) que, no limite, leva-o à morte. O protesto no muro não se dá contra um estado de coisas, e sim na tentativa de conseguir um horário de atendimento em uma repartição pública. Na intriga do filme, até certo ponto, faz todo o sentido que seja assim – Blake é, na essência, o trabalhador britânico de classe operária largado à indigência por um governo que se importa pouco com ele, personagem bastante típico na filmografia de Loach. O que não faz sentido é que sua guinada (potencializada pela rejeição da mulher que ele ajudou e a quem nutre paixão) faça de Blake algo que ele não é nem nunca quis ser. O filme arrisca abertamente esse movimento de edulcorar o personagem – e a julgar pela Palma de Ouro em Cannes e por reações apaixonadas nos pós-sessões a estratégia se efetiva no recente contexto global de falência de valores e sensação de impotência.

O crítico Adriano Garrett, em texto recente, apontou a representação desse contexto contemporâneo: “O Daniel Blake do filme do Ken Loach poderia se encaixar no perfil justamente de um grupo que foi fundamental para a vitória do Brexit e, em certa medida, também para a eleição do Trump: trabalhadores mais velhos, sem grandes qualificações e muitas vezes desempregados, que culpam a imigração e a abertura política pela perda de empregos e/ou pela estagnação dos seus salários”. Se a abordagem de Loach – especialmente por sua verve crítica de esquerda – tem a potência de retratar reflexivamente a maneira como se daria esse processo, a grosseria do filme está em levar ao paroxismo a temperatura das relações para que Blake esteja sempre numa posição reativa ao estado de coisas.

Eu, Daniel Blake (2016), Ken Loach
Eu, Daniel Blake (2016), Ken Loach

Como Loach nunca teve por característica a sutileza, seria um tanto hipócrita buscar tal elemento em seus filmes mais recentes, especialmente nos trabalhos dos últimos dez anos. O cineasta segue conectado à fórmula de retratar o proletário de classe média ou baixa em constante atrito com o capitalismo, utilizando-se de códigos bem estabelecidos e de imediata aproximação – o épico histórico em Ventos da Liberdade (2006), o thriller em Rota Irlandesa (2010), a comédia de situações em A Parte dos Anjos (2012), o melodrama do próprio Eu, Daniel Blake, entre outros. Sua profunda sensibilidade (para voltar ao termo de Bazin sobre De Sica) para com aquilo que ele retrata exacerba as abordagens: o denuncismo dos filmes extrapola a construção formal, quer machucar na carne, gritar contra o mundo, pichar os muros do sistema e ser enterrado como a voz convulsionada em meio ao caos da injustiça e dos maus tratos. Loach age imbuído do que o filósofo Vladimir Safatle chama de “razão cínica”, que aparece “em épocas e sociedades em processo de crise de legitimação, de erosão da substancialidade normativa da vida social”. Com isso, ainda segundo Safatle, o cinismo passa a dominar os modos da ação e da razão. Para o cínico, “não é apenas racional ser cínico, só é possível ser racional sendo cínico”.

A arte perde quando ela tenta ganhar adesão e defensores no grito cínico e puramente revoltoso, quando se engaja pela “causa certa” sem a reflexividade sobre como atingir essa causa. A arte só faz sentido como ruptura, incômodo, desestruturação, instabilidade e incerteza. Eu, Daniel Blake expõe suas certezas numa cartilha de feridas abertas que não permite escapes. A armadilha retórica do filme é: quem há de ser contra a luta de Daniel Blake, esse “repositório de dó”? (O termo foi emprestado de Victor Guimarães da crítica a Dois Dias, Uma Noite, dos irmãos Dardenne.) Só que a busca por absolvição que ronda o filme é um pouco mais complexa: quem há de ser contra um cinema de tanto berro e pouco estofo, de tanta “razão cínica” e tão pouca elaboração de suas articulações formais e operações internas?

Walt Kowalski, interpretado por Clint Eastwood em Gran Torino (2008), tem muito de Daniel Blake nas idiossincrasias, rabugices, nacionalismos e defesas de espaço. Só que cada filme expõe e reelabora os protagonistas de maneira invertida: em Loach, os aspectos negativos de Blake são suplantados pela busca do olhar piedoso do espectador; em Eastwood, a brutalidade é desconstruída na relação direta com o outro, com o diferente dentro do filme, e naquilo que Walt percebe como inimigos em comum nas batalhas individuais de cada indivíduo ou comunidade.

*

Em Sully, o personagem-título é constantemente chamado de herói. A mídia, as pessoas na rua, os familiares, os amigos, toda a gente enxerga no piloto um novo mártir a ser respeitado – com exceção da agência reguladora de aviação, que lhe cobra explicações de seus atos. Ele está desconfortável neste papel, atribuído após o incidente do avião que pousou no rio Hudson e poupou a vida de 155 pessoas. O filme se equilibra entre a inadequação de Sullenberger a este novo papel social e o testemunho quase clínico da ruptura.

Clint Eastwood sempre primou pela concisão e objetividade, mesmo em filmes às vezes com mais de 120 minutos. Aqui, ele faz seu trabalho mais concentrado em décadas, atingindo novo patamar de direcionamento, inserindo um mundo inteiro de ideias e potências em meros 90 minutos de um cinema muito convicto de suas possibilidades. Faz, com isso, um filme marcado pela estruturação de sua própria narrativa: mais do que revelar se Sully (Tom Hanks) estava certo ou não, importa reconstituir, minuto a minuto e mecanicamente (no sentido mesmo da engenharia de inserir pouco a pouco as peças nos respectivos encaixes) , os acontecimentos centrais ao processo enfrentado pelo protagonista. De alguma maneira, é o trabalho mais “formalista” de Eastwood, por tratar justamente (e quase literalmente) de um filme que analisa sua própria forma (o hoje esquecido Meia-noite no Jardim do Bem e do Mal, de 1997, é exemplo similar na carreira do diretor).

Sully é uma crônica sobre essa forma, tendo como eixo a figura do piloto questionado pelas autoridades e em vias de ser condenado por um entendimento distinto daquele a que ele submeteu o avião pousado no Hudson. São as diferenças entre ciência e experiência, controle e livre-arbítrio, todos elementos muito caros ao cinema de Eastwood. Numa mise-en-scène fluida, quase gélida na obsessão em expor peça a peça de um quebra-cabeça cujo desfecho é conhecido de antemão, o filme traz ao primeiro plano a encenação dessa não-tragédia. Os jogos de luzes e sombras, praxe no trabalho exemplar do diretor de fotografia Tom Stern, colocam e retiram Sully dos holofotes. No escuro, ele tem pesadelos nos quais destrói o centro de Nova York com o avião descontrolado; na luz, mesmo convicto do que fez, nutre dúvidas.

Sully - O Herói do Rio Hudson (2016), Clint Eastwood
Sully – O Herói do Rio Hudson (2016), Clint Eastwood

O conhecimento prévio do desfecho liberta o filme para que seja trabalhada sua construção, aquilo que Jacques Rivette apontava, ainda nos anos 1950, como “coração da criação, desenho do criador (…), a ordem, enfim, que, conferindo valor segundo seus méritos a cada aparência, na ilusão de sua simples sucessão, obriga o espírito a conceber uma lei outra que a do acaso para sua sábia aparição”. Enquanto Eu, Daniel Blake é uma longa preparação para a catarse final, para a lágrima, o choro e a piedade advindos do sofrimento e da injustiça, Sully é todo ele um grande epílogo, o pós-trauma cuidadosamente encenado para transmitir não as emoções da tragédia que não ocorreu, mas a estrutura que resume a escolha definidora por parte do indivíduo.

O drama em Sully não guarda maiores interesses para além do voyeurismo. As pessoas foram salvas, a intriga já começa resolvida. Se o piloto enfrenta um processo interno, isso está na esfera do individual e não diz respeito a mais ninguém. Eastwood sempre se atraiu pelas possibilidades desse tipo de drama, pela desconstrução das figuras do imaginário como bem mais ambíguas do que os epítetos vinculados a elas. O paroxismo desse processo aparece em Sniper Americano (2015), autêntico filme-catástrofe sobre um atirador de elite do Exército norte-americano que, vindo do “mundo real” para assombrar a ficção, está na tela como refém dos fantasmas de uma guerra que ele gosta e defende (o que, para muitos críticos e espectadores, foi confusamente entendido como defesa estrita da guerra em si).

Eastwood não é cínico a ponto de olhar para as situações abordadas com algum pretenso conhecimento adquirido. A ele, interessa a potencialidade da construção (aquela tão defendida por Rivette), a materialidade dos corpos, dos olhares e das sombras, o choque da visão destituída de valores a priori, a compreensão de que as instâncias de poder e de autoridade podem ser monstruosas se vistas sob o ponto de vista de quem as enfrenta (vide especialmente A Troca, 2008) e que essa monstruosidade está contida nas regras cobradas como obediência plena. O nó kafkiano em Sully é o de que as atitudes do piloto, apesar de bem-sucedidas, poderiam não ter dado certo, e ele agora deve enfrentar as consequências de uma hipótese não consumada. Os obstáculos são matemáticos; Sully luta contra a abstração da possibilidade, e o filme é habilidoso em explicitar o aspecto sombrio das instâncias de autoridade ao mesmo tempo em que demonstra a consciência de que elas agem no objetivo de desmontar uma certeza. A luta só será ganha quando o fator humano for considerado e tornado relevante, quando o determinismo der lugar à experiência.

O plano de conjunto, já próximo ao final, em que a aeronave desvia da cidade e faz a curva rumo ao Hudson tem a façanha de materializar o fator humano buscado por Sully: no instante em que o piloto percebe a única saída possível, dá-se a definição de seu futuro – e, formalmente, da existência de Sully, o filme. O avião, tornado personagem, só se move pela ação do indivíduo, assim como o cinema deve ser movido pela sensibilidade de quem acredita que a arte, tanto quanto um avião com os dois motores destruídos, pode nos desestabilizar sem destruir a si mesma.


Leia também: